Durante o Carnaval, o Brasil mostra de maneira inequívoca que é um país de adereços incongruentes, de estandartes incoerentes, de enredos absurdos.
Que é a terra do “non sense”. Não que eu deteste o Carnaval, mas é que, inclusive no período do curto reinado de Momo, prefiro não lançar a coerência pelos ares como se fosse serpentina ou confete.
Na verdade, em alguns momentos acho que a velhice bateu à minha porta, apesar de ainda me considerar jovem com 54 anos.
Contudo, confesso que está cada vez mais difícil compreender o Brasil, como “nunca antes na história deste país”.
Em minhas conversas diárias e constantes com Deus, chego a dizer ao melhor e mais poderoso dos meus amigos que tenho a sensação de ser um extraterrestre. Tanto é assim, que já avalio a possibilidade de me candidatar como voluntário a viver na estação que os russos construirão na Lua, porque na Terra, que dizem ser um planeta de seres inteligentes, já não me encaixo, sou um peixe fora d’água. Provavelmente porque fui acometido pela burrice, pela cretinice, pela idiotia. Os adversários a essas alturas estão em festa, com o bloco na rua.
Sendo óbvio, mas não ululante porque essa palavra me causa arrepios, começo pelo começo. Há quem diga que o Carnaval é uma festa popular. Pelo menos foi isso que sempre ouvi na maior parte do tempo nesse pouco mais de meio século de vida. E é dessa forma que o Carnaval está definido nos bons dicionários da nossa tresloucada Terra de Macunaíma.
Pois bem, se o Carnaval é uma festa do povo, aqui faço um questionamento? Como o mais barato ingresso para essa tal festa popular pode custar R$ 200 no Rio de Janeiro e R$ 140, em São Paulo, se o salário mínimo vale a fortuna de R$ 678? Sem contar que o valor dobra para o folião apaixonado, porque as apresentações das escolas de samba se dão em dois dias, em ambas as cidades. Ou seja, o Carnaval é inequivocamente impopular.
Um dos mais festejados carnavalescos de todos os tempos, Joãosinho Trinta certa vez disse que “pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual”. Discordo e não sei de onde Joãosinho Trinta tirou essa filosofia às avessas, mas às vezes penso que na declaração do carnavalesco, dependendo da ótica de análise, há uma dose de verdade. Afinal, Joãosinho nasceu no Maranhão, terra onde o intelectual (sic) José Sarney é louco pela miséria alheia.
Não pode haver achincalhe moral maior do que o rasgar da avenida do samba se dar com fantasias que custam R$ 10 mil ou mais. E a imprensa, que parece viver na Atlântida, ainda destaca que algumas dessas fantasias contêm “trocentas” penas de pavão e outras aves. Resumindo, o Carnaval é injusto porque depena os sempre pobres populares e maltrata os indefesos animais.
O Brasil em termos políticos é um eterno Carnaval. Durante 360 dias por ano desfilam “os bundas”, dando ordens absurdas a um povo que, como bateria cadenciada e afinada, toca o enredo da concordância burra. Nos outros cinco dias, como se o País fosse o maior reduto de voyeurismo, 200 milhões de pessoas param para ver “as bundas”.
Peitos de mentira, barrigas tanquinho, lábios turbinados fazendo bicos, faces “botocadas” fazendo caras. Traduzindo, bunda, no Brasil, é sem dúvida a preferência nacional, não importando se o artigo que a precede é “o” ou “a”. Até porque, no Carnaval todos tiram a bunda da cadeira por causa da folia, mas na hora de protestar ficam com a bunda esparramada no sofá.
Para que ao leitor não pareça que sou ranzinza, explico. No período das bundas (são cinco dias de baderna e porralouquice), abre-se os jornais, liga-se a televisão e acessa-se a rede mundial de computadores e as notícias parecem as mesmas, apesar de diferentes. Mais de dois milhões de foliões no Galo da Madrugada, em Recife.
Mais de dois milhões de foliões no Cordão do Bola Preta, no Rio de Janeiro. No restante do ano, no período “dos bundas” (são 360 dias de sacanagem oficial, roubalheira consentida), um protesto contra a corrupção consegue reunir, na melhor das hipóteses, quinhentas pessoas. Extratificando o pensamento, algumas poucas dezenas de “belas bundas” (às vezes falsas) funcionam como anestésico da consciência na terra “dos bundas”.
Na terra “das bundas” e “dos bundas” há também incongruências, que transformam os cérebros de muitos em uma espécie de “derrière” unânime. Durante décadas a fio, Carnaval se confundia com o Rio de Janeiro e vice-versa. Depois o Carnaval, o espetáculo, despencou na Pauliceia Desvairada e o paulistano precisou aprender o molejo corporal e agregar nova essência à alma para, com o dinheiro sem origem, colocar o samba na avenida.
Se a Receita Federal soltasse o seu Leão em qualquer sambódromo, não sobraria um para cantar o samba. Mas não o faz porque nesse período do ano o Leão fantasia-se de “gatinho manso e bunda”. Experimente, folião acabrunhado, pierrô apaixonado pela colombina, cometer algum erro na declaração do Imposto de Renda.
O felino fiscalizador partirá para cima de você com toda a bateria. Esse tal Ucho é mesmo um chato! O Carnaval brasileiro é o maior espetáculo da terra e nessas horas a lavagem de dinheiro e crime organizado são detalhes tão pequenos…
Ainda nas incongruências… Alguém inventou, um dia, que o grande barato na nossa querida e amada Botocúndia é passar o Carnaval em Salvador, a primeira capital. Foi então que inventaram o trio elétrico.
Por que não é múltiplo elétrico, se em cima do caminhão tem um punhado de gente? A explicação está em seus criadores, Dodô e Osmar. Como dois não formam um trio, enxertaram Temístocles (desde quando folião baiano tem esse nome?) no grupo. Mais de sessenta anos se passaram dessa invenção, mas na cidade que tem a Ladeira da Preguiça um monte de gente faz um trio. Eis a malemolência baiana.
Lá, na terra de todos os santos, compra-se um abadá, por muitos tostões, para ser prensado contra o caminhão do múltiplo trio elétrico, ter algum bêbado fungando no cangote e levar cotoveladas dos seguranças. E há os que pagam mais para segurar na corda. Gosto não se discute!
Neste ano, 2013, que é o da serpente, a peçonha subiu na cabeça de quem faz o Carnaval soteropolitano. Claudia Leitte (a numeróloga mandou dobrar o “T” como se a certidão de nascimento transmutasse) enxergou no trio elétrico um cavalo e dividiu a folia com Psy, o rapper sul-coreano que tornou-se mundialmente famoso porque abusou do ridículo em um vídeo que virou febre na internet.
E o circuito Barra-Ondina, acostumado a sacudir na esteira do axé, dançou ao som da música “Gangnam Style”. Ou seja, até em Salvador a desleal concorrência dos produtos estrangeiros, que os tecnocratas verde-louros tanto condenam, já se faz presente. Como no Brasil rouba-se de tudo e impunemente, Psy roubou a cena apenas porque o ridículo transformou-o em celebridade.
Fazendo um voo rápido de Salvador para o Rio de Janeiro, desembarcamos na polêmica do xixi. Na Cidade Maravilhosa é proibido fazer xixi na rua. Em tempos outros, isso era considerado atentado ao pudor. Mas quem toma uma dúzia de latas de cerveja não sabe o que significa pudor. Sem contar que ter vontade de fazer xixi e não poder é o mesmo que estar preso e não ter como fugir. Em algum momento faz-se uma bobagem.
Minha mãe me ensinou, ainda na infância, que fazer xixi na rua era feio. No Rio eles levam para a delegacia. Neste sábado de Carnaval, mais de cem foliões tiveram de encaram o “dotô” delegado.
Que coisa ridícula! O sujeito se submete ao vestibular, estuda Direito e presta concurso para ser delegado, mas acaba registrando ocorrência de urina, quando deveria mandar ao xadrez o governador por suas farras com guardanapo amarrado na cabeça.
É verdade que certas coisas só se faz nos lugares apropriados, mas o Brasil tem na lista de prioridades algumas preocupações que são um atentado violento contra o bom senso. Por exemplo, no Rio fazer xixi na rua é proibido e a Secretaria Municipal da Ordem Pública coordena a repressão aos “bigolins” desesperados, mas quando as ruas cariocas inundam, a prefeitura entende que isso é normal.
É o que o Rio tem para mostrar ao mundo. Resumindo, cem pessoas fazendo xixi no paredão ou atrás da árvore é caso de polícia, mas um oceano de lama e bactérias mil invadindo casas e negócios é legal e deve ser louvado.
Tudo bem, o Brasil é o país do jeitinho, da alegria, do povo caloroso e receptivo. Essas mazelas são quireras perto do que temos por aqui em termos de belezas naturais. Afirma Jorge Ben, que também é Jor, que mora em “um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, mas que beleza, em fevereiro tem carnaval…” Confesso que além de crer em Deus, sou um homem de fé e rezo pela cartilha da coerência, mas abençoado não pode ser um país em que fazer xixi é proibido e Renan Calheiros ser presidente do Senado é permitido.
Recepcionado pelo mestre-sala da fé, puxo o samba-enredo da coerência. Ó Deus, escutai as nossas preces, os nossos cantos, os sambas dos brasileiros de bem. Limite o Carnaval a esses cinco dias oficiais, imploda a passarela do crime em que se transformou o Congresso Nacional, transforme em Judas, com direito a postes e malhações, os políticos corruptos.
Sei que o Senhor acha o Carnaval uma festa profana, mas é melhor algumas belas bundas durante cinco dias, do que encarar o bando “dos bundas” no resto do ano. Certas bundas são divinas, dizem, mas eu ainda prefiro neurônios turbinados, a rima da coerência, a apoteose da lógica.
Suplico, Senhor, pois um dia me disseram que o Brasil era o paraíso! Se agenda estiver cheia, apesar da Sua onipotência, compreenderei perfeitamente. Mas sairei cantando “Allah, meu bom Allah”, porque aqui já são muitas as camélias que caíram do galho do endividamento e morreram depois de dois suspiros diante do cobrador.
Porque “tanto riso, oh quanta alegria” só há na Praça dos Três Poderes, que não é como a Castro Alves, que é do povo. São mais de mil palhaços no salão, todos com a máscara negra da corrupção. A classe política vive na ilegalidade como se cantasse sem parar “mamãe eu quero”. E os políticos já não contentam com a chupeta, eles só querem saber de mamar.
Senhor, suplico novamente, escutai as nossas preces e não me leve a mal, hoje é carnaval!
10 de fevereiro de 2013
ucho.info
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