"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 2 de junho de 2013

GRAÇAS A DEUS OU GRAÇAS AO BATMAN?

 Sou diabético. Há uns bons quinze anos, recorri aos serviços de uma endocrinologista aqui em São Paulo. A doutora me proibiu terminantemente o álcool. Nem Kronenbier. Como considero não ser inteligente enganar um médico, durante dois longos anos – juro, leitor! – permaneci afastado de meus bons amigos, os vinhos e espíritos outros. Mudei até meus roteiros pela Paulicéia. Andei visitando cafés onde senhoras judias tomavam chá com bolachinhas.

Pelo menos até o dia em que optei por uma solução radical. Cansado da vida saudável, troquei de médica. E já fui avisando a nova endócrino sobre as razões que me levavam a procurá-la: a médica anterior havia me proibido o bem-bom. Ela entendeu o recado e me liberou para a vida. Como nunca fui adepto de bebidas doces, nunca tive maiores problemas de glicemia.

Mas havia outro problema com a médica anterior. Católica de carteirinha, ela sempre se despedia de mim com um “vai com Deus”. Era como se a ciência tivesse desistido de me fazer voltar à saúde e agora tudo dependia da boa vontade do Altíssimo. Ora, não entendo como um médico possa dizer isso, aliás tampouco entendo como um médico possa acreditar em Deus. Vou além: não entendo como alguém saído de uma universidade possa acreditar em Deus. Sinal que a universidade fracassou.

Quando minha mulher foi acometida de câncer, círculos de oração foram organizados no país todo. Deus a curará – diziam. “Estamos gastando nossos créditos junto ao Poderoso” – disse-me um casal católico. Ninguém mencionava o tratamento sofisticado, caro e doloroso, ao qual ela estava sendo submetida. Quando morreu, mudou o papo. A medicina falhou. Deus tinha outros planos para ela. Mas agora ela finalmente está sendo feliz.

Se agora estava sendo finalmente feliz, por que rezavam para que permanecesse nesta vida em que era infeliz? Enfim, pelo menos não rezaram no quarto do hospital. No velório, puseram seu sofrido corpo logo abaixo de um imenso Cristo crucificado e peladão. Tirem esse lixo daí – ordenei. Tiraram. Só o que faltava emprestar o cadáver da Baixinha para fazer propaganda do judeu aquele. Se o paciente se cura, curou-se devido à intervenção divina, ao poder das orações. Se morre, foi falha da medicina. Deus não perde nunca.

Quando chegou a minha vez de ser premiado, no hospital Sírio-Libanês também estava se tratando uma atriz chamada Mara Mazan. Após completar um ano de sua operação, na qual retirou um tumor maligno do pulmão direito, a moça continuou fazendo sessões de quimioterapia a cada 21 dias.

Mas o tratamento no Sírio-Libanês, pelo que disse então a atriz, de pouco ou nada lhe serviu. "Fui curada somente com oração. O nódulo desapareceu do meu peito", afirmou. Sua cura, Mazan atribuiu a Deus. "Não tenho nenhuma religião, mas sou fiel a ele, pois resolveu me dar uma segunda chance para continuar me divertindo com meus amigos aqui na Terra."

A atriz teria sido curada - porque curada não foi - não pela excelência tecnológica do hospital, nem pela competência de seus médicos e técnicos, e sim por uma entidade espiritual, encarnada por um tal de Edson de Queiroz, através de um uma cirurgia espiritual. Ao ser interrogada por que optou por este método e não pelo convencional, diz a atriz:

- Antes de eu tirar o tumor de meu pulmão, eu já havia sido operada espiritualmente pelo Doutor Fritz (incorporado por Edson Queiroz), indicado pela minha amiga e cantora Alcione. Os tumores que existiam em meu pulmão diminuíram consideravelmente e, quando a equipe do médico Riad Yunis fez a retirada do tumor maligno, não houve nenhum tipo de complicação. (...) Foi uma coisa surreal, mas muito bacana. O meu tratamento foi inteiramente realizado na base da oração. Fiquei sentada em uma cadeira e começaram a rezar. Logo eu comecei a sentir meu corpo dormente, como se tivesse sido anestesiada. Entrei em alfa e depois vomitei um líquido verde, parecendo a personagem Sarah, de O Exorcista.

Então resta a pergunta: por que retirou o tumor com uma equipe do hospital e por que continua fazendo quimioterapia? Estou cansado desta malta de crentes, que diante de uma doença grave, reza e se encomenda a Deus, ao mesmo tempo em que busca medicina de ponta. Se não conseguem sobreviver, seus próximos atribuem a morte à medicina. Se se salvam, a vida é atribuída a Deus. Mara Mazan morreu alguns meses depois destas declarações. Claro que foi falha médica.

O pior é que há médicos que acreditam nisso. No Sírio-Libanês, fui tratado por uma competente equipe de uns dez médicos e médicas. Falava eu destas questões teológicas com uma das moças e ela me disse: nós tratamos, quem cura é Deus. Ela, com toda sua ciência – a ciência que me curou -, atribuía minha cura a um ser que não existe.

A história se repetiu, de novo com um ator. Ao descobrir que estava com um câncer, Reynaldo Gianecchini buscou ajudas espirituais para auxiliá-lo na busca pela cura da doença. Fez acompanhamento com um “médico astral”, no Instituto de Medicina do Além (IMA), em Franca, São Paulo. Quem o atende é o médium João Berbel, que tem fama de cura das cirurgias espirituais que realiza, e que afirma fazê-las a fim de mostrar as profecias de Jesus. “A gente não anda preocupado em fazer propaganda, a intenção é mostrar as profecias de Jesus, que a Terra da regeneração já chegou, e muitos aflitos vem aqui em busca dos nossos trabalhos gratuitos, que só são possíveis graças a rifas, doações de materiais e à renda dos livros”, diz Berbel. Bem entendido, Gianecchini não dispensou uma quimioterapia no Sírio-Libanês.

Mas quem tratou do ator não foi exatamente o João Berbel. Este senhor é apenas um mecânico elétrico que recebe, isto sim, o espírito do clínico geral Ismael Alonso y Alonso, o “médico dos pobres”, que foi prefeito de Franca nos anos 50. “É visível a melhora do meu sobrinho desde o início do tratamento com o doutor Alonso”, disse uma tia do ator. “Ele está mais confiante para seguir o tratamento convencional, pois tem a certeza de que vai superar o câncer”. O dr. Fritz já era. Agora temos o Alonso y Alonso. Gianecchini está aparentemente curado. Venceu não a medicina, mas o Alonso y Alonso. Venceu Jesus. Venceu Deus.

Trocando os queijos de bolso: ainda há pouco, eu comentava o fascínio que vêm despertando os filmes de super-heróis, até mesmo entre intelectuais. Também curti estes semideuses, dotados de poderes quase divinos. Mas isso na época em eles frequëntavam apenas os quadrinhos, e quando eu tinha dez ou doze anos. Marmanjo cultuando filmes ridículos de super-heróis é algo que não entendo, ainda mais quando tais marmanjos se pretendem intelectuais. Vai ver que pularam a infância.

Mas os super-heróis, pelo jeito, estão saindo das telas. E invadindo os hospitais. Na Folha de São Paulo de hoje, leio que um hospital de São Paulo está usando os ditos para ajudar crianças a enfrentar o câncer. Com imaginação, a quimioterapia passa a ser uma "superfórmula", usada também pelo Batman, Super-Homem, Lanterna Verde e pela Mulher Maravilha para lutar contra o mal.

O projeto, que decorou todo o setor pediátrico da instituição com os temas dos super-heróis, é uma parceria entre o hospital, a DC Comics e a agência JWT. Já não basta você desistir de ler o Rodrigo Constantino para fugir dos super-heróis e das Disneylândias da vida. Agora, procure evitar também os hospitais. As crianças passam a receber quimioterapia em cápsulas temáticas e a ganhar gibis com histórias nas quais os heróis dos quadrinhos enfrentam situações semelhantes às vividas pelos doentes no tratamento.

Não é de hoje que personagens de ficção contemporâneos vêm substituindo Deus. Jeová, o mais antigo personagem literário e mais universalmente conhecido – até mendigos analfabetos o invocam – parece ter cansado e perdido forças. Em 2008, teci comentários sobre a cientologia, igreja que foi definida na Alemanha, Áustria e Holanda como seita gananciosa, filosofia inescrupulosa, lavagem cerebral.

A religião foi criada por um escritor de ficção científica, Lafayette Ron Hubbard. Há 75 milhões de anos, dezenas de planetas eram governados por um líder maligno, Xenu. Para sanar um problema de superpovoamento, Xenu teria segregado bilhões de seus habitantes na Terra. Eles foram mortos com bombas de hidrogênio, e seus espíritos - os thetans - passaram a vagar pelo planeta. Os thetans foram ainda submetidos a um processo que os tornou inaptos a tomar decisões. Cada habitante da Terra atual seria uma reencarnação desses espíritos.

Consta que Hubbard estava insatisfeito com seus ganhos em direitos autorais e decidiu aumentar sua renda criando uma religião. A nova crença, curiosamente, conquistou fiéis e financiadores poderosos em Hollywood, entre eles Tom Cruise, John Travolta e Lisa Marie Presley. A religião foi criada nos anos 50 e já tem quase 10 milhões de fiéis. É curioso que esteja sendo perseguida juridicamente em alguns países europeus.

Discutindo religiões com amigos de Internet, comentei que se poderia criar uma a partir do roteiro de Guerra nas Estrelas. Tarde piei. A igreja já existe, contou-me um de meus interlocutores. Dois irmãos - Barney e Daniel Jones - fãs de Star Wars fundaram uma igreja Jedi no País de Gales. Barney – conhecido como mestre Jonba Hehol – e Daniel – mestre Morda Hehol – planejam incluir entre o cerimonial sermões sobre a Força, treinamento de sabres de luz e técnicas de meditação. A Universal Life Church, como se denomina a nova fé, está emitindo certificados que atestam ser o portador um cavaleiro Jedi.

Sempre considerei os super-heróis como semideuses, capazes de proezas que não estão ao alcance dos mortais. (Aquela travessia do Mar Vermelho está mais para Super-Homem do que para Moisés). O conceituado hospital A.C. Camargo, de São Paulo, em parceria com a DC Comics e a agência JWT, parece ter-se conscientizado deste cansaço divino. Agora não é mais Deus que cura.

As crianças – e os pais das crianças - não mais dirão, quando a cura ocorrer, “graças a Deus”. Deus já era. Agora teremos uma nova geração de pacientes curados graças ao Batman, ao Super-Homem, ao Lanterna Verde e à Mulher Maravilha.

Enfim, não muda muito. Se é para descrer da medicina invocando seres que não existem, tanto faz invocar Cristo ou Batman. Nestes dias em que as pessoas já não mais lêem, melhor buscar cultura nos quadrinhos. A Bíblia é muito chata e tem personagens demais. O Jeová nem rosto tem e as crianças não conseguem sequer imaginar como se veste. Melhor invocar um herói que anda com aquela capa do Joaquim Barbosa, ou com as cuecas fora das calças. Não está longe o dia em que as capelas dos hospitais serão ornadas com imagens do homem-morcego ou do homem de aço.

Deus já era. Agora temos o Batman. A ciência avança.


02 de junho de 2013
janer cristaldo

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