A revolta contrasta com o futebol – esse conflito aberto, mas com tempo, espaço e regras explícitas. A revolta causa prejuízo e mal-estar. O pé na bola é uma fábrica de dinheiro e, entre nós, de toda uma afirmação do mundo. Afinal, o que é melhor: ser cinco vezes campeão do mundo ou ter inventado (usado) a bomba atômica?
Tanto o interior quanto o litoral ressuscitam conflitos reprimidos a exigir justiça, eficiência e honestidade pública. Justiça para os usuários pagadores de impostos e dependentes de transporte público e para os chamados “índios”, cujas terras foram reconhecidas e demarcadas para depois serem – eis o absurdo – “desreconhecidas”.
Aqui, estamos diante de uma nova figura legal que simboliza o neoindigenismo do governo Dilma. Ao lado de um pró-capitalismo que distribui empréstimos e concessões aos companheiros, surge um aviltante anti-indigenismo em contramão ao legado de Rondon, de Darcy Ribeiro, dos Villas-Bôas, de Noel Nutels, e de todos quantos têm alguma preocupação com a responsabilidade para com essas humanidades que, por acaso, estão dentro do nosso território.
Os antropólogos foram colocados sob suspeita. Seus laudos periciais vistos como bons demais para os indígenas. A Funai foi desmontada. Nunca antes na história desse país a questão indígena foi solucionada com tanto desembaraço. Agora, ela será administrada por um “conselho” – esse formato administrativo que desde Dom João Charuto é usado para nada resolver.
Ao lado desse conflito, testemunhamos demonstrações de violência urbana que nos tiram do prumo. Para quem viu a chamada revolta das barcas, na Niterói de 1959 – um protesto que levou a multidão a incendiar a residência dos donos da empresa, deixando um saldo de 6 mortos e 118 feridos e um belo estudo sociológico realizado por Edson Nunes -, a memória não pode deixar de anotar como o estar entre a casa e a rua é um momento sensibilizador do mistério chamado de “multidão” ou de “turba”, cuja conduta seria violenta e irracional.
Tanto o interior quanto o litoral ressuscitam conflitos reprimidos a exigir justiça, eficiência e honestidade pública
“A Banda”, a marchinha extraordinária de Chico Buarque de Holanda, exprime bem a processo.
A banda passa e vai arregimentando quem ouve ou é contaminado pela sua melodia. Eis um ponto de partida para compreender como o protesto termina em revolta porque a densidade dos gestos corresponde à ausência de ação dos governantes, que não são mais distinguíveis por partido ou por atitudes.
A violência igualada na sua irracionalidade é da mesma ordem de um espaço público que ficou entregue por décadas ao deus-dará da nossa passividade.
Ninguém pode determinar com precisão o motivo dessas manifestações. Mas todos temos consciência de suas intenções e de suas ultrapassagens do bom senso, graças à participação decisiva das forças policiais – esse ator imprescindível para criar a moldura final do drama. Numa sociedade democrática, protestar é rotina e fomos para a rua com essa intenção.
Tudo ia muito bem até que surgiu a polícia que veio deturpar o nosso pacifismo e mudar as nossas intenções. A polícia, por seu turno, nega a intenção do confronto. Cumpria o seu dever, mas os mais exaltados impediam qualquer ato pacifico. Como, pergunta o cidadão disposto a aceitar tudo, sair desse enredo?
Dizem que há inflação e superfaturamento, inclusive nos estádios de futebol. Há boatos “o bicho vai pegar”. Alguns bruxos dizem que as fórmulas milenaristas se esgotaram. Não há mais quem possa fazer por nós, exceto nós mesmos. Todos os políticos ficaram iguais no seu narcisismo e na sua surdez.
Em meio a tudo isso, ocorrem torneios futebolísticos mundiais. Vencemos o primeiro jogo da primeira Copa global, a das Confederações. Mas, vejam bem o sintoma: vaiaram os presidentes da Fifa e da República. Há esperança, diz o meu lado otimista; deixa pra lá, diz-me a voz que conversa com um velho amigo escocês.
20 de junho de 2013
Roberto DaMatta
Fonte: O Globo
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