Dom Odilo Scherer, cardeal-arcebispo de São Paulo, lembrou ontem no Estadão os mártires São Justino e seus companheiros.
- Presos sob a acusação de "heresia", por se recusarem a adorar o imperador e seus deuses oficiais, Justino e seus companheiros foram interrogados por Rústico, prefeito da cidade – diz o cardeal –. Depois de arguir os acusados quanto às suas convicções, Rústico os ameaçou: "Agora vamos ao que interessa, aproximai-vos e, todos juntos, sacrificai aos deuses. Se não o fizerdes, sereis torturados sem compaixão". Diante da recusa firme dos cristãos, o prefeito sentenciou: "Os que não quiseram sacrificar aos deuses e obedecer à ordem do imperador, depois de flagelados, sejam levados para sofrer a pena capital". E, assim, Justino e seus companheiros foram torturados e decapitados.
Duros tempos aqueles. Sua Eminência só não lembra os mártires dos outros cristianismos, daqueles cristianismos que foram relegados à condição de heresia, por não serem convenientes ao poder da Igreja. Sim, porque houve muitos cristianismos. Só vingou um, o que matou ou mandou para o exílio ou para a fogueira o maior número de dissidentes. O da igreja triunfante de Roma.
Dogma é fogo. Quando bispos se reuniam em concílio para saber se deus era um em três ou três em um, ai daqueles que perdiam a discussão. Eram enviados ao exílio ou à fogueira. Os santos padres levavam os plebiscitos a sério. Não era como esta bagunça hodierna, em que os defensores de uma tese no Congresso ou no Supremo perdem uma causa e ainda ficam chiando nos jornais.
Nos séculos II e III – escreve Bart Ehrman em Os Evangelhos Perdidos – havia cristãos que acreditavam que a morte de Jesus trouxera a salvação do mundo. Outros pensavam que a morte de Jesus nada tinha a ver com isto. Havia ainda uma corrente segundo a qual Jesus nunca morreu. O autor faz algumas perguntas que jamais ocorrem aos seguidores contemporâneos do Cristo.
- Como poderiam algumas destas visões até mesmo ser consideradas cristãs? Ou, colocando a questão de forma diferente, como as pessoas que se consideravam cristãs poderiam defender tais crenças? Por que não consultavam suas Escrituras para ver que não eram 365 deuses, ou que o verdadeiro Deus havia criado o mundo, ou que Jesus havia morrido? Por que elas simplesmente não liam o Novo Testamento?
É simples para Ehrman. É por que não havia Novo Testamento. “Com certeza, os livros que foram finalmente reunidos no Novo Testamento haviam sido escritos em torno do século II, mas eles não tinham sido ainda agrupados em um cânone autorizado e amplamente reconhecido de Escritura. E havia também outros livros igualmente impressionantes – outros Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipses, que declaravam ter sido escritos pelos apóstolos terrenos de Jesus".
As visões diferentes do cristianismo ou do Cristo foram tantas que geraram dicionários. Em Petit Léxique des hérésies chretiennes, Michel Theron cita nada menos que 232 heresias. 232 cristianismos que não vingaram. Colho na rede algumas seitas.
Antinomianismo - A idéia de que não há nenhuma obrigação de obedecer a legislação de ética ou moralidade, tal como apresentado por autoridades religiosas.
Audianismo - A crença de que Deus tem forma humana (antropomorfismo) e que se deveria comemorar a morte de Jesus durante a Páscoa judaica (quartodecimanismo).
Donatismo - Donatistas eram rigorosos, sustentando que a Igreja deveria ser uma igreja de santos, sem pecadores, e que os sacramentos, como o batismo, administrado pelos traditores (cristãos que renderam as Escrituras para as autoridades que proibiram a posse delas) eram inválidos.
Ebionismo - A seita judaica que insistiu na necessidade de seguir a lei judaica e ritos religiosos5 que interpretadas à luz de Jesus expondo da lei6 Consideravam Jesus como o Messias, mas não como divino. Os ebionitas reverenciavam seu irmão Tiago como o chefe da Igreja de Jerusalém e rejeitaram Paulo de Tarso como um apóstata "da lei". Seu nome sugere que eles colocaram um valor especial sobre a pobreza religiosa.
Marcionismo - Um cristianismo primitivo dualista. Os Marcionitas afirmavam Jesus Cristo como o salvador enviado por Deus e o apóstolo Paulo como seu chefe, mas rejeitavam a Bíblia hebraica e Javé. Marcionistas acreditavam que o colérico Deus hebraico era uma entidade separada e menor do que o misericordioso Deus do Novo Testamento. Esta opinião foi de certa forma semelhante à teologia cristã gnóstica, mas de outras maneiras diferentes.
E por aí vai. Euquitas, joanistas, mandeístas, maniqueístas, montanistas, paulicianistas, priscilianistas, naassenos, notzrim, setianos, ofitas, valentinianistas, etc., etc., etc. Sem entrar no mérito das demais heresias, fecho totalmente com os notzrim: Jesus seria uma invenção literária (Msiha kdaba) de Paulo de Tarso. Estes cristianismos foram derrotados e jogados à famosa lata de lixo da História. Hoje, viraram verbetes de enciclopédias e só são lembrados por historiadores e estudiosos das religiões.
- Os cristãos continuam sendo o grupo religioso mais perseguido em todo o mundo – continua o cardeal-arcebispo -. “Se aqui me refiro apenas aos cristãos, não é por desconhecer que existem discriminações e violências também contra outros grupos religiosos. Há poucos dias, Silvano Maria Tomasi, observador permanente da Santa Sé na ONU, em Genebra, fez uma denúncia alarmante: mais de 100 mil cristãos têm sido assassinados anualmente em todo o mundo por razões ligadas, de alguma maneira, à sua fé”.
Quantas outras centenas de milhares de outros cristianismos a Santa Madre abafou com a perseguição de seus crentes ao longo da história? Destes mártires, dom Odilo não fala.
Teólogos não brincavam em serviço. Houve época em que a Igreja esteve a ponto de cindir-se por uma única letra. No início do século IV– conta-nos Ehrman – na época de Ário, professor cristão da Alexandria, praticamente a Igreja inteira concordava que Jesus era ele mesmo divino, mas que havia apenas um Deus. Mas como exatamente isso funcionava? Como ambos podiam ser Deus?
Ário considerava ter havido um tempo no passado distante antes do qual Cristo não existia. Ele passou a existir em determinado momento. Embora fosse divino, não era igual a Deus Pai; como era o Filho, era subordinado a Deus Pai. Eles não eram “da mesma substância”; eram “similares” em substância. O oponente mais conhecido a esta tese era Atanásio, justo aquele que seria mais tarde responsável pelo cânone do Novo Testamento. Para Atanásio, o Cristo era feito exatamente da mesma substância – homoousias, em grego - que o Pai. Nada a ver com substância similar – homoiousias. E a Igreja arriscou cindir-se por um i.
Foi quando o imperador Constantino, que havia se convertido ao cristianismo para unificar seu império fragmentado, deu-se conta que uma religião dividida não podia produzir unidade. Convocou então o Concílio de Nicéia, em 325 d. C., que optou pela posição de Atanásio. Há três pessoas em Deus. Elas são distintas umas das outras. Mas cada uma é igualmente Deus. Todas as três são seres eternos. E todas as três são feitas da mesma substância. Atanásio venceu e Ário foi excomungado.
Os hereges – todos – foram mártires à sua maneira, em virtude da atitude tirânica da facção que acabou assumindo as rédeas da Santa Madre. Isso sem falar na Inquisição, que mandou para a fogueira os cátaros, valdenses, templários, as beguinas, John Wycliffe e os lolardos, Ian Huss e os hussitas, Giordano Bruno, Joana d’Arc. Neste caso, a igreja deu-se ao luxo tanto de queimar la Pucélle, como de mais tarde reciclá-la como santa.
Oficialmente, a idéia da criação da Inquisição surgiu em 1183, quando delegados enviados pelo Papa averiguaram a crença dos cátaros de Albi, sul de França, também conhecidos como albigenses, que acreditavam na existência de um deus do Bem e outro do Mal. Cristo seria o deus do bem enviado para salvar as almas humanas e o deus criador do mundo material seria o deus do mal. Isto foi considerada uma heresia e no ano seguinte, no Concílio de Verona, foi criado o Tribunal da Inquisição.
Na verdade, a Inquisição já está latente no século IV, sob o império de Constantino, o primeiro imperador romano a converter-se ao cristianismo, que transformou a seita dissidente do judaísmo em religião oficial do Estado romano. De lá para cá, os que não quiseram sacrificar ao deus cristão e obedecer às ordens da Santa Madre, depois de flagelados, foram levados para as fogueiras, como diria Rústico. E como dom Odilo esquece.
09 de junho de 2013
janer cristaldo
- Presos sob a acusação de "heresia", por se recusarem a adorar o imperador e seus deuses oficiais, Justino e seus companheiros foram interrogados por Rústico, prefeito da cidade – diz o cardeal –. Depois de arguir os acusados quanto às suas convicções, Rústico os ameaçou: "Agora vamos ao que interessa, aproximai-vos e, todos juntos, sacrificai aos deuses. Se não o fizerdes, sereis torturados sem compaixão". Diante da recusa firme dos cristãos, o prefeito sentenciou: "Os que não quiseram sacrificar aos deuses e obedecer à ordem do imperador, depois de flagelados, sejam levados para sofrer a pena capital". E, assim, Justino e seus companheiros foram torturados e decapitados.
Duros tempos aqueles. Sua Eminência só não lembra os mártires dos outros cristianismos, daqueles cristianismos que foram relegados à condição de heresia, por não serem convenientes ao poder da Igreja. Sim, porque houve muitos cristianismos. Só vingou um, o que matou ou mandou para o exílio ou para a fogueira o maior número de dissidentes. O da igreja triunfante de Roma.
Dogma é fogo. Quando bispos se reuniam em concílio para saber se deus era um em três ou três em um, ai daqueles que perdiam a discussão. Eram enviados ao exílio ou à fogueira. Os santos padres levavam os plebiscitos a sério. Não era como esta bagunça hodierna, em que os defensores de uma tese no Congresso ou no Supremo perdem uma causa e ainda ficam chiando nos jornais.
Nos séculos II e III – escreve Bart Ehrman em Os Evangelhos Perdidos – havia cristãos que acreditavam que a morte de Jesus trouxera a salvação do mundo. Outros pensavam que a morte de Jesus nada tinha a ver com isto. Havia ainda uma corrente segundo a qual Jesus nunca morreu. O autor faz algumas perguntas que jamais ocorrem aos seguidores contemporâneos do Cristo.
- Como poderiam algumas destas visões até mesmo ser consideradas cristãs? Ou, colocando a questão de forma diferente, como as pessoas que se consideravam cristãs poderiam defender tais crenças? Por que não consultavam suas Escrituras para ver que não eram 365 deuses, ou que o verdadeiro Deus havia criado o mundo, ou que Jesus havia morrido? Por que elas simplesmente não liam o Novo Testamento?
É simples para Ehrman. É por que não havia Novo Testamento. “Com certeza, os livros que foram finalmente reunidos no Novo Testamento haviam sido escritos em torno do século II, mas eles não tinham sido ainda agrupados em um cânone autorizado e amplamente reconhecido de Escritura. E havia também outros livros igualmente impressionantes – outros Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipses, que declaravam ter sido escritos pelos apóstolos terrenos de Jesus".
As visões diferentes do cristianismo ou do Cristo foram tantas que geraram dicionários. Em Petit Léxique des hérésies chretiennes, Michel Theron cita nada menos que 232 heresias. 232 cristianismos que não vingaram. Colho na rede algumas seitas.
Antinomianismo - A idéia de que não há nenhuma obrigação de obedecer a legislação de ética ou moralidade, tal como apresentado por autoridades religiosas.
Audianismo - A crença de que Deus tem forma humana (antropomorfismo) e que se deveria comemorar a morte de Jesus durante a Páscoa judaica (quartodecimanismo).
Donatismo - Donatistas eram rigorosos, sustentando que a Igreja deveria ser uma igreja de santos, sem pecadores, e que os sacramentos, como o batismo, administrado pelos traditores (cristãos que renderam as Escrituras para as autoridades que proibiram a posse delas) eram inválidos.
Ebionismo - A seita judaica que insistiu na necessidade de seguir a lei judaica e ritos religiosos5 que interpretadas à luz de Jesus expondo da lei6 Consideravam Jesus como o Messias, mas não como divino. Os ebionitas reverenciavam seu irmão Tiago como o chefe da Igreja de Jerusalém e rejeitaram Paulo de Tarso como um apóstata "da lei". Seu nome sugere que eles colocaram um valor especial sobre a pobreza religiosa.
Marcionismo - Um cristianismo primitivo dualista. Os Marcionitas afirmavam Jesus Cristo como o salvador enviado por Deus e o apóstolo Paulo como seu chefe, mas rejeitavam a Bíblia hebraica e Javé. Marcionistas acreditavam que o colérico Deus hebraico era uma entidade separada e menor do que o misericordioso Deus do Novo Testamento. Esta opinião foi de certa forma semelhante à teologia cristã gnóstica, mas de outras maneiras diferentes.
E por aí vai. Euquitas, joanistas, mandeístas, maniqueístas, montanistas, paulicianistas, priscilianistas, naassenos, notzrim, setianos, ofitas, valentinianistas, etc., etc., etc. Sem entrar no mérito das demais heresias, fecho totalmente com os notzrim: Jesus seria uma invenção literária (Msiha kdaba) de Paulo de Tarso. Estes cristianismos foram derrotados e jogados à famosa lata de lixo da História. Hoje, viraram verbetes de enciclopédias e só são lembrados por historiadores e estudiosos das religiões.
- Os cristãos continuam sendo o grupo religioso mais perseguido em todo o mundo – continua o cardeal-arcebispo -. “Se aqui me refiro apenas aos cristãos, não é por desconhecer que existem discriminações e violências também contra outros grupos religiosos. Há poucos dias, Silvano Maria Tomasi, observador permanente da Santa Sé na ONU, em Genebra, fez uma denúncia alarmante: mais de 100 mil cristãos têm sido assassinados anualmente em todo o mundo por razões ligadas, de alguma maneira, à sua fé”.
Quantas outras centenas de milhares de outros cristianismos a Santa Madre abafou com a perseguição de seus crentes ao longo da história? Destes mártires, dom Odilo não fala.
Teólogos não brincavam em serviço. Houve época em que a Igreja esteve a ponto de cindir-se por uma única letra. No início do século IV– conta-nos Ehrman – na época de Ário, professor cristão da Alexandria, praticamente a Igreja inteira concordava que Jesus era ele mesmo divino, mas que havia apenas um Deus. Mas como exatamente isso funcionava? Como ambos podiam ser Deus?
Ário considerava ter havido um tempo no passado distante antes do qual Cristo não existia. Ele passou a existir em determinado momento. Embora fosse divino, não era igual a Deus Pai; como era o Filho, era subordinado a Deus Pai. Eles não eram “da mesma substância”; eram “similares” em substância. O oponente mais conhecido a esta tese era Atanásio, justo aquele que seria mais tarde responsável pelo cânone do Novo Testamento. Para Atanásio, o Cristo era feito exatamente da mesma substância – homoousias, em grego - que o Pai. Nada a ver com substância similar – homoiousias. E a Igreja arriscou cindir-se por um i.
Foi quando o imperador Constantino, que havia se convertido ao cristianismo para unificar seu império fragmentado, deu-se conta que uma religião dividida não podia produzir unidade. Convocou então o Concílio de Nicéia, em 325 d. C., que optou pela posição de Atanásio. Há três pessoas em Deus. Elas são distintas umas das outras. Mas cada uma é igualmente Deus. Todas as três são seres eternos. E todas as três são feitas da mesma substância. Atanásio venceu e Ário foi excomungado.
Os hereges – todos – foram mártires à sua maneira, em virtude da atitude tirânica da facção que acabou assumindo as rédeas da Santa Madre. Isso sem falar na Inquisição, que mandou para a fogueira os cátaros, valdenses, templários, as beguinas, John Wycliffe e os lolardos, Ian Huss e os hussitas, Giordano Bruno, Joana d’Arc. Neste caso, a igreja deu-se ao luxo tanto de queimar la Pucélle, como de mais tarde reciclá-la como santa.
Oficialmente, a idéia da criação da Inquisição surgiu em 1183, quando delegados enviados pelo Papa averiguaram a crença dos cátaros de Albi, sul de França, também conhecidos como albigenses, que acreditavam na existência de um deus do Bem e outro do Mal. Cristo seria o deus do bem enviado para salvar as almas humanas e o deus criador do mundo material seria o deus do mal. Isto foi considerada uma heresia e no ano seguinte, no Concílio de Verona, foi criado o Tribunal da Inquisição.
Na verdade, a Inquisição já está latente no século IV, sob o império de Constantino, o primeiro imperador romano a converter-se ao cristianismo, que transformou a seita dissidente do judaísmo em religião oficial do Estado romano. De lá para cá, os que não quiseram sacrificar ao deus cristão e obedecer às ordens da Santa Madre, depois de flagelados, foram levados para as fogueiras, como diria Rústico. E como dom Odilo esquece.
09 de junho de 2013
janer cristaldo
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