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Aquele que dispõe de uma prova lógica perfeita pode aceitar a discordância como um fato, não como um direito. Em última instância, explicará toda divergência como fruto da ignorância ou da perversão e, mais dia menos dia, desejará suprimi-la pela doutrinação ou pela força.
Felizmente, provas lógicas perfeitas só existem no domínio puramente ideal, não dizem respeito às realidades do mundo. Mesmo a ciência mais exata admite que o seu reino não é o das verdades definitivas, mas o das probabilidades e incertezas. Isso não impede, no entanto, que muitos cientistas continuem sonhando com a “teoria final”: a explicação unificada e cabal da natureza e de tudo quanto existe dentro dela – o que inclui necessariamente o ser humano com todos os seus pensamentos, desejos, emoções, crenças e valores.
Os devotos desse ideal, quando falam dele, apressam-se em reconhecer que “ainda estamos longe” de alcançá-lo. A aparente modéstia dessa confissão esconde a fé inabalável de que ele será alcançado. Inclui também o esquecimento de que, no passado, houve quem acreditasse piamente já tê-lo alcançado, já possuir ao menos em linhas gerais os princípios fundantes da natureza inteira, e estar capacitado, portanto, a aplicá-los a todos os domínios do conhecimento e da ação, modelando por eles a sociedade, as leis, a cultura, a educação e a mente humana.
Em nenhum desses casos a fundamentação chegava ao nível de uma prova lógica perfeita. Incluía sempre alguns pressupostos não provados, às vezes incongruentes ou incompreensíveis. Mas, em todo caso, comparada com o restante das opiniões em circulação, a “teoria geral” parecia ser o que mais se aproximava de uma prova lógica perfeita, tornando difícil, aos seus porta-vozes, resistir à tentação de arrogar-se a autoridade ilimitada de um mandamento divino, sufocando toda oposição como irracional e anticientífica.
Isso aconteceu pelo menos três vezes na História. A primeira foi quando Sir Isaac Newton, tendo obtido sucesso em deduzir de princípios mecânicos alguns fenômenos da natureza, fez votos de que em breve se pudesse explicar pelos mesmos princípios todos os demais fenômenos.
O desenvolvimento posterior das ciências mostrou que o sonho era impossível. Mas, no século XVIII, à medida que o prestígio de Sir Isaac se espalhava pela Europa, esse sonho foi tomado como realidade consumada e se consagrou em doutrina obrigatória sob o nome de “mecanicismo”.
Logo o mecanicismo transfigurou-se em projeto de reforma social e começou a cortar cabeças – inclusive as de alguns mecanicistas insatisfeitos com as consequências políticas da doutrina. (Anos atrás escrevi umas linhas sobre os danos que o mecanicismo trouxe ao mundo, e fui acusado, numa lista de discussões entre professores de lógica, de querer “refutar Newton” – o que sugere que, ao menos no Brasil, é possível ser professor de lógica sem ter aprendido a ler.)
A segunda vez foi quando a doutrina evolucionista de Charles Darwin, mal publicada, e embora não fosse nem mesmo uma teoria de tudo e sim apenas uma explicação abrangente da variedade dos seres vivos, já foi aplaudida como chave geral da história humana e fundamento científico tanto da guerra de raças quanto da luta de classes. Adotada com ligeiras modificações pelos dois regimes totalitários que disputavam o poder no mundo no início do século XX, serviu de fundamento ideológico à matança organizada de uns duzentos milhões de seres humanos.
A terceira, que se entremescla à segunda, foi a proclamação do marxismo como suprema explicação científica da evolução histórica e, no dizer de Jean-Paul Sartre, “a filosofia insuperável do nosso tempo”. Deu no que deu.
Nos três casos, é inócua a tentativa piedosa de cavar um fosso intransponível entre o núcleo “puramente científico” dessas teorias e os seus efeitos histórico-sociais maléficos, atribuindo estes últimos exclusivamente à distorção ideológica superveniente e à contaminação da “pseudociência”. Teorias científicas não descem prontas do céu das idéias puras. Todas trazem no fundo algum elemento ideológico, por discreto e indesejado que seja, o qual cedo ou tarde acaba por subir à superfície da História, como as paixões rejeitadas sobem do inconsciente e acabam por engolfar a personalidade.
Newton não concebeu sua teoria gravitacional só para explicar determinados fatos da natureza – embora ela ainda seja ensinada assim à população ginasiana -, mas como parte de um projeto abrangente de destruir o cristianismo trinitário e substituí-lo por uma religião da “unidade absoluta” de inspiração esotérica. É preciso ser muito sonso para não notar aí o alcance da ambição totalitária subjacente.
Darwin e Marx foram bem mais explícitos quanto às consequências previsíveis das suas teorias: o primeiro aceitou o genocídio como um fato normal da natureza, o segundo como um instrumento indispensável para a instauração do paraíso socialista.
A deleitação utópica com que tantos cientistas sonham com a “teoria final” e se esmeram em aprimorar os instrumentos lógicos para fundamentá-la não parece, nesse sentido, ser um prenúncio de dias melhores para a espécie humana.
03 de dezembro de 2012
Olavo de Carvalho
Publicado no Diário do Comércio.
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