Em meus dias de guri, trabalhava na lavoura com meu pai, ceifando aveia, quando passou pela Linha Divisória um vendedor de livros em uma charrete. Seriam meados dos 50. Vendia livros de culinária. Vender livros de culinária naquela geografia – e naquela época - decididamente exigia certa coragem intelectual. Meu pai, que sempre desconfiou de gente bem falante, cheia de erres e esses, desconhecia a palavra. Eu teria uns nove ou dez anos. Lembro como se fosse hoje. Já demonstrando alguma hostilidade, de foice em punho, perguntou:
- Cu de quem?
Deu-lhe água e aveia para o cavalo, isso não se nega a ninguém. Nesses pagos nasci. No fundo, ainda sou um camponês. Como meu pai, até hoje continuo um pouco hostil a certas res civitas, ad efeminandos animus pertinent - como dizia César, se bem me lembro de meu latinório de ginásio. As coisas da cidade que servem para efeminar os ânimos.
Entre elas, as psicoterapias. Ao chegar na urbe, ainda olhava com desdém para a culinária. Mais ou menos a história da raposa e as uvas. Sem falar que, em Dom Pedrito, churrasco à parte, não havia culinária. Ora, churrasco já fazia parte de meu passadio no campo. Viajando, civilizei-me. Hoje vejo a culinária como um dos grandes momentos da cultura, não só pelo que se come, mas pelo que se aprende da história dos povos.
Quanto a psicoterapias, penso até hoje que são frescuras de bundinhas da cidade, como dizia Leonel Brizola. As bombachas não deixam o traseiro saliente. Já as calças corridas evidenciam esta parte da anatomia. Daí a expressão.
Desde há muito considero debilidade do ser humano recorrer a psicanalistas e psicólogos. Há uns dois anos, denunciei uma vigarice nova no mercado, a terapia do luto. Dizia uma atriz que optou pela terapia do luto após perder o filho no ano passado: "A terapia do luto foi fundamental para que eu conseguisse sobreviver à maior dor de um ser humano. "Consegui isso com a ajuda terapêutica de Adriana Thomaz. Com ela, entendi melhor a morte, como fazer a conexão com o amor do meu filho e como reaprender a viver."
Essa, agora! Pelo jeito, o homem contemporâneo, apesar de milênios de evolução, ainda não aprendeu a lidar com o mais corriqueiro dos fatos humanos. Se a moda pega, os terapeutas do luto vão brotar como cogumelos após a chuva. Se cada vez que morre uma pessoa querida, temos de pagar um analista para enfrentar sua morte, o leitor pode ter uma idéia do baita mercadão que se abre aos gigolôs das angústias humanas. Não estamos longe do dia em que será necessário um terapeuta para enfrentar a menarca ou a morte do cachorrinho.
Quando minha mulher morreu, coincidiu que na semana seguinte eu tinha consulta marcada com uma nefrologista. Ainda abalado, falei do acontecido e, inevitavelmente, chorei. “Quem sabe tu procuras um terapeuta?” – me sugeriu a médica. Quase perdeu o cliente. Eu passara minha vida toda denunciando essa malta de exploradores da fé dos incultos que, sem terem bem gerido suas vidas, dão-se ainda ao desplante de cobrar caro para gerir vidas alheias. No meu luto ninguém mexe. Morrer faz parte da vida. Quem não entendeu isto, não entendeu o que é viver.
Agora, de novo. Passei por uma cirurgia complexa, fiz traqueostomia e passei 36 dias no estaleiro. Saí de lá um caco. A primeira a perguntar-me foi minha fiel secretária de assuntos domésticos:
- O senhor já tem psicólogo?
Só o que faltava! Pelo jeito, a moda já chegou à periferia. Como ainda não tenho voz, escrevi na telinha do computador:
- Nós, ateus, somos fortes, Cristina. Não necessitamos de muletas.
A pergunta dela, entendo. Deve ver muita novela de televisão e trabalha junto a dondocas que não dispensam psicanalista. Já falei de certas vigarices que exigem um mínimo de cultura para envolver as vítimas. Psicanálise é uma delas. Outra é o marxismo. Fale de psicanálise para um camponês. Ou mesmo para um favelado. Ele vai achar muito estranho.
Quando me vi preso a uma cama, cheio de sondas e drenos, disse aos amigos que me salvaram in extremis: morrer seria mais confortável. Hoje, mais ou menos recuperado, continuo ainda pensando assim. Sofri uma caput diminutio. Minha qualidade de vida diminuiu. Devo em breve adquirir voz. Mas será uma voz ou aos haustos, ou rouca, ou metálica.
Adeus palestras, que tanto adoro. Falar é um de meus prazeres diletos. Tenho um pequeno vício. Se estou em um bar mais íntimo, começo a narrar minhas viagens em voz baixa. Aos poucos, os vizinhos de mesa vão silenciando. Baixo mais a voz. Lá pelas tantas, só eu estou falando. Conto uma piada e, de repente, uma gargalhada geral inunda o ambiente. Já consegui fazer isso em Paris e Madri. Exige um público inteligente e cosmopolita. No Brasil, nunca obtive tal efeito.
Por outro lado, nada mais confortável do que morrer durante uma anestesia. Desastre aéreo também é bom, mas morrer dormindo é uma benção dos deuses.
Quando saí da UTI, perguntei: alguém pratica eutanásia por aqui? Olhares indignados e manifestações de apreço e esperança. Nada disso, em breve você estará lépido e forte. Nem subornando? – insisti. Nada feito. Considerando bem, vivi duas vezes a vida do Cristo. Conheci mais mundo do que ele, que na verdade estava cercado por um vasto anecúmeno. Jamais proferi as bobagens que ele disse. Nem vou gozar da vida eterna, essa chatice sem fim.
Quer dizer, já está de bom tamanho. Se tivesse capotado durante a cirurgia, estaria ainda livre dos dissabores que, mais cedo ou mais tarde, são tributos da velhice. Quando fui para a sala de cirurgia, fui com uma certa esperança de morte.
Fui salvo. Não posso agora jogar fora o esforço dos médicos e amigos que me salvaram. Nada mais me resta senão seguir tocando a vida. Isso sem falar daqueles leitores que não gostariam que eu partisse já. Que a Cristina perguntasse por psicólogos é inteligível, dizia. Ela já foi contaminada pelas dondocas que serve. Mas não passa dia sem que a cobrança de psicoterapias não volte. Fui visitar o cirurgião que reconstituiu minha laringe a partir da pele de meu ombro. Médico jovem e talentoso, criou um método único desta cirurgia, que hoje é objeto de teses universitárias. No entanto, lá veio a pergunta inevitável:
- Você tem apoio psicológico ou psiquiátrico?
Fiz com a cabeça um gesto negativo. É duro numa hora dessas não ter voz. Me comunico por escrito, mas seria muito exaustivo dizer tudo o que pensava escrevendo. Espantoso ver como pessoas talentosas e mesmo cultas depositam fé nessas vigarices. Que vai me dizer um psi? Vai consolar-me da perda de minha voz? Não vai. Aceito minha nova condição, sem precisar de muletas para apoiar-me. Terá o homem urbano contemporâneo se transformado num maricas, que a cada adversidade precisa consultar um gigolô das angústias humanas para aceitá-la?
Soube então que o cloridrato de venlafaxina que estava tomando era um antidepressivo. Se soubesse, o teria dispensado por conta própria.
É possível que eu tenha o que os médicos da psique chamam de neuroses. Se as tenho, ninguém além de mim mexe nelas. Sempre extraí de mim mesmo as forças que necessito para continuar vivendo. Só o que faltava pagar alguém para me ouvir. Se não cobro pelo que falo, não vou pagar pelo que ouço.
E neste mundo vivemos, cercados de pobres diabos, que mal acometidos por luto ou cirurgia, vão correndo buscar apoio terapêutico. Falta fibra ao homem contemporâneo. Para mim a melhor terapia é uma bodega em Madri ou um bistrô em Paris. Para esta terapia reservo meus tostões.
08 de abril de 2013
janer cristaldo
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