Há quem acredite que exagero, quando falo nas muitas excelências de Itaparica, tanto as presentes quanto as passadas. Mas é uma impressão falsa, porque, embora não possa ignorar esses grandes predicados, procuro sempre ater-me à imparcialidade e fidelidade aos fatos que devem nortear o bom jornalismo informativo.
Agora mesmo, diante dos acontecimentos nacionais, sou o primeiro a reconhecer que carecemos hoje de juristas capazes de prestar uma contribuição significativa aos debates em curso.
Bem verdade que, se tivessem anel no dedo, Ary de Maninha e Jacob Branco botariam num chinelo muitos desses advogadecos mal-acabados que por aí abundam, mas o fato é que, pelo menos que eu saiba, ninguém na ilha pode alegar notório saber jurídico e pleitear ser ouvido sobre questões constitucionais.
O que não impede, naturalmente, que se registre um pronunciamento marcante ou outro, como o do citado Ary de Maninha, na happy hour das nove da manhã, no Bar de Espanha.
— Os nobres amigos leram? — indagou ele. — Uns porretas aí dizem que a interpretação da Constituição pelo Supremo está errada e que o Supremo não é a única interpretação que vale! A que vale é a deles! Vale a de todo mundo! Cada um chega lá e diz que a Constituição estabelece o que ele quer, pra que Supremo?
Meus caros amigos, Ruy Barbosa acaba de ganhar o apelido de Ruy Carrapeta, de tanto que rola na tumba! Não cumprem a decisão do Supremo e passamos a ter o nome oficial de República Esculhambativa do Brasil, ninguém mais vai cumprir merda nenhuma e as decisões do Supremo doravante serão encaminhadas aos deputados, para ver se eles concordam.
Por que não resolvem logo que pra deputado a Justiça não vale? Por que não acabam logo com juiz, tribunal, essas coisas? Vamos criar a Deputança Judiciária! Vamos criar o Judiciário Cidadão! Cada um é livre para interpretar a lei como quiser.
Eu dou uma dedada no seu traseiro e declaro que, na minha interpretação, a lei me dá direito a isso. Dá direito ao urologista, por que não dá a mim?
Eu digo que meu direito de ir e vir não está sendo respeitado e aí exijo passagens de graça para onde eu quiser, na minha opinião a lei garante! Manolo, eu estou quase morto de sede! Se você não me der uma cerveja de graça pra eu me hidratar, é omissão de socorro!
O sentenciado resolve se aceita a sentença! Oh baderna, baderna, mixordieira deusa do atraso, aqui nos entregamos nós de uma vez por todas, acolhe-nos em teu regaço impudente, afaga-nos com tuas mãos mensaleiras, beija-nos com teus lábios prevaricadores!
Mas, apesar da pungência dessa rendição, a ilha permaneceu irresignada a ficar à margem dos acontecimentos.
Depois de uns três dias de recolhimento, durante os quais quem passava por sua calçada ouvia lá de dentro apenas uma ou outra voz de mulher num momento de alguma exaltação, Zecamunista emergiu na saída da rua dos Patos, sobraçando várias pastas de papelão e, passo firme e queixo empinado, se dirigiu ao Bar de Espanha.
Enganaram-se os mexeriqueiros que haviam atribuído os gritinhos femininos a mais uma reunião do Cialis, não o remédio, mas o Centro Itaparicano de Amor Livre Socialista, de que Zeca é secretário-geral perpétuo e que promove periodicamente o que ele chama de encontros motivacionais e o pessoal despeitado, invejoso e reacionário chama de outras coisas, todas impróprias.
(Aliás, Zeca sustenta que o nome do remédio é plágio e de vez em quando ameaça abrir processo; diz que todas as coroas do Recôncavo testemunhariam a favor dele, pois muitas delas já se beneficiaram do Centro e são sócias atuantes, contribuintes e até sócias atletas).
Os gritinhos eram das voluntárias que se ofereceram para ajudá-lo na formulação de seus planos, ao terminarem alguma tarefa importante.
— Resolvi dar uma mão à burguesia mercantil local, a crise não ajuda ninguém — disse ele, alisando a papelada. — Está tudo detalhado aqui, vou encaminhar à Associação Comercial. As circunstâncias já nos fizeram perder uma oportunidade histórica, mas outras estão se abrindo é só saber enxergar.
Tudo começara com a ideia de oferecerem na ilha acomodações adequadas para a reclusão dos condenados classe A. Essa ideia foi logo encampada por outras cidades Brasil afora, todas sentindo o potencial mercadológico de uma jogada dessas.
A ilha bobeou e vai perder a oportunidade, tinha de ter atirado com todas as armas, era preciso ter unido a Bahia em torno desse manancial turístico incalculável, que iria beneficiar todo o estado, além de elevar sua autoestima, por hospedar tantos nomes nacionais.
Ele já tinha escolhido o sobradão para a nova cadeia, já tinha orçado a reforma, a decoração e as instalações, tudo para inspetor nenhum, nem repórter nenhum, de onde lá fossem, botar defeito.
Mas faltou visão, faltou agilidade, a ilha vai ficar fora dessa. Cadê a classe hoteleira, cadê as agências de turismo?
Infelizmente, a batalha está perdida para competidoras infinitamente mais ricas e poderosas e a vencedora vai ser uma cidade paulista, isso se não abrirem uma concorrência internacional e as Bermudas, Taiti ou Ibiza não ganharem.
Mas o serviço que ele criara, não! A ilha pode sair na frente e a complexa estratégia já estava traçada. A ilha vai oferecer serviços de protestos, passeatas e manifestações diversas com toda a infraestrutura, tudo profissional de alto nível. O freguês especifica a manifestação que quer, faz-se um orçamento e se providencia tudo.
Bastou ele ter dado uma sondada e já tinha sentido a possibilidade de pelo menos duas boas manifestações contra o Supremo, logo no começo do ano. Uma firma de São Paulo telefonou querendo saber datas para o verão, tem muita grana nisso, o mercado está aquecidíssimo.
— Agora é assim — disse Zeca, com aquela risadinha bolchevique. — Não gostou, faz umas boas manifestações e vira o jogo. É a nova democracia.
23 de dezembro de 2012
João Ubaldo Ribeiro é escritor
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