"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 16 de junho de 2013

"LEMBRAR POR LEMBRAR"


Pouca gente sabe que foi graças à classe teatral que se realizou a famosa Passeata dos Cem Mil
 
Li outro dia uma matéria acerca da luta da intelectualidade contra a ditadura militar e, nela, não havia qualquer referência ao Grupo Opinião, que teve papel relevante nessa luta.
 
Não vejo qualquer má-fé nessa omissão, mesmo porque o entrevistado, por sua idade, não poderia ter participado daquela luta, iniciada no mesmo ano do golpe, isto é, em 1964.
 
É público e notório que o primeiro espetáculo a contestar o regime militar foi o show "Opinião", escrito por Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Armando Costa.
 
O espetáculo estreou em novembro daquele ano, oito meses depois do golpe, num teatro de arena improvisado, no shopping center da rua Siqueira Campos, em Copacabana. Dele nasceu o Grupo Opinião, que marcaria a vida teatral brasileira daquele período, entre outras razões por sua postura política.
 
O papel político que esse grupo desempenhou teve uma razão: o Grupo Opinião foi o novo nome do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE (União Nacional de Estudantes), entidade essencialmente política, extinta por isso mesmo pelo golpe.
 
Funcionava na sede da UNE, na praia do Flamengo, incendiada por lacerdistas no dia do golpe. Parte dos membros do CPC era militante do Partido Comunista, que dava assistência à entidade. Essa ligação com o PC foi mantida pelo Grupo Opinião.
 
O êxito de bilheteria do show "Opinião" contribuiu para prestigiar o novo grupo teatral. Nos primeiros meses da ditadura, a ação da censura voltava-se mais para a imprensa em geral e só se voltou efetivamente para o teatro após a proibição de "O Berço do Herói", de Dias Gomes.
 
A partir daí, a ação da censura foi se ampliando, o que exigia, de outro lado, a mobilização da classe teatral. Isso foi feito principalmente pelo Grupo Opinião, cujo teatro se tornou o local das reuniões e manifestações de protesto contra a censura.
 
Após o show "Opinião", o grupo apresentou o espetáculo "Liberdade, Liberdade", de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, que era também uma montagem de textos e músicas, só que, neste caso, os textos eram citações de pensadores e estadistas, desde Sócrates a Voltaire e George Washington. Era difícil censurar tais figuras e, por isso mesmo, o meio escolhido pela repressão foi tentar tumultuar o espetáculo, com capangas armados.
 
Como essa tentativa foi abortada, lançaram mão, algum tempo depois, de um recurso mais drástico: puseram uma bomba na bilheteria que quase destrói o teatro inteiro. Depois disso, o público, assustado, afastou-se dali, dando-se início à falência do grupo teatral.
 
Mas isso foi um pouco mais tarde. Até ali, a classe teatral, mobilizada, passou dos manifestos e reuniões em teatros a manifestações de rua, com a presença de atores e atrizes de grande prestígio e popularidade, o que intimidava os censores. Nem por isso, conforme o caso, deixavam de mandar os policiais dissolver essas manifestações e até mesmo prender os manifestantes. Prenderam Norma Bengell.
 
Pouca gente sabe, por exemplo, que foi graças à classe teatral, com o apoio de intelectuais estudantes, que se realizou a famosa Passeata dos Cem Mil. Grupo radicais, ligados à UNE clandestina, insistiam em arrastar os manifestantes para conflitos de rua com a polícia.
 
Já o nosso grupo pretendia realizar uma manifestação de caráter massivo com o apoio da Igreja Católica e outras organizações sociais, que se opunham ao regime. A participação dessas entidades já estava sendo articulada pelo Partido Comunista e a esquerda católica.
 
Discutia-se isso no teatro Glaucio Gill, onde se haviam reunido, além da classe teatral, intelectuais de diferentes áreas. A dificuldade para chegar a um consenso decorria do fato de que a direção da UNE, na clandestinidade, não participava das discussões.
 
A muito custo, conseguiu-se um contato telefônico com Vladimir Palmeira e discutiu-se com ele a proposta em questão. Ele concordou com a proposta e deu seu apoio para a realização da manifestação pacífica e massiva.
 
A partir daí, começaram todos a mobilizar gente de diferentes setores da sociedade, inclusive sindicatos de trabalhadores, do que resultou a primeira grande manifestação de massa contra o regime militar. Uma manifestação que ficou para a história.

16 de junho de 2013
Ferreira Gullar, Folha de São Paulo

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