David é um brasileiro de 30 e poucos anos radicado em Chicago. Filho de uma imigrante mexicana, toca trompete e é apaixonado por jazz. Quando ele descobre que tem pouco tempo de vida, começa o seu aprendizado do desprendimento, que o leva a deixar para trás tudo que não é essencial. Alex é uma jovem descendente de vietnamitas, mãe solteira, que tenta a duras penas conciliar trabalho, estudo e maternidade em um ambiente muitas vezes hostil. No desenho desses dois personagens que se entrelaçam já estão presentes as questões que movem a narrativa de “Hanói”, novo romance de Adriana Lisboa (Alfaguara, 240 pgs. R$ 39,90): a transitoriedade da vida, o desenraizamento, as adversidades enfrentadas por imigrantes na sociedade americana, a miscigenação e o encontro/desencontro de culturas.
Leia aqui um trecho do livro.
- Li dois ou três posts seus na internet no ano passado falando sobre a dificuldade de escrever ‘Hanói’, de dar uma unidade à narrativa. O processo de criação foi diferente daquele dos seus outros romances? Você passou por alguma crise?
- ‘Hanói’ combina o tratamento cuidadoso da linguagem habitual na sua ficção com uma estrutura mais vaga, na qual o enredo parece importar menos que a o registro de estados emocionais e mentais dos personagens. Isso aponta para uma mudança na sua literatura?
ADRIANA: Curiosamente, considero “Hanói,” com um enredo bem mais simples do que meu romance anterior, um texto mais ágil. O que vem mudando na minha literatura, penso, é uma predileção crescente pelo que é simples e direto. Pode parecer um paradoxo diante do que você chama de cuidadoso tratamento da linguagem, e de fato sou muito atenta para as minúcias do texto, mas ando cada vez mais afeita, nos livros e na vida (e como separar uma coisa da outra?), daquilo que em inglês é definido por uma expressão ótima: “no nonsense” – a intolerância ao que é irrelevante.
- Como nasceram os protagonistas David e Alex? Eles têm conexão com pessoas reais que você conheceu, ou episódios que você viveu?
ADRIANA: Não têm conexões reais. Eu queria trabalhar com um personagem músico, pela primeira vez. Tive ajuda de algumas pessoas para compô-lo – um amigo trompetista, sobretudo. As passagens de David no livro foram quase sempre escritas ao som das músicas que faziam parte da vida dele. Quanto a Alex, veio por outro viés. Trabalhei por um tempo com refugiados em Denver e penetrei um pouco nesse universo tão específico e tão peculiar, diferente do universo dos outros imigrantes, legais ou ilegais. Com isso interessei-me pela história dos filhos de mulheres vietnamitas com soldados americanos durante a guerra, crianças que não tinham lugar em lugar nenhum do mundo e no Vietnã eram conhecidas como “bui doi”, o “pó da vida”. Mais tarde, muitos puderam se mudar para os Estados Unidos, mas não tinham qualificações nem falavam a língua. Assim surgiram a avó e a mãe de Alex, e também o personagem Trung, dono de um pequeno mercado asiático e ex-monge budista no Vietnã.
- O tema do desenraizamento, explicitado na situação dos protagonistas, me parece recorrente na sua ficção Você se sente deslocada no mundo? A literatura é uma forma de se encontrar?
ADRIANA: Tem sido um tema recorrente de alguns anos para cá, nos últimos três romances. Quando escrevi Rakushisha, morava no Brasil, mas tinha as memórias de ter sido imigrante na França, com uma porção de dificuldades. Para escrever o livro passei um mês em Kyoto com uma bolsa da Fundação Japão. O tema do deslocamento, do desenraizamento, era óbvio. No ano seguinte vim para o Colorado, uma mudança de país e também para uma paisagem física tão distinta. A existência é rarefeita, o espaço é imenso, e grandes centros urbanos como Los Angeles e Nova York estão longe. Isso tudo, meu estranhamento e curiosidade, vazaram para Azul corvo. Já em Hanói aparecem os refugiados, essa gente tão violentamente desenraizada, que às vezes passa décadas vivendo em condições precárias em campos de refugiados até ser aceita por um novo país onde continuará, em muitos casos, fora do lugar e do eixo.
Ser imigrante é uma experiência bem vinda, porque isso me tira da zona de conforto e sublinha coisas que eu de hábito não notaria, tanto no lugar onde moro quanto no lugar de onde venho, já que mudei o ângulo de observação, mas também convivo com uma sensação muito grande de deslocamento no mundo. Vilém Flusser escreveu uma passagem que cito com frequência: “o cedro é estrangeiro no parque, eu sou estrangeiro na França, o homem é estrangeiro no mundo.” Essa “estrangeiridade” é insolúvel, portanto a literatura não é uma forma de me encontrar. É apenas uma forma de elaborar e expressar isso.
- As digressões sobre a transitoriedade da vida que pontuam a narrativa lembram em alguns momentos Clarice Lispector. Você assume essa influência? Considera sua escrita clariceana?
ADRIANA: Não. Embora eu tenha lido bastante Clarice – sobretudo os contos, muitos dos quais acho magníficos, o ponto alto da sua obra – não acredito que haja uma influência significativa da obra dela naquilo que escrevo. Eu poderia listar seus contos entre as minhas influências, de modo geral, mas não diria que minha escrita é clariceana.
- David é trompetista, e esse dado é bastante relevante na história. Fale sobre a importância da música em “Hanói”.
ADRIANA: Fui musicista durante mais de dez anos. Isso, ao lado da leitura de poesia, que sempre me acompanhou, tornam a musicalidade do próprio texto muito importante para mim. Em “Hanói,” a música se entrelaça na narrativa com um personagem trompetista. Cheguei a criar uma playlist para o livro. Acho também relevante o fato de que a música muitas vezes serve de ponte entre culturas, transcendendo questões de idioma (uma barreira para a literatura), e me fascina a capacidade fraternizadora do jazz. Essa união que parecemos ter às vezes com as outras pessoas na plateia de um show. A música ao vivo é uma experiência única, que você não leva para casa nem mesmo num CD. Que testemunha, experimenta num momento e lugar específicos, que vem e passa, mas que fica, na medida em que forma a sua experiência. Quando David começa a se descartar de tudo o que tem, a música fica. O seu trompete fica, a sua vontade de ir a concertos de jazz, e sua vontade de terminar a vida ouvindo Ella Fitzgerald cantando “Sweet Georgia Brown.”
- E a música na sua vida? Aos 18 anos você cantava MPB em Paris. Fale também sobre a diferente presença da música nos seus livros, como “Sinfonia em Branco”.
ADRIANA: A música me acompanha desde muito cedo. Meus pais faziam saraus com os amigos em casa quando eu era criança, passei a adolescência tocando e ouvindo de tudo. Meus discos e livros eram uma companhia íntima, algo que eu dividia comigo mesma – e abandonei a música em parte porque nunca me entendi muito bem com a performance. É curioso que se espere do escritor, hoje em dia, que seja tão performático! Quando penso na solidão do meu quarto de adolescente e nos cadernos onde rabiscava contos e poemas, nada me parece mais estranho do que os grandes eventos literários…
Comecei a trabalhar como cantora de MPB na França aos 18 anos. Voltei em seguida para o Rio e decidi me graduar em flauta transversa. Dei aulas e toquei com grupos de estilos variados. Mas no dia do meu recital de formatura me dei conta de que aquilo não era o que eu mais queria da vida. A literatura também estava presente desde muito cedo, e era a minha forma de expressão mais sincera, então me propus escrever um primeiro romance. Mas a música, por todos esses motivos, está sempre ali. Seja na consciência da musicalidade do texto, seja em referências recorrentes. Às vezes os próprios livros têm para mim uma qualidade musical, têm estilos musicais.
- Com que escritores – vivos ou mortos, prosadores ou poetas – você mais dialoga hoje?
ADRIANA: Sem pensar muito, porque acho que essa pergunta não pede reflexão mas espontaneidade: as referências mais importantes para mim, ao longo da vida, foram Machado, Bandeira, Guimarães Rosa, o Saramago dos anos 80, Emily Dickinson, e hoje em dia gente como Ian McEwan, Toni Morrison, Paul Harding, também Miranda July, poetas americanos contemporâneos como W.S. Merwin e Elizabeth Spires, poetas brasileiros contemporâneos como Mariana Ianelli, Claudia Roquette-Pinto, Eucanaã Ferraz, Paulo Henriques Britto e Antonio Cicero, romancistas brasileiros como Rodrigo Lacerda, Michel Laub e Adriana Lunardi, mas também Rumi, Bashô, Hermann Hesse, Yasunari Kawabata. Talvez caiba acrescentar que venho estudando há algum tempo a filosofia budista, e autores como Robert Thurman e Chögyam Trungpa frequentam minha mesa de cabeceira com a mesma assiduidade dos ficcionistas e dos poetas.
- Por que você decidiu morar nos Estados Unidos? Como é sua vida aí? Se sente integrada ou é vista como imigrante? Você pretende voltar?
ADRIANA: No momento não estou pretendendo sair dos Estados Unidos. Gosto de ser imigrante (claro, sou vista como imigrante, sempre), gosto das diferenças e há muito que me interessa aqui, embora na verdade haja coisas boas e ruins em todos os lugares do mundo, e seja difícil para mim chamar algum deles de “casa.” Além disso, o meu filho está nos últimos anos da escola, então vamos ficando. Sinto, claro, saudades do Brasil, onde estão todos os meus familiares e vários amigos queridos, mas vou ao Rio com alguma frequência.
Vim morar nos Estados Unidos há quase sete anos, convidada pelo meu companheiro, que trabalha para uma empresa americana, e que havia escolhido o Colorado fascinado pela mesma paisagem física que também me fascinou. Mas é possível que no futuro a gente queira experimentar viver noutro canto do país. Talvez a Nova Inglaterra, pelo contraste, e porque temos bons amigos lá.
- Como você lida com a digitalização dos livros e dos textos e a crescente importância da internet? Como enxerga o futuro do livro e da literatura?
ADRIANA: Sempre passei meio ao largo dessa discussão sobre livros digitais/internet e literatura. É que para o meu próprio trabalho o suporte não interessa tanto, eu não uso – pelo menos não por enquanto – recursos da internet/multimídia para escrever (a não ser, claro, para pesquisa), então no fundo só o que muda é se o livro será um objeto de papel ou um ebook. Quanto ao futuro do livro e da literatura, acho que eles terão espaço como sempre tiveram, embora a sua função, como já dizia, lá se vão 15 anos, Peter Sloterdijk em suas “Regras para o parque humano”, seja outra: já não se trata mais da domesticação da humanidade via leitura/literatura. Talvez a sua função seja agora mais modesta, menos grandiosa e quem sabe menos arrogante também, o que encaro como algo bastante positivo. Se sobrevivermos a nós mesmos, e a esta campanha que parecemos estar fazendo para dizimar a nossa própria espécie e várias outras – que é o que me preocupa de verdade – estou segura de que continuaremos fazendo e lendo literatura.
03 de junho de 2013
Luciano Trigo
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