“Saia de nosso país”, lia-se no cartaz, sob uma foto do rosto de Angela Merkel, ao qual acrescentara-se um bigode “a la Hitler”. Diante do parlamento cipriota, em Nicósia, a manifestante — uma pacata senhora de meia idade — repetia um gesto banalizado nas praças de Atenas, Lisboa, Madri e até Roma.
Entre os manifestantes, a chefe de governo da Alemanha personifica a “Europa”, essa entidade geopolítica ainda mais abstrata que um Estado-Nação. A identificação esclarece as raízes da crise da União Europeia.
Chipre é um caso singular, mas também uma lição eloquente sobre o que está em jogo. Seu setor financeiro, que faliu em decorrência da quebra grega, possuía ativos oito vezes maiores que o PIB e operava como lavanderia do dinheiro sujo das máfias russas. Por isso, a União Europeia desviou-se dos modelos aplicados nos demais países endividados, exigindo como contrapartida do pacote de resgate um confisco parcial dos depósitos bancários no país.
A solução original, contudo, implicava a violação da promessa solene, anunciada no início da crise do euro, de preservar os direitos dos depositantes, em valores inferiores a cem mil euros. O precedente conta: se euros podem ser confiscados na ilhota do Mediterrâneo oriental, o que impede que sejam confiscados em Portugal ou na Espanha?
“Este é um ato indisfarçável de expropriação — em outras palavras, algo do arsenal da luta de classes dos bocheviques, não da política econômica civilizada”, reagiu o “Moskovskiy Komsomolets”. O jornal, um porta-voz quase explícito do Kremlin numa Rússia que realizou o sonho petista do “controle social da mídia”, defendia cinicamente os interesses das máfias russas, mas tocava no nervo sensível da confiança.
Confiança é o outro nome do dinheiro: o verdadeiro lastro de todas as moedas do mundo. Em Chipre, o cristal da confiança no euro foi trincado pela segunda vez. A primeira, na Grécia, derivou da “expropriação” das instituições financeiras detentoras de títulos da dívida pública.
No país insular, o plano original, rejeitado pelos parlamentares, era mais grave: atingia cidadãos comuns, junto com mafiosos estrangeiros. Já o plano definitivo, que expropria massivamente os grandes depositantes russos e nem mesmo foi submetido a voto no parlamento, equivale à destruição do motor da economia cipriota. Nenhum investidor voltará a colocar dinheiro naquela ilha em futuro previsível — e muitos pensarão duas vezes antes de comprar ativos financeiros denominados em euros.
Merkel maneja, de fato, o timão da “Europa” abalada pela crise do euro. Sua estratégia deflacionária de austeridade provoca implosões sucessivas nos pilares que sustentam o edifício europeu. Contudo, o bigode de Hitler não lhe cai bem: a “ditadura” exercida pela “troika” (União Europeia, Banco Central Europeu e FMI) sobre os governos nacionais eleitos não deriva da vontade da Alemanha, mas precisamente da frustração da vontade alemã na hora do tratado da união econômica e monetária.
O ano era 1990, meses depois da queda do Muro de Berlim e apenas semanas antes da reunificação alemã. Do presidente François Miterrand, emergira a proposta da união monetária, um preço que a Alemanha deveria pagar pela restauração da unidade nacional.
Cedendo à posição francesa, o primeiro-ministro Helmut Kohl contrariou o Bundesbank, banco central de seu país, que não escondia o temor provocado pela lendária irresponsabilidade fiscal dos países do Mediterrâneo. A moeda comum serviria para soldar os destinos alemães aos da “Europa”, um objetivo geopolítico que valia a dolorosa renúncia ao marco.
Kohl conhecia os riscos e tinha uma solução. “A união política é a contrapartida essencial da união econômica e monetária”, explicou numa sessão do Bundestag, o parlamento alemão, em novembro de 1991, durante as negociações do Tratado de Maastricht. “A história recente, e não apenas da Alemanha, ensina-nos que é absurdo imaginar que se possa manter a união econômica e monetária, a longo prazo, sem uma união política”.
“União política” era sua senha para a criação de um organismo europeu de fiscalização e controle dos orçamentos dos governos nacionais. A ideia, contudo, quebrou-se de encontro ao rochedo da oposição de Miterrand. A França almejava partilhar o controle sobre a moeda alemã, mas não contemplava a hipótese de ceder à Alemanha o controle sobre o orçamento francês.
Do impasse, nasceu o euro, uma “criança enferma”, na expressão de Timothy Garton Ash, embalada no berço dos “critérios de convergência” de Maastricht, o nome pomposo de uma promessa vazia de responsabilidade fiscal.
O poder de emitir dinheiro é inseparável do poder de emitir dívida. O Tratado de Maastricht, porém, separou um do outro, entregando o primeiro ao Banco Central Europeu e conservando o segundo nas mãos dos governos nacionais. A cisão, que Kohl qualificava como “absurda”, reflete a tensão entre o projeto supranacional da “Europa” e a persistência dos Estados nacionais europeus.
A crise do euro, derivada daquela cisão, pode ser descrita como uma dupla recusa: a rejeição alemã a uma “união da dívida” e a rejeição dos demais países à cessão do poder soberano de emitir dívida.
A União Europeia foi concebida em 1952, quando a Alemanha aceitou compartilhar a soberania sobre seus recursos siderúrgicos, e assumiu a forma atual em 1992, quando a Alemanha aceitou compartilhar a soberania sobre a sua moeda. Os dois passos, separados por quatro décadas, obedeceram ao imperativo político de construir uma “Alemanha europeia”, conjurando para sempre o espectro de uma “Europa alemã”. Ironicamente, porém, o fruto final deles foi o surgimento de uma “Alemanha europeia” no timão de uma “Europa alemã”.
Desenhar um bigode em Merkel pode não ser justo, mas expressa emblematicamente a frustração provocada por esse fruto inesperado do projeto supranacional europeu.
27 de março de 2013
Demétrio Magnoli é sociólogo
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