Toda religião possui muitas valências. Além de se centralizar em Deus, elabora narrativas sobre o drama paradoxal do ser humano, gerando sentido, uma interpretação da realidade e do mundo.
Um santo protetor
Exemplar é a lenda de são Jorge e o combate feroz com o dragão. Primeiramente, o dragão é uma serpente, mas é apresentada alada, com enorme boca que emite fogo e fumaça e um cheiro mortífero. É um dragão simbólico.
No Oriente, é positivo, símbolo nacional da China, senhor das águas e da fertilidade. Entre os astecas, era a serpente alada, símbolo positivo de sua cultura. Para nós, ocidentais, o dragão é sempre terrível e representa a ameaça à vida ou as dificuldades duras da sobrevivência.
Junto com o dragão sempre vem o cavaleiro heroico, que com ele se confronta numa luta feroz.
O que significam essas duas figuras? À luz de categorias de C. G. Jung e seus discípulos, especialmente de Erich Neumann, que estudou especificamente esse arquétipo (“A História da Origem da Consciência”, Cultrix, 1990), e da psicoterapia existencial-humanística de Kirk J.
Schneider (“O Eu Paradoxal”, Vozes, 1993), procuremos entender o que está em jogo nesse confronto. Ele ensina e nos desafia.
O caminho da evolução leva a humanidade do inconsciente para o consciente, da fusão cósmica com o Todo para a emergência da autonomia do ego. Essa passagem é dramática, nunca totalmente realizada. Por isso, o ego deve continuamente retomá-la caso queira gozar de liberdade e vencer na vida.
DUAS DIMENSÕES
Mas importa reconhecer que o dragão amedrontador e o cavaleiro heroico são duas dimensões do mesmo ser humano. O dragão, em nós, é o nosso universo ancestral, as sombras de onde imergimos para a luz da razão e da independência do ego. Por isso, em algumas iconografias, o dragão aparece envolvendo todo o corpo do cavaleiro.
A atividade do herói, no caso de são Jorge, na sua luta com o dragão, mostra a força do ego, corajoso, iluminado, e que se firma e conquista autonomia, mas sempre em tensão com a dimensão escura do dragão. Eles convivem, mas o dragão não consegue dominar o ego.
Diz Neumann: “A atividade da consciência é heroica quando o ego assume e realiza por si mesmo a luta arquetípica com o dragão do inconsciente, levando-a a uma síntese bem-sucedida” (Op. cit., pág. 244). A pessoa que fez essa travessia não renega o dragão, mas o mantém domesticado e integrado como seu lado de sombra. Aí surge a síntese feliz dos opostos: o eu paradoxal encontrou seu equilíbrio, pois alcançou a harmonização do ego com o dragão, do consciente com o inconsciente, da luz com a sombra, da razão com a paixão, do racional com o simbólico, da ciência com a arte e a religião.
A confrontação com as oposições e a busca da síntese constitui a característica de personalidades amadurecidas, que integraram a dimensão de sombra e de luz. Assim o vemos em Buda, Francisco de Assis, Jesus, Gandhi e Luther King.
Os cariocas têm grande veneração por são Jorge, mais do que por são Sebastião, patrono oficial da cidade. Mas este é um guerreiro cheio de flechas, portanto, “vencido”. O povo sente necessidade de um santo guerreiro, corajoso, que vence as adversidades. Aí são Jorge representa o santo ideal.
Por certo, aqueles que veneram são Jorge diante do dragão não sabem nada disso. Não importa. Seu inconsciente sabe; ele ativa e realiza neles sua obra: a vontade de lutar, de se afirmar como egos autônomos que enfrentam e integram as dificuldades dentro de um projeto positivo de vida. E saem fortalecidos para a luta.
27 de janeiro de 2013
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