No computador, ligado para produzir estas linhas semanais de opinião, escuto cantar o artista cearense Belchior, um de meus preferidos do primeiro time da música popular brasileira. O rapaz latino americano que anda outra vez sumido no mundo, interpreta uma famosa música de Chico Buarque de Holanda, gravada no álbum Vício Elegante (1996), no qual empresta seu jeito especial de cantar na regravação de grandes sucessos de compositores da MPB.
A canção que escuto é Almanaque.
Nos versos precisos e bem humorados, um rosário de perguntas incômodas e preocupações inusitadas em "sambas de namoro e amor". Questões levantadas em tempos temerários (a expressão é do grande Nestor Duarte, no título de seu romance fabuloso), pontuados de loucuras, inquietações e dúvidas, mas que os dias correntes na Bahia, em Brasília, em São Paulo, no País e lá fora, revelam que continuam à espera de respostas até agora.
Os fatos, palavras e imagens tristemente produzidos na passagem em Recife, Feira de Santana, Salvador, Brasília e São Paulo, da blogueira Yoani Sánchez, combativa e combatida dissidente do regime dos irmão Castro, em Cuba, são atestados contundentes de atualidade das questões que a música levantava há tantas décadas.
Um triste espetáculo de intolerância e burrice com exposição planetária. Daqueles que o conceberam nos desvãos de palácios, gabinetes e embaixada, e dos que os executaram como "paus mandados" ou inocentes inúteis. É difícil entender – e mais difícil ainda explicar -, um espetáculo assim em Recife: a capital pernambucana de tantos heróicos resistentes em longos combates pela democracia e contra a repressão nos anos da canção de Chico, ou em passado mais remoto.
Ou aquele show grotesco de violência e subserviência misturadas, encenado na noite vergonhosa de quarta-feira passada em Feira de Santana. A gloriosa e honrada cidade na entrada do sertão da Bahia, de tantas jornadas históricas lideradas por um de seus filhos mais ilustres, o saudoso prefeito afastado pelo regime militar-civil em 64, Francisco Pinto.
Mais tarde, o deputado Chico Pinto, que se transformaria em um dos mais dignos e emblemáticos parlamentares da história do País em qualquer tempo. Ao lado do colega e amigo pernambucano Fernando Lyra (que morreu dias antes dos episódios deprimentes nas duas cidades que ele tanto amou e exaltou), Chico Pinto é uma referência nacional do bom combate na política e na vida pública e privada, inimigo ferrenho de todas as ditaduras, até a morte.
Escuto a voz cortante de Belchior emprestada à interpretação da música de Buarque :
"Ó menina vai ver nesse almanaque como é que isso tudo começou / Diz quem é que marcava o tic-tac e a ampulheta do tempo disparou / Se mamava se sabe lá em que teta o primeiro bezerro que berrou”.
Penso: O que e quem teria movido os cordéis daqueles mansos cordeiros do poder, que agora, com olhos inflamados e veias do pescoço quase explodindo de ira, acenam com notas falsificadas de dólares nas mãos. Militantes femininas de presumíveis "partidos de esquerda e ONGs", que puxam os cabelos e tentam intimidar com gestos vis e palavras grosseiras a jovem blogueira cubana. Recebida em sua primeira viagem permitida fora de seu país aos gritos de "vendida ao capitalismo americano", no Aeroporto dos Guararapes, na capital de Pernambuco.
Quanta ironia na cena inacreditável!
Belchior segue com as incômodas perguntas de "Almanaque": Quem penava no sol a vida inteira/ como é que a moleira não rachou?/ Me diz, me diz/ Quem tapava esse sol com a peneira e quem foi que a peneira esfuracou / Me diz, me diz, me responde por favor/ Quem pintou a bandeira brasileira/ Que tinha tanto lápis de cor?”
E a imagem pula para Feira de Santana : A horda ululante impede a exibição do documentário "Conexão Cuba-Honduras", do cineasta baiano Duda Galvão, um dos motivos principais da visita de Yoani ao Brasil. No meio do caos, um momento de luz e lucidez. Na Feira de Chico Pinto, a digna e corajosa figura do senador paulista, Eduardo Suplicy enfrenta a turba enfurecida com uma convocação à reflexão e ao debate. Assim evita o pior, mesmo sem impedir o desastre que já estava consumado.
O resto é o que se viu e se vê no rastro da passagem da blogueira por Brasília, São Paulo e onde quer que vá a dissidente cubana em sua luta, armada com uma câmera e um computador, contra a intolerância e a favor da liberdade de expressão. Ah, e um ar sereno e o riso irônico ao encarar os que a ofendem, parecendo dizer com os olhos: ”Senhor, perdoai-os. Eles não sabem o que fazem!"
Ao fundo, antes do ponto final, Belchior segue com as perguntas da canção de Chico Buarque:
…”Quem é que sabe o signo do capeta/ E o ascendente de Deus Nosso Senhor /Quem não fez a patente da espoleta/ Explodir na gaveta do inventor/ Me diz, me diz, me responde por favor/ Quem tava no volante do planeta/ Quando o meu continente capotou? / Vê se tem no almanaque, essa menina/ Como é que termina um grande amor. Me diz, me diz, me responde por favor/ Se adianta tomar uma aspirina, ou se bate na quina aquela dor?".
Responda quem souber!
25 de fevereiro de 2013
Vitor Hugo Soares - Terra Magazine
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