Os marmanjos querem então transporte gratuito. Ora, nem mesmo a um bugre, no fundo da floresta, ocorreria tal disparate. Em sua insciência, o selvagem intuiria que algo deve dar em troca de tal conforto, já que até mesmo a caça exige o esforço de ser caçada. Para empunhar tal bandeira, não basta ser ingênuo. É preciso ser mau caráter.
É óbvio que as manifestações não são pela redução que os utópicos concedem reivindicar, uma redução de vinte centavos no preço das passagens. Têm manifesto sentido político e visam as eleições do ano que vem. O problema do transporte coletivo nas metrópoles brasileiras é muito maior que vinte centavos.
Nos anos 70, lembro ter visto foto das plataformas do metrô de Tóquio, que mostravam uma curiosa profissão, a de empurrador. Universitários eram contratados para empurrar passageiros para dentro dos vagões. Que horror, pensei então, como os japoneses conseguiram chegar a esse ponto? Pois chegamos lá. Sem universitários que nos empurrem.
Há uns bons quinze anos não uso transporte público em São Paulo. Não tenho carro. Nem nunca tive. Minhas locomoções, em geral pelo bairro, são feitas a pé. Se preciso ir mais longe, tomo um táxi. Se é para ir longe, melhor começar por Cumbica. Mas já usei ônibus e metrô. E se há quinze anos o serviço era deplorável, imagino agora.
Não que fosse deplorável há quinze anos. Era deplorável há trinta anos. Lembro que, ao voltar de Paris, fui visitar uma amiga aqui em São Paulo. O trajeto seria longo. Acostumado com o conforto – de então – do metrô parisiense, pensei com meus botões: vou comprar jornais para ler durante a viagem. Comprei.
Santa ingenuidade. No ônibus, mal tive espaço para erguer os braços e pendurar-me naquelas alças, tão nossas, tão Terceiro Mundo. Há muito não uso transporte público, dizia. Mas já vi fotos de plataformas de metrô em hora de pique. Há uma maré humana assustadora nas plataformas, sem nenhuma barreira de contenção entre a plataforma e os trens. Basta um movimento de pânico e dezenas, senão centenas de pessoas, serão jogadas nos trilhos. Espero não estar sendo profeta.
Usar transporte público quando viajam é o que recomendo a presidentes, governadores e prefeitos quando viajam. Assim veriam que transporte público pode ser confortável. Mas estes senhores jamais pisam em um metrô quando em Paris, Londres ou Berlim. Só se dignam locomover-se em carros oficiais.
Nos dias de Estocolmo, início dos anos 70, algo perturbou minha visão de mundo. Nas paradas de ônibus, um aviso dava os horários em que o ônibus passaria por ali. Por exemplo: 7h15m, 7h22m, 7h29m, 7h36m. E você podia acertar seu relógio pelo ônibus. Era mais provável seu relógio estar adiantado do que o ônibus atrasado. Quando o ônibus se aproximava do ponto antes do horário previsto, o motorista fazia tempo para não chegar adiantado.
Isto é civilização, pensei na época. Quando fui morar em Paris, já vi a cidade como símbolo do caos: não havia tais anúncios. Hoje há. Mas a cidade levou algum tempo para chegar à civilização. Em São Paulo, não temos nem indicação do trajeto dos ônibus. Quando você embarca, embarca rumo ao desconhecido.
Sem falar na altura dos degraus de entrada. De meus dias de sofrimento, já vi senhoras empurradas pelo traseiro para poder entrar no ônibus. Volto a Estocolmo: foi lá que vi, pela primeira vez e para meu pasmo, ônibus se inclinando para que o passageiro entrasse.
A primeira linha de metrô de Londres entrou em operação no dia 10 de Janeiro de 1863 com a Metropolitan Railway, de onde surgiu o termo "metro". Em Paris, a rede foi inaugurada em julho de 1900, após décadas de discussões políticas sobre as rotas e construção. Em 1913, Buenos Aires inaugurava sua primeira linha de trens subterrâneos, sendo a primeira de seu tipo na Ibero-América e em todo o Hemisfério Sul.
Na ocasião, chamávamos os argentinos de macaquitos, por imitarem os ingleses. Hoje Buenos Aires tem um tráfego ameno, que em nada se compara ao trânsito de São Paulo, onde 150 quilômetros de engarrafamento fazem parte da vida do paulistano. Quando conto isto a meus amigos franceses, eles acham que exagero. Nenhum habitante de cidade civilizada consegue imaginar 150 quilômetros de engarrafamento. O paulistano até que se gaba disto.
Fora do metrô não há salvação, costumo afirmar. O metrô de São Paulo começou a operar em 1974, mais de século após o metrô londrino, três quartos de século após o parisiense. Tem hoje 64 estações, em oposição às 268 de Londres e às mais de 300 de Paris. Londres tem 8,5 milhões de habitantes. Paris tem 2,2 milhões. São Paulo, 20 milhões.
É a abissal falta de visão do brasileiro o que está atrás da crise dos transportes urbanos nas grandes cidades, e não 20 centavos. Hoje ainda, em São Paulo, há quem prefira a locomoção de superfície, que só enfeia e atrapalha a cidade. No final do século passado – que está apenas a uma década de distância – Celso Pitta venceu as eleições para prefeito tirando do bolso o fura-fila, um trem de superfície, reminiscência talvez de historinhas de ficção científica de sua infância, onde as cidades do futuro eram percorridas por deslumbrantes trens aéreos.
Coisa de gibi ianque. Os europeus cedo descobriram que o futuro dos transportes estava embaixo, e não acima da superfície. Acontece que obras subterrâneas não são visíveis. Nossos administradores preferem obras visíveis, a tal ponto que só em São Paulo vi esta anomalia, as estações de metrô acima da superfície, o que significa desapropriações onerosas e mais problemas para o tráfego.
Fora dos horários de pico, o transporte coletivo nas capitais européias é lazer dos mais profícuos. Os vagões mais parecem salas de leitura, e já vi inclusive passageiros lendo partituras, acompanhando os acordes com agitados movimentos de mão. Em Estocolmo, quando lá vivia, existia uma linha de metrô de longo percurso, com um vagão transformado em sala de aula, onde se estudava até mesmo grego.
Os filhinhos de papai que queimam e depredam nas ruas de São Paulo acham que o problema dos transportes coletivos reside em 20 centavos. Ontem ainda, citei colunistas que vêem nas depredações indícios de sonho. “A molecada vai para as ruas defender o seu direito de sonhar com um mundo diferente”. Para construir um mundo novo, é preciso destruir o antigo.
Estamos no reino das utopias desvairadas. Mas mesmo no universo do pensamento utópico houve quem preservasse o bom senso. Em seus falanstérios, para os jovens que pretendiam acabar com a propriedade privada, Fourier tinha um ofício: seriam aproveitados como mão-de-obra na demolição de edifícios.
16 de junho de 2013
janer cristaldo
É óbvio que as manifestações não são pela redução que os utópicos concedem reivindicar, uma redução de vinte centavos no preço das passagens. Têm manifesto sentido político e visam as eleições do ano que vem. O problema do transporte coletivo nas metrópoles brasileiras é muito maior que vinte centavos.
Nos anos 70, lembro ter visto foto das plataformas do metrô de Tóquio, que mostravam uma curiosa profissão, a de empurrador. Universitários eram contratados para empurrar passageiros para dentro dos vagões. Que horror, pensei então, como os japoneses conseguiram chegar a esse ponto? Pois chegamos lá. Sem universitários que nos empurrem.
Há uns bons quinze anos não uso transporte público em São Paulo. Não tenho carro. Nem nunca tive. Minhas locomoções, em geral pelo bairro, são feitas a pé. Se preciso ir mais longe, tomo um táxi. Se é para ir longe, melhor começar por Cumbica. Mas já usei ônibus e metrô. E se há quinze anos o serviço era deplorável, imagino agora.
Não que fosse deplorável há quinze anos. Era deplorável há trinta anos. Lembro que, ao voltar de Paris, fui visitar uma amiga aqui em São Paulo. O trajeto seria longo. Acostumado com o conforto – de então – do metrô parisiense, pensei com meus botões: vou comprar jornais para ler durante a viagem. Comprei.
Santa ingenuidade. No ônibus, mal tive espaço para erguer os braços e pendurar-me naquelas alças, tão nossas, tão Terceiro Mundo. Há muito não uso transporte público, dizia. Mas já vi fotos de plataformas de metrô em hora de pique. Há uma maré humana assustadora nas plataformas, sem nenhuma barreira de contenção entre a plataforma e os trens. Basta um movimento de pânico e dezenas, senão centenas de pessoas, serão jogadas nos trilhos. Espero não estar sendo profeta.
Usar transporte público quando viajam é o que recomendo a presidentes, governadores e prefeitos quando viajam. Assim veriam que transporte público pode ser confortável. Mas estes senhores jamais pisam em um metrô quando em Paris, Londres ou Berlim. Só se dignam locomover-se em carros oficiais.
Nos dias de Estocolmo, início dos anos 70, algo perturbou minha visão de mundo. Nas paradas de ônibus, um aviso dava os horários em que o ônibus passaria por ali. Por exemplo: 7h15m, 7h22m, 7h29m, 7h36m. E você podia acertar seu relógio pelo ônibus. Era mais provável seu relógio estar adiantado do que o ônibus atrasado. Quando o ônibus se aproximava do ponto antes do horário previsto, o motorista fazia tempo para não chegar adiantado.
Isto é civilização, pensei na época. Quando fui morar em Paris, já vi a cidade como símbolo do caos: não havia tais anúncios. Hoje há. Mas a cidade levou algum tempo para chegar à civilização. Em São Paulo, não temos nem indicação do trajeto dos ônibus. Quando você embarca, embarca rumo ao desconhecido.
Sem falar na altura dos degraus de entrada. De meus dias de sofrimento, já vi senhoras empurradas pelo traseiro para poder entrar no ônibus. Volto a Estocolmo: foi lá que vi, pela primeira vez e para meu pasmo, ônibus se inclinando para que o passageiro entrasse.
A primeira linha de metrô de Londres entrou em operação no dia 10 de Janeiro de 1863 com a Metropolitan Railway, de onde surgiu o termo "metro". Em Paris, a rede foi inaugurada em julho de 1900, após décadas de discussões políticas sobre as rotas e construção. Em 1913, Buenos Aires inaugurava sua primeira linha de trens subterrâneos, sendo a primeira de seu tipo na Ibero-América e em todo o Hemisfério Sul.
Na ocasião, chamávamos os argentinos de macaquitos, por imitarem os ingleses. Hoje Buenos Aires tem um tráfego ameno, que em nada se compara ao trânsito de São Paulo, onde 150 quilômetros de engarrafamento fazem parte da vida do paulistano. Quando conto isto a meus amigos franceses, eles acham que exagero. Nenhum habitante de cidade civilizada consegue imaginar 150 quilômetros de engarrafamento. O paulistano até que se gaba disto.
Fora do metrô não há salvação, costumo afirmar. O metrô de São Paulo começou a operar em 1974, mais de século após o metrô londrino, três quartos de século após o parisiense. Tem hoje 64 estações, em oposição às 268 de Londres e às mais de 300 de Paris. Londres tem 8,5 milhões de habitantes. Paris tem 2,2 milhões. São Paulo, 20 milhões.
É a abissal falta de visão do brasileiro o que está atrás da crise dos transportes urbanos nas grandes cidades, e não 20 centavos. Hoje ainda, em São Paulo, há quem prefira a locomoção de superfície, que só enfeia e atrapalha a cidade. No final do século passado – que está apenas a uma década de distância – Celso Pitta venceu as eleições para prefeito tirando do bolso o fura-fila, um trem de superfície, reminiscência talvez de historinhas de ficção científica de sua infância, onde as cidades do futuro eram percorridas por deslumbrantes trens aéreos.
Coisa de gibi ianque. Os europeus cedo descobriram que o futuro dos transportes estava embaixo, e não acima da superfície. Acontece que obras subterrâneas não são visíveis. Nossos administradores preferem obras visíveis, a tal ponto que só em São Paulo vi esta anomalia, as estações de metrô acima da superfície, o que significa desapropriações onerosas e mais problemas para o tráfego.
Fora dos horários de pico, o transporte coletivo nas capitais européias é lazer dos mais profícuos. Os vagões mais parecem salas de leitura, e já vi inclusive passageiros lendo partituras, acompanhando os acordes com agitados movimentos de mão. Em Estocolmo, quando lá vivia, existia uma linha de metrô de longo percurso, com um vagão transformado em sala de aula, onde se estudava até mesmo grego.
Os filhinhos de papai que queimam e depredam nas ruas de São Paulo acham que o problema dos transportes coletivos reside em 20 centavos. Ontem ainda, citei colunistas que vêem nas depredações indícios de sonho. “A molecada vai para as ruas defender o seu direito de sonhar com um mundo diferente”. Para construir um mundo novo, é preciso destruir o antigo.
Estamos no reino das utopias desvairadas. Mas mesmo no universo do pensamento utópico houve quem preservasse o bom senso. Em seus falanstérios, para os jovens que pretendiam acabar com a propriedade privada, Fourier tinha um ofício: seriam aproveitados como mão-de-obra na demolição de edifícios.
16 de junho de 2013
janer cristaldo
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