Comentei há pouco frase que me pareceu inteligente, apesar de ter sido pronunciada por um representante do alto clero francês: "Este Parlamento decidiu mudar o sentido do casamento. É uma grande violência para o povo mudar o sentido de uma palavra", disse Monsenhor Phillipe Barbarin, arcebispo de Lyon.
A técnica é a mesma em todos os países. Se não se pode mudar a realidade, muda-se a palavra, que passaria a designar uma outra realidade – na verdade, a mesma – mas com outro sentido. Foi brincando assim com palavras que o STF introduziu o casamento homossexual no Brasil, quando aprovou por unanimidade, com as fanfarras da imprensa, o reconhecimento da tal de união homoafetiva. A nova palavrinha designa o que antes chamávamos de homossexual. E ainda trouxe outra em seu bojo. O ministro Carlos Ayres Britto, relator do caso, pretende ter criado, por analogia, o neologismo heteroafetivo. Assim sendo, atenção à linguagem, leitor. Homossexuais não mais existem. Agora são todos homoafetivos.
Pior de tudo, as doutas eminências do STF demonstraram um crasso desconhecimento de etimologia. O homo de homossexuais nada tem a ver com homossexual. Quer dizer mesmo, em grego. Homossexual, mesmo sexo. Que seria homoafetividade? Aí, a idéia de sexo – que é fundamental na discussão – desaparece e temos: mesmo afeto. Que é isso? É a antiga homossexualidade com um novo nome. Desta vez mais palatável.
Outra safadeza é o tal de poliamor. Já escrevi sobre o assunto. Apesar de ter vivido muito mais de duas relações paralelas, confesso desconhecer tal teoria. Em meus dias de jovem, chamava-se isto amasiamento, adultério, infidelidade. Ou ainda, vendo a coisa por outro ângulo, de donjuanismo. Ou casanovismo.
Mais adiante, anos 70 para cá, começou-se a falar em relação aberta. Tudo dependia do consenso do casal. Conheci casais que viveram unidos a vida toda, mantendo este tipo de relação. Era um relacionamento honesto, sem mentiras. Mas o Direito jamais reconheceu direito à herança por parte de quem não fosse a mulher legítima. Neste sentido, o matrimônio funcionava como proteção. O marido podia ser infiel à vontade, sem precisar dividir seus bens com a Outra, como se dizia então.
Poliamorismo soa mais elegante. Procurei a palavrinha nos dicionários. Não encontrei. Nem meu processador de texto reconhece a palavra, sempre a sublinha em vermelho. Fui ao Google. Já está lá. Escreve um jurista: “As relações interpessoais de cunho amoroso, por vezes destoam do padrão habitual da monogamia entre os casais formados por pessoas de sexos diferentes. Assim, encontramos relacionamentos afetivos que envolvem um casal, vale dizer um dos cônjuges e um parceiro ou parceira, os quais se desenvolvem simultaneamente. Ditas relações são denominadas de poliamorismo ou poliamor, e se constituem na coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas ao matrimônio”.
É a antiga poligamia, com novas vestes. Mas se há quem mude o sentido das palavras, substituindo-as por outras que têm nova conotação mas o mesmo significado, há também aqueles que querem banir, definitivamente, certas palavras dos dicionários. Tivemos há dois anos o ridículo parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), datado de 2010, que sugeriu que o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, não seja distribuído a escolas públicas, ou que isso seja feito com um alerta, sob a alegação de que é racista.
Conforme o parecer do CNE, o racismo estaria na abordagem da personagem Tia Nastácia e de animais como o urubu e o macaco. "Estes fazem menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano", diz a conselheira que redigiu o documento, Nilma Lino Gomes, professora da UFMG. Entre os trechos que justificariam a conclusão, o texto cita alguns em que Tia Nastácia é chamada de "negra". Outra diz: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão".
A palavra negro, no sentido de raça, está prestes a ser banida do vernáculo. Esta mania vem de longe, desde os dias em que as esquerdas adotaram o politicamente correto, em verdade um eufemismo para o stalinismo na literatura e nas artes. O MEC liberou, em ato homologatório do mesmo ano, a presença da obra no programa, desde que os exemplares distribuídos fossem acompanhados de uma nota explicativa. A nota deveria discutir "a presença de estereótipos raciais na literatura" de Monteiro Lobato e oferecer a devida contextualização histórica.
Esta censura, a bem da verdade, não tem origens tupiniquins. Nasceu nos Estados Unidos, quando os negros americanos passaram a julgar nigger pejorativo e quiseram retirá-la de Huckleberry Finn, de Mark Twain. Alguns editores tiveram dignidade e não aceitaram tais mudanças, por não aceitarem censura.
Um dos livros mais famosos de Agatha Christie, O Caso dos Dez Negrinhos (no original em inglês, Ten Little Niggers) - cujo título se baseia numa cantiga infantil tradicional de Inglaterra - causou muita polémica na época em que foi publicado nos Estados Unidos. Acusado de racismo, suas edições mais recentes receberam o título And Then There Were None (E Não Sobrou Nenhum).
A moda está invadindo o planetinha. Leio na imprensa alemã que o livro Die kleine Hexe (A bruxinha), um dos livros infantis mais populares da Alemanha, está sob a ameça do politicamente correto. O livro de Otfried Preußler, publicado pela primeira vez em 1957, tem uma cena de carnaval, na qual a pequena heroína encontra crianças fantasiadas. Aqui, no texto original, fala-se em "negros" e "negrinhos", como era comum na época. Diante de tal conteúdo, muitos pais hoje interrompem a leitura. Eles explicam então para seus filhos que essa expressão não é mais usada nos dias de hoje e por que ela machuca outras pessoas.
A editora Thienemann, de Stuttgart, pretende retirar essas expressões das novas edições da bruxinha. Com isso a editora também reage às cartas de leitores que tem recebido sucessivamente nos últimos anos. A censura tem tal força que o escritor e sua família concordam com a mudança. Pois não era a intenção de Otfried Preußler ofender pessoas com cor de pele diferente.
Em seu ímpeto de censurar, várias outras editoras têm de lidar com expressões racistas em seus livros infantis. Em 2009, a Friedrich Oetinger lançou uma nova edição de Pippi Långstrump, de Astrid Lindgrens. Agora o pai de Pippi não será mais chamado de Rei Negro, e sim como Rei do Mar do Sul.
As palavras, como os seres humanos, nascem, crescem, vivem e morrem. Mas morrem pelo desuso. Estamos vivendo uma estranha época, em que o poder difuso de uma censura que reside sabe-se lá em que escaninhos do Estado – ou da sociedade – pretende assassinar palavras.
A levar-se a sério esta filosofia, até a Bíblia teria de ser reescrita. Pois Sulamita é negra. Pior ainda: negra, mas formosa. Lá está: nigra sum, sed formosa. A Vulgata, por sua vez, deriva da tradução dos Septuaginta - feita a partir do original hebraico - onde está, em grego: Melaina eimi kai kale. Esse "mas" tem sido até hoje uma espinha na garganta dos ativistas negros.
27 de janeiro de 2013
janer cristaldo
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