"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 9 de fevereiro de 2013

MEU CARO SENADOR

 

Parece absurdo falar de ética em pleno carnaval, uma festa dita bárbara, com fama de tudo permitir sem restrição alguma. Não é bem assim. Como o carnaval foi inventado por seres humanos em sociedade, há sempre um contrato de comportamento mútuo entre os que desfrutam dele.
 
Experimente, por exemplo, namorar a mulher do passista de sua escola, enquanto vocês desfilam. Ou tocar o pandeiro fora do ritmo do animado bloco de sua rua. Experimente interromper o baile à fantasia para propor uma oração em memória de ente querido.
 
Nem sempre os acordos morais se baseiam nos mesmos preceitos, eles devem respeitar inúmeras circunstâncias. Mas está necessariamente fora do alcance dessas circunstâncias aquilo que chamamos de direitos humanos, um conjunto de princípios universais que devem valer para qualquer época, espaço, regime, cultura, religião, o que for.
 
É a incorporação desses direitos humanos em nossa cultura que nos causa horror quando lemos no jornal, como se deu essa semana, que o xeque saudita Fayan al-Ghamdi maltratou, torturou e estuprou sua filha de 5 anos, para se vingar da mulher que o abandonara.
 
Não há interpretação de hadith (preceitos religiosos deixados pelo profeta) que justifique o direito de um pai matar a filha e que o criminoso se livre da justiça ao pagar 50 mil dólares de indenização à mãe da menina.
 
Acho que já escrevi aqui, nesse pé de página, que é uma ilusão pensarmos que todo homem nasce livre. Como qualquer outro animal social, já nascemos dependendo uns dos outros. Primeiro de nossos pais e de nossa família, depois da tribo a que pertencemos ou da escola que vamos frequentar. E finalmente da sociedade em que estamos inseridos, com seu estado, suas leis, seus hábitos, sua cultura.
 
A liberdade não é uma condição natural do ser humano. Ela é uma conquista que fazemos no tempo, o exercício de nosso desejo num acordo de respeito ao desejo e consequente liberdade do outro e de cada um.
 
Segundo Karamazov, criado por Dostoievski, a perspectiva de liberdade é uma angústia que muitas vezes não suportamos e desejamos nos livrar dela, depositando-a aos pés do primeiro tirano sedutor que aparecer.
 
Igualmente nada natural é a igualdade entre os homens. O mito da igualdade absoluta gerou os piores regimes que a humanidade moderna conheceu, em nome de raça, classe ou religião. Os homens são e serão sempre singulares e portanto diferentes entre si.
 
É essa diferença que, uma vez respeitada e absorvida, faz a humanidade se desenvolver e construir uma civilização mais justa. Somos iguais perante a mesma lei moral, mas cada um inventa seu destino.
 
Mas a diferença não pode ser pretexto para a opressão. Quando vivemos em sociedade, todos nós temos que ter os mesmos direitos e deveres, as mesmas oportunidades iguais para atender a nossos desejos.
 
O que nos faz aceitar esse acordo social é a possibilidade da convivência em paz, de uma certa harmonia. Como diz Edgar Morin, estamos perdidos num planeta pequeno demais, só a solidariedade é capaz de nos salvar. E o instrumento dessa solidariedade é a ética, a capacidade de viver com o outro debaixo das mesmas regras morais, uma sábia e pragmática invenção do homem que não estava nem está na natureza.
 
Portanto, como já escreveram Zuenir, Ancelmo e tantos outros jornalistas, neste e em outros jornais, a ética, meu caro senador Calheiros, não é meio nem fim. É princípio.
 
A ética é a melhor invenção do homem, um princípio sem o qual não se pode viver em sociedade, não se pode conviver com o outro. Essa história de ética como meio ou fim mais parece conversa entre ideólogos neonazistas e fundamentalistas religiosos.
 
A ética não é uma virtude teologal, senador, mas uma necessidade material que nos protege do barbarismo. É ela que faz com que não saiamos por aí eliminando quem não amamos, roubando o que é de todos, mentindo em nome de nosso próprio proveito pessoal.
 
Ela não nasce com cada um de nós. Como a liberdade e a igualdade, ela é uma conquista da humanidade, um avanço sobre a natureza indiferente a nós. Só o acaso e o que ainda não sabemos, os dois inimigos irreverentes do pensamento, podem mudar isso.
 
Como ser humano, sempre me escandalizo com o fracasso total do ideário politico, cultural e ético das vanguardas do século 20. Independentemente de equívocos de sua prática, as mais belas ideias de hippies e guerrilheiros, talvez seus representantes mais radicais, não deixaram nada na lembrança de ninguém, a não ser caricaturas de expressões como paz e amor e do sacrifício por uma mais justa sociedade humana.
 
Mesmo os que praticaram essas ideias na juventude, esquecem-nas muito rapidamente. Será que a humanidade não deseja ser feliz?
 
É a ética, senador, que nos faz entender, por exemplo, o que disse em momento inspirado um outro parlamentar, o deputado Miro Teixeira, sobre o poder que o senhor preside:
pior que esse Congresso, só um Congresso fechado.
Também acho.

Cacá Diegues é cineasta. O Globo

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