Segundo assessores, Lula e Dilma Rousseff interpretaram a decisão de embalsamar o cadáver de Hugo Chávez como, essencialmente, uma estratégia eleitoral. Eles olham para outro lado, evitando confrontar a incômoda realidade que, cedo ou tarde, assombrará o Brasil. A múmia em Caracas é o indício inconfundível de uma regressão histórica da esquerda latino-americana e, além disso, um sinal agourento de que os sucessores do caudilho não pouparão a Venezuela do trauma da implantação de uma “ditadura bolivariana”.
A mumificação deliberada expressa uma exaltação do desejo de permanência. No antigo Egito, o corpo do morto devia ser embalsamado para que ele vivesse eternamente, a fim de conhecer Osíris, a divindade da vida após a morte.
Na política laica contemporânea, a prática tem um sentido radicalmente diferente, pois não se destina a promover um interesse do morto, mas a exercer influência sobre os vivos. O morto deve ser eternizado a fim de aprisionar o presente na jaula do passado, impedindo que a vida siga adiante.
“O corpo do presidente Chávez será embalsamado como Lenin e Mao”, anunciou Nicolás Maduro, o sucessor designado. Nada indica que Vladimir Lenin desejasse ser convertido em múmia e Mao Tsé-tung deixou assinada uma ordem para sua cremação.
Os dois líderes revolucionários consagraram-se ao empreendimento intelectual de embalsamar o pensamento de Karl Marx, mas, justamente por isso, rejeitavam a ideia de que, um dia, eles mesmos viessem a ser circundados pelo halo do sagrado.
Ao contrariar a vontade derradeira dos líderes mortos, enquanto juravam fidelidade imorredoura a seus ensinamentos, os sucessores inseguros almejavam congelar a vida política, perenizando-se no poder.
Crítica da economia política é o subtítulo de O capital. A palavra “crítica” permeia os textos de Marx. O suposto inspirador dos líderes mumificados no Kremlin e na Praça da Paz Celestial inscreve-se na linhagem do pensamento iluminista: a “crítica”, em Marx, é um movimento racional de recepção, interpretação e superação da tradição intelectual. O estabelecimento de uma “verdade marxista” e sua calcificação como doutrina oficial representam a negação do núcleo do pensamento “marxista”.
O mausoléu de Lenin, uma construção em granito reminiscente da tumba do imperador Ciro II, e o de Mao, com sua fachada em colunas neoclássicas, são símbolos apropriados de regimes bárbaros, apoiados sobre a bengala da violência política sem freios e devotados à supressão extensiva da crítica.
Marx não foi, contudo, exclusivamente um pensador. Existe um outro Marx, o doutrinário comunista, cujas ideias podem funcionar como fonte de legitimação da barbárie totalitária. “Os filósofos se limitaram até hoje a interpretar o mundo; cabe transformá-lo” ─ a última das Teses sobre Feuerbach proclama, no fim das contas, que a revolução social é o critério definitivo a respeito da verdade.
A frase célebre foi eternizada na parede de mármore do saguão da Universidade Humboldt, em Berlim, pelos dirigentes da antiga Alemanha Oriental. Eles estavam dizendo que o poder estatal comunista era a culminância da filosofia, a estação final do pensamento humano. A reverência absoluta diante da verdade oficial: eis a exigência simbolizada na mumificação de Lenin, Mao e, agora, Chávez.
Nas democracias, por definição, os estadistas são pessoas comuns, sujeitas ao acerto e ao erro, cuja legitimidade deriva de uma vontade popular circunstancial. Na Venezuela, o culto a Chávez atinge um paroxismo, expresso no novo qualificativo que começou a circular durante o velório: no lugar do “Comandante”, surge o “Líder Supremo da Revolução Bolivariana”.
A Venezuela já não é uma democracia, mas ainda não se fechou atrás da muralha de uma ditadura. A iniciativa de embalsamar o líder morto constitui um passo simbólico de largas proporções no rumo ditatorial.
Por meio dela se materializa na forma de uma múmia a declaração recorrente dos chefes chavistas, que identificam a nação à sua própria corrente política. Chávez não é Chávez, mas Simón Bolívar, ou seja, a nação inteira: isso é o que, de fato, dizem os herdeiros mumificadores.
Em Cuba, o culto a Fidel Castro realiza-se indiretamente, pelos cultos oficiais paralelos a José Martí e Che Guevara. “Ser como o Che”, ensina-se aos cubanos desde os bancos escolares, significa curvar-se à verdade do Partido.
Na Venezuela, como sinal eloquente de que não há uma novidade genuína no “socialismo do século 21″, a exigência de “ser como Chávez” já faz parte da linguagem política utilizada pelos herdeiros do caudilho.
Esse tipo de linguagem, porém, não pode prosperar no ambiente da democracia, que é o da crítica e da dissensão: a múmia de Chávez e as liberdades públicas são termos alternativos na equação do futuro venezuelano.
A esquerda europeia aprendeu o valor da liberdade numa longa trajetória pontuada pela Revolução Russa, pelo stalinismo, pelas invasões soviéticas da Hungria e da Checoslováquia e pelas revoluções democráticas de 1989. A esquerda latino-americana não viveu tais experiências definidoras, apenas ouviu seus ecos distantes.
De certo modo, a Revolução Cubana e o mito de Che Guevara forneceram-lhe uma casamata ideológica, isolando-a da crise histórica e moral que lançou uma luz esclarecedora sobre as múmias de Lenin e Mao.
Tomada no interior dessa casamata, a decisão de embalsamar o corpo de Chávez entrelaça a sorte da esquerda autoritária na América Latina à de um regime bolivariano em declínio, que só pode oferecer a sombria perspectiva de uma ditadura terceiro-mundista.
Antes de significar um salto ousado rumo ao futuro, revolução designava apenas o movimento cíclico de eterno retorno dos astros. A mumificação dos “líderes supremos” restaura o significado original da palavra, anulando as suas associações com a crítica, a ruptura e a renovação.
15 de março de 2013
DEMÉTRIO MAGNOLI, Estadão
‘As estatais não têm jeito’
Não é por nada, não, mas se a gente pensar seriamente na história recente da Petrobras, sem paixões e sem provocações, vai acabar caindo na hipótese maldita, a privatização.
A estatal teve bons momentos, colecionou êxitos, acumulou tecnologias e formou quadros. Mas, sempre que isso aconteceu, não foi porque se tratava de uma estatal. A companhia foi bem sempre que agiu como petrolífera, digamos, normal, quase independente.
Já quando foi mal, como vai hoje, a causa é evidente: a condição de estatal.
Radicalizando, poderia se dizer que, quando a Petrobras funciona, consegue isso apesar de ser estatal. Mas todos sabemos que há petrolíferas estatais muito bem-sucedidas pelo mundo afora.
Como também há outras simplesmente desastrosas, e, como a própria Petrobras alternou períodos positivos e negativos, a questão é: como uma estatal pode fracassar?
A resposta está diante de nossos olhos. Trata-se do pecado mortal da politização, que se manifesta de duas maneiras complementares: a nomeação de diretores e chefes não por sua competência e sua história na empresa, mas pela filiação política ou sindical; e a definição dos objetivos e meios da empresa não por análises econômicas, e sim pela vontade dos governantes e das forças políticas no poder.
Não é preciso pesquisar nada para se verificar que a Petrobras caiu nesses dois buracos nos governos Lula e Dilma. A disputa pelos diversos cargos da companhia tornou-se pública, com os partidos e grupos reclamando abertamente as posições de que se julgavam merecedores. Lula, em entrevista formal, contou o quanto interferiu no comando da estatal, levando-a a ampliar projetos de investimentos claramente incompatíveis com as possibilidades da empresa e as condições do mercado.
Foi a atual presidente da Petrobras, Graça Foster, quem admitiu o irrealismo daqueles planos. E também o ex-presidente da Agência Nacional de Petróleo, Haroldo Lima, reconheceu que a vontade de Lula prevaleceu sobre os argumentos técnicos na definição das regras para a exploração do pré-sal.
Ora, isso demonstra que a blindagem montada no governo FHC simplesmente não funcionou. Em 1997, por emenda constitucional o monopólio do petróleo foi transferido da Petrobras para a União. A partir daí, a União passou a leiloar os direitos de exploração dos poços, abrindo a disputa para empresas privadas nacionais e estrangeiras. A Petrobras passou a competir no mercado.
Para garantir a despolitização, o governo estabeleceu regras de governança para a estatal e criou a tal Agência Nacional de Petróleo, órgão independente, administrado por diretores técnicos, com mandatos, encarregada de organizar e fiscalizar o setor de petróleo, gás e outros combustíveis.
Parecia um bom arranjo. O presidente da República indicava os diretores das agências, mas respeitando critérios de conhecimento técnico e experiência, que seriam checados pelo Senado, responsável pela aprovação final dos indicados.
Isso não eliminava as decisões dos políticos eleitos pelo povo. Como acionista majoritário da Petrobras, por exemplo, o governo federal poderia determinar a estratégia da companhia no Conselho de Administração, como acontece em qualquer grande empresa. Mas a execução tinha de ser feita tecnicamente, mesmo porque a empresa havia perdido o monopólio e precisava competir.
O que aconteceu no governo Lula? O Senado, como faz nos outros casos, simplesmente tornou-se um carimbador de indicações para a diretoria da ANP, assim como para as demais agências reguladoras. Os partidos passaram a lotear abertamente esses cargos. No governo Dilma, o Senado negou uma única indicação, e por um péssimo motivo. Tratava-se de um quadro competente, mas os senadores da maioria queriam mandar um recado para a presidente, colocar um obstáculo para cobrar uma fatura.
Tudo considerado, o que temos? As regras de governança e o sistema de agências atrapalharam um pouco, deram mais trabalho aos governos Lula e Dilma, mas não impediram que se politizasse inteiramente a companhia e o setor.
A crise dos royalties é uma consequência disso. Também os cinco anos sem leilão de novos poços, o que atrasou a exploração do óleo. E isso levou o Brasil a ser cada vez mais dependente da importação de óleo e combustíveis, ao contrário do que dizia a propaganda oficial do governo Lula.
Sim, a nova presidente da Petrobras tem feito alguma coisa para levar a companhia a uma atuação mais técnica. Mas são evidentes as suas limitações.
O PSDB ataca a gestão petista na Petrobras e diz que, no governo, faria a “reestatização” da companhia. Ou seja, voltaria ao sistema da era FHC.
Nada garante que isso garantiria despolitização. Na verdade, a história recente prova o contrário: na política brasileira, não há como garantir uma gestão eficiente das estatais — e sem falar de corrupção.
Logo…
15 de março de 2013
CARLOS ALBERTO SARDENBERG
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