Em meus dias de adolescência, conheci um cidadão que só havia visto um filme na vida. E sempre revia o mesmo. Tinha gostado do filme e não queria se decepcionar. Em meus dias de Madri, conheci uma morocha uruguaia que tinha uma avó em Santiago de Compostela. Às vezes convidava a vó para visitá-la em Madri.
- Muy lejos, hijita.
Outro dia, convidou-a para ir a Montevidéu. Os olhos da velhota brilharam:
- Bueno...
Entendo estes dois modos de ver o mundo e participo um pouco de ambos. Por um lado, temo me decepcionar, não com filmes, mas com cidades novas. Já cheguei mais ou menos à visão de Buñuel: “não viajo por países que não conheço”. Por essas razões, cada vez que faço as malas, acabo rumando para Paris, Roma ou Madri. Para mim, é quase doloroso rumar a outros nortes. Por outro lado, sempre me atrai o que está longe.
Sou grato a dois tipos de pessoas. Primeiro, às que me recomendam geografias interessantes. Segundo, às que me desrecomendam certas viagens. Tenho um amigo que insiste em que eu conheça as ditas cidades históricas de Minas. (Como se alguma cidade não fosse histórica!). Nunca me interessei. “Mas lá tem igrejas lindas”. Ora, depois de conhecer a basílica de São Marcos, a Notre Dame, a Saint Chapelle, a catedrais de Toledo e Santiago de Compostela, que têm a oferecer-me Tiradentes, Diamantina e Ouro Preto? É o mesmo amigo que me convida a ir a Cuba. Ora, a miséria do socialismo eu a conheci na Romênia. Cuba seria um déjà-vu.
Outro dia, conversando com companheiros de boteco, perguntou-me um forasteiro na mesa:
- Já foste às cidades históricas de Minas?
Não, não as conhecia.
- Então não vai. São um horror.
E discorreu sobre os dissabores de sua viagem. Estradas péssimas, gastronomia pobre, falta de infra-estrutura turística. Quase o beijei. Ele havia eliminado de minha vida qualquer veleidade de visitar as tais de cidades.
Por outro lado, dizia, sempre me atrai o que está longe. Minha primeira curiosidade pelo Oriente surgiu com Fernando Pessoa. O poeta se despetala e joga suas folhas, uma para o norte, outra para o sul, outra para o ocidente.
E a outra, as outras, todas as outras folhas
– Ó oculto tocar-a-rebate dentro em minha alma! –
atira ao Oriente,
ao Oriente, d’onde vem tudo, o dia e a fé, ao Oriente pomposo e fanático e quente,
ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
ao Oriente budista, brahmanista, shintoista,
ao Oriente que é tudo o que nós não temos,
que é tudo o que nós não somos,
ao Oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva,
onde Deus talvez exista realmente com corpo e mandando tudo.
Pessoa falava da Índia. Claro que nunca foi lá. Tivesse ido, jamais escreveria tal bobagem. O poeta construía um oriente ideal e falava em visitá-lo. Nada a ver com o real.
Nasci junto a uma geração que foi ensinada a gostar do Oriente, a partir de um dos mestres de então, Herman Hesse. Outro deles foi Aldous Huxley. Em seu último romance, A Ilha (1962), tenta uma fusão cultural do Ocidente e do Oriente na busca de uma convivência pacífica entre os homens. Vê o Oriente como um espelho do Ocidente. Ao invés da atitude predadora do consumo ocidental frente à mansidão oriental, o inverso acontece: o pensamento milenar tem como objetivo restaurar os resultados da inconseqüência gerada pelo avanço tecnológico.
Em meus dias de Paris, recebi em meu apartamento gaúchas que vinham de Poona, onde haviam ido buscar paz e sabedoria nos ahsrams de Bhagwan Shree Rajneesh, aquele guru que após ter sua biografia mais suja que pau de galinheiro, preferiu trocar seu nome para Osho. O guru, que se se dizia Deus, fez fortuna enganando jovens e provocou um escândalo internacional com suas cerimônias tântricas, em verdade alegres orgias sexuais. Possuía terrenos, hotéis, uma rede de casa de massagens na Europa - isto é, prostituição - e uma frota de 91 Rolls-Royces. Acusado de perversão, realização de lavagem cerebral e sonegação de impostos, expulso de 21 países, foi deportado dos Estados Unidos para a Índia, onde morreu de Aids.
Outras notícias tive da Índia através de um amigo dos dias de Paris, o fotógrafo colombiano Hernando Guerrero. Em uma exposição de fotos de uma viagem sua ao país, vi mendigos monstruosos que haviam sido deformados na infância para pedir esmolas nas ruas de Bombaim ou Nova Delhi, Benares ou Calcutá. Uma delas era particularmente repulsiva. A criança havia tido sua perna direita levantada na vertical com o pé escorado na parte interna do cotovelo. O conjunto formava um perfeito quadrado de ossos, junto ao qual estava colado um corpo esquelético, com uma perna e um braço pendurados do outro lado.
Ainda em Paris, conheci o escritor cubano Severo Sarduy, que me exibiu orgulhoso suas fotos tomando banho no Ganges, no qual boiavam cadáveres de animais e gentes. Confesso que lhe apertei a mão com um misto de temor e asco. Durante muitas décadas, intelectuais do Ocidente viram uma fonte de sabedoria em um país onde os párias morrem de fome nas ruas enquanto ratos são alimentados com pires de leite nos templos budistas.
Mesmo assim, sempre me restou um certo xodó pela Índia, particularmente por seus templos, onde o erotismo se mescla à espiritualidade. Sem falar que é uma civilização milenar, e sempre me agradaram as civilizações milenares. Assim sendo, comprei outro dia o livro Índia – Crenças, costumes e a sabedoria de uma das mais antigas civilizações do mundo – do escritor, ator, diretor e roteirista francês Jean-Claude Carrière. O autor, homem fascinado pela Índia, foi roteirista dos melhores filmes de Buñuel – como Belle du Jour, O Discreto Charme da Burguesia, O Fantasma da Liberdade – e também do épico Mahabharata, filme de cinco horas (nove horas, em outra versão) dirigido por Peter Brook. Carrière é também o co-autor de Meu último suspiro, um longo depoimento de Luis Buñuel sobre sua vida e obra. Recomendo.
Carrière fez mais de trinta viagens à Índia e conhece o país e sua cultura com a palma de sua mão – se é que é possível conhecer algo da cultura de um país onde existem tantos deuses quanto devotos. O livro é uma viagem fascinante pelos seus templos e religiões, ritos e costumes. Também recomendo. É a melhor viagem que se pode fazer à Índia. Não tente outra. Porque, lá pelas tantas, nos conta Carrière:
- De manhã, às sete ou oito horas, vemos os homens defecarem, uns ao lado dos outros, à beira da estrada, ou ao longo da via férrea, sem nenhum constrangimento. Vemos a mesma coisa nos campos, sempre de manhã, e também em Varanasi, bem perto do Gânges. O excremento humano é visível. Ele tem um cheiro, como em todos os lugares. Antigamente, os viajantes diziam que este cheiro pairava sobre toda a Índia. Hoje, parece que ele se atenuou. Ou então eu me habituei.
Pelo jeito, o escritor se habituou. Pois leio hoje no Terra que as autoridades de um distrito da região indiana de Jaipur decidiram colocar guardas "armados" com apitos e tambores para perseguir todos que urinarem ou defecarem em público. A iniciativa será posta em prática a partir da semana que vem em 34 municípios do distrito de Jhunjhunu, com uma população de cerca de 300 mil habitantes, e tem o objetivo de refrear um hábito de cerca da metade da população do gigante asiático.
Segundo Yogaram Yangid, o chefe administrativo do distrito de Jhunjhunu, em cada município, quatro ou cinco voluntários se encarregarão de tocar música pelas cidades perto dos que fizerem suas necessidades em público, os identificando, para depois anunciar em público seus nomes. O governo indiano iniciou há anos vários programas com o objetivo de erradicar a defecação ao ar livre, mas cerca da metade dos 1,21 bilhões de habitantes do país, sobretudo em zonas rurais, continuam tendo este hábito.
"Somos a capital mundial da defecação ao ar livre. É um assunto que gera preocupação, angústia e raiva", disse em agosto o ministro de Desenvolvimento Rural indiano, Jairam Ramesh, que detalhou que 60% dessas ações no mundo acontecem na Índia.
Merci, M. Carrière. Índia nem pensar.
07 de novembro de 2012
janer cristaldo
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