"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O SUPREMO, A DEMOCRACIA E OS DITOS "PROGRESSISTAS"

 Ou: De uma suave e contínua decadência

Estão dispostos a um daqueles textos longos? Falo da decisão de ontem do Supremo, da reação que gerou e da forma como tem atuado o tribunal nos últimos tempos. Por que os ditos “progressistas”, inclusive alguns colunistas gritaram só agora? Afinal, lidam com princípios do direito ou apenas com valores ideológicos? Boa leitura!


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Está em curso uma lenta e contínua degradação institucional. Manifesta-se no interior de cada Poder da República; na relação entre esses Poderes; em setores consideráveis da imprensa, que perderam os referenciais que sustentam sua própria liberdade; na academia, que se contenta, com raras exceções, em ser esbirro irrelevante de um projeto de poder; na representação dos trabalhadores, que é sócia desse projeto; na representação empresarial, altiva mendicante das benesses oficiais, incapaz de produzir valores que vão além do balanço; em boa parte dos nossos liberais, cada vez mais micos amestrados do ativismo estatal. Não se trata de pessimismo, mas de realismo. Se vamos sair da espiral negativa, não sei.


 
Uma coisa é certa: sem forças políticas que produzam contravalores, é difícil. Notem: países que vivem em crise institucional permanente têm, invariavelmente, oposições acuadas ou esmagadas por hipertrofias.
Na Venezuela, no Equador, na Bolívia e na Argentina, um mandatário deita sua sombra sobre as instituições, já esfrangalhadas por seus esbirros no Legislativo e no Judiciário.
No Brasil, um partido se oferece para substituir a sociedade, pretendendo ter a sua própria versão da religião, da política, do Poder Judiciário, do Poder Legislativo, da imprensa, do capitalismo e… até da oposição!
 
Não vou me ater, neste post, a cada uma das áreas citadas porque, de fato, é o que tenho feito ao longo dos anos. Restrinjo-me neste post ao quiproquó entre o Supremo e a Câmara.
Por cinco votos a quatro, como viram, o Supremo decidiu que a combinação de um princípio constitucional com uma lei do Código Penal determina a cassação do mandato dos deputados condenados no processo do mensalão.
 
Os petistas, em sinal de protesto, estão à beira de propor a invasão do Supremo pelo MSR — o Movimento dos Sem-Razão.
 
Como já demonstrei ontem em vários posts, o Supremo nada mais fez do que
 
a) interpretar a Constituição, dando a última palavra na matéria, e esse é seu papel institucional e constitucional;
 
b) decidir, EIS O DADO MAIS NOTÁVEL, segundo o que está escrito em nosso Código Maior e em outro, o Penal, que está em vigência.

Ricardo Lewandowski emitiu vários sinais de que não gosta dele. Sempre é tempo de renunciar ao Supremo e se candidatar à Câmara e ao Senado para mudá-lo.
Tem o meu integral apoio e solidariedade… Por mais que tentem produzir obscuridades, insistirei na clareza.
 
A mentira

É mentira! O Supremo não chamou para si a responsabilidade de cassar mandatos de deputados e senadores. O tribunal harmonizou o que restava como uma antinomia no texto constitucional, dando eficácia, ademais, ao Artigo 92 do Código Penal, que cassa o mandato de parlamentares condenados por crimes contra a administração pública.
O espantoso, e isto também vale para os quatro ministros vencidos (Lewandowski, Rosa Weber, Dias Toffoli e Carmen Lúcia), é que aqueles que dizem que não pode ser assim não explicam, então, o que quer dizer o Parágrafo 3º do Artigo 55 da Constituição nem o que fazer com o Artigo 92 do Código Penal. Devem ser declarados extintos, nulos, caducos ou o quê?

Notem: eu e Platão não gostamos de sofistas. Ainda que reconheçamos a sua importância nas artes retóricas, temos uma preocupação com a verdade, não apenas com os volteios argumentativos. Mas não podemos admitir que alguém ambicione chegar à verdade sem expor seus fundamentos.
Os quatro ministros que queriam delegar à Câmara a decisão sobre o mandato dos parlamentares não disseram o que fazer com os pedaços do texto constitucional e do Código Penal que restariam, então, inertes, inermes.

Eu lhes pergunto: devemos supor que, segundo essa leitura, um e outro textos abrigam inutilidades? Por outro lado, eles hão de convir, os que a eles se opuseram emprestaram, sim, higidez ao Parágrafo 2º, no qual ancoraram seus respectivos votos: ele segue sendo aplicado para os casos em que parlamentares são condenados a penas de reclusão inferiores a quatro anos (desde que não seja por crime contra a administração pública). Nesse caso, o plenário da Câmara decide.
 
Não houvesse, excelências, outras evidências de que o voto dos cinco — Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Marcos Aurélio Mello e Celso de Mello — responde com mais eficiência à ordem legal, haveria esta verdade insofismável: esse voto atesta a funcionalidade e a higidez das leis que temos; o de vossas excelências só pode ser exercido fazendo de conta que o que está escrito na Carta e no Código Penal lá não está.
Os aiatolás da imprensa que resolveram endossar essa posição partem do princípio, o que é de uma espantosa estupidez conceitual e ignorância específica, de que uma Constituição e um código legal podem abrigar ociosidades. Não podem.
 
Isso ainda não diz tudo: ao resolver abrigar a aporia, sem procurar a solução harmonizadora, esses quatro flertaram abertamente com a possibilidade de que a Câmara não cassasse o mandato dos três condenados. Nessa hipótese, o Brasil assombraria o mundo com três deputados com direitos políticos suspensos — e isso todos decidiram, por unanimidade —, e um deles poderia ter de exercer parte de seu mandato na cadeia.
 
Os ministros votem como quiserem; não estou satanizando ninguém. Mas têm de responder às perplexidades impostas pela lógica. Eu ainda espero dos quatro que expliquem ao Brasil como se pode ser um representante do povo sem direitos políticos e como se pode conciliar a representação com a cadeia.
Imaginem… João Paulo Cunha poderia integrar, de dia, a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado e, à noite, ser presidiário.
A rigor, nem sei como faria, não é? Ao menos um sexto da pena tem de ser cumprido em regime fechado. Como a ordem legal brasileira não se preparou para o exotismo de ter um deputado em cana, não concedeu nenhuma licença especial para que um presidiário em regime fechado deixe a cadeia para se chamado de excelência. Tenham piedade dos brasileiros, ministras e ministros!
 
Mais exotismos

Ora vejam… Se não há, e não há, nada de exótico no voto majoritário no caso dos mandatos — ao contrário: exotismo a mais não poder há nos quatro que foram derrotados —, o mesmo já não se pode dizer da liminar concedida, MONOCRATICAMENTE (ele poderia ter consultado o plenário, mas preferiu não fazê-lo) pelo ministro Luiz Fux no caso do regime de urgência para avaliar os vetos da presidente Dilma à nova lei do royalties. Bastou uma penada do ministro, e o regime de urgência decidido pela maioria do Congresso está suspenso. Sem que se votem antes os 3.060 vetos que estão na fila, diz-se, nada feito.
 
De novo: eu acho a mudança da lei absurda e considero corretos os vetos. A situação, no entanto, só chegou a esse ponto por culpa de Lula e Dilma, já expliquei por quê. Nem por isso deixo de reconhecer que se trata de um óbvio exotismo — nesse caso, sim, um caso descabido de hipertrofia do Judiciário — interferir na economia interna de um Poder e nas matérias que deputados e senadores consideram ou não de votação urgente. O Supremo vai definir agora a pauta do Congresso? Uma coisa é interpretar a Constituição; outra é ser bedel de outro Poder. Reitero: por mais justa que seja a causa, é o tipo de ação injustificável.
 
Para arremate dos males, todos os jornalistas sabem que as bancadas do Rio e do Espírito Santo davam a liminar como pule de dez: “Fux é carioca!”, diziam. Bem, isso, de fato, não me interessa. Sempre se é de algum lugar — eu sou da Fazenda Santa Cândida… Diante do que parecia um “movimento cívico”, e o ministro certamente não o ignorava, não teria feito mal em ao menos ter consultado seus pares. Tivesse vencido a concessão da liminar por maioria, eu estaria aqui, do mesmo jeito, a lamentar a ingerência, mas sem ter de lembrar as inconveniências ditas pelos bairristas.
 
O Supremo e os silêncios

Em “O País dos Petralhas II”, inclui no Capítulo 8, um texto com críticas severas ao Supremo. Ainda que o Poder tenha um certo caráter de legislador permanente, como lembrou Celso de Mello, à medida que interpreta a Carta e firma jurisprudência, entendo que não lhe cabe decidir CONTRA a letra da própria Constituição.
“E não foi isso o que ocorreu com os mandatos?”, pergunta o petralha nervoso. NÃO! AO CONTRÁRIO: O VOTO VITORIOSO PRESERVA A ÍNTEGRA DA CARTA; O DERROTADO É QUE A MUTILAVA. Já provei isso. Sigamos.

 
No texto que foi parar no livro, cito as muitas vezes em que o STF tomou decisões contra o próprio texto constitucional e contra leis que estão em vigência. Foi praticamente o único a chiar. Como as causas eram consideradas “boas”, politicamente corretas, viu-se com simpatia a ação do tribunal, e os eventuais críticos seriam todos “reacionários”.
 
Casamento gay

Vamos ver. O Parágrafo 3º do Artigo 226 da Constituição e a Lei 9.278 reconhecem como unidade familiar a união entre homem e mulher. Ao reconhecer a união civil de homossexuais, o Supremo deu um chega pra lá na própria Carta. Para fazê-lo, sustentou, na prática, que o caput do Artigo V tinha precedência, a saber: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (…)”. O argumento: se os gays não podiam celebrar a ação civil por impedimento legal, então a igualdade não estava assegurada. Entendi e entendo que tal decisão não poderia ser tomada não porque discorde do mérito, mas porque não se pode fazê-lo sem emendar o Artigo 226. O Supremo, no entanto, foi aplaudido.
 
Cotas

Já no caso das cotas raciais, o mesmo Artigo 5º foi usado como pau para outra obra. Ao recusar uma liminar contra a política de cotas, que argumentava justamente que elas feriam — E FEREM — o Artigo 5º, o ministro Ricardo Lewandowski argumentou que a “igualdade normativa” da Carta precisava de instrumentos que assegurassem a “igualdade material”. Trata-se de um sofisma estupendo, que resulta num paradoxo: a igualdade formal só pode se transformar em igualdade material se for suprimida… É um absurdo lógico. No caso dos gays, afastava-se o Artigo 226 em favor do 5º; no caso das cotas, afasta-se o 5º em nome do… de… da… igualdade material, ainda que isso possa significar punir um branco pobre em benefício de um preto pobre. Uma luta racial entre… pobres! O Supremo foi aplaudido.
 
Aborto de anencéfalos

A Constituição garante o direito à vida, e o Código Penal — que só pode ser mudado pelo Congresso — prevê a interrupção da gravidez no caso de estupro e de risco de morte da mãe. Por mais que os ministros julgassem decente e humano o aborto de anencéfalos, entendo que não lhes cabia ou reformar a Constituição ou reformar o Código Penal. Não importa que opinião se tenha a respeito do mérito. Para registro: lembro que Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski votaram contra. Mais aplausos para o Supremo.
 
O caso da marcha da maconha

Fazer a apologia do crime é crime, como está no Código Penal. Assim, a apologia do uso de drogas está devidamente tipificado. O Supremo liberou as marchas da maconha porque decidiu que se tratava apenas de exercício da liberdade de expressão. O relator do caso foi o ministro Celso de Mello, que agora está sendo demonizado. Na época, foi tratado como um poeta. Salva de palmas também nesse caso!
 
Começando a concluir

Fiz um resumo rápido dos casos em que critiquei, quase sozinho, o Supremo por aquilo que considerei uma exorbitância. Em todos, parece-me escancarada a iniciativa de legislar, e não apenas daquele modo em que, de fato, ele o faz todos os dias à medida que firma jurisprudência. Não! Nos exemplos dados, ou a Constituição ou alguma outra lei se confrontava abertamente, a meu juízo, com a interpretação.
 
Como os donos do debate, os ditos “progressistas” e os petralhas em geral concordavam com as teses, então lhes parecia irrelevante que o tribunal avançasse numa competência que é do Legislativo. Da mesma sorte, no caso da liminar concedida por Fux, silenciam porque, afinal, ela preserva os vetos de Dilma, a Soberana…
 
Não! Não estou dizendo que o mesmo se tenha verificado com o mandato dos parlamentares condenados, não! Nesse caso, tratava-se de harmonizar uma antinomia constitucional sem precisar ignorar nenhuma das partes da Constituição, dando-lhe uma interpretação conforme, que mantivesse a sua total higidez, em todos os seus dispositivos.
 
Agora encerro mesmo
 
Os dias andam meio confusos; os valores estão um tanto atrapalhados. Há, sim, ministros do Supremo que estão por demais expostos aos apelos da mundanidade, perigosamente próximos das forças em conflito na política, na economia e na sociedade. Isso é ruim.
O Supremo que pôs ontem um fim ao julgamento do mensalão sai engrandecido aos olhos da nação. E por bons motivos. Mas fiquemos atentos às forças dissonantes dentro da Casa. Chávez, Correa, Evo, Cristina, Daniel Ortega… Essa gente gosta de chutar a porta do Judiciário. Os petistas, como demonstra a história recente, preferem desmoralizá-lo.

18 de dezembro de 2012
Reinaldo Azevedo

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