"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 20 de junho de 2013

"PROTESTO"

E, do caos, fez-se o protesto. No início, manifestações pequenas degeneraram, previsivelmente, em violência e depredação. Truculências policiais, uma vaia avassaladora contra Dilma Rousseff e manifestações com outra pauta, sobre os gastos públicos na farra da Copa do Mundo, pontuaram o estágio intermediário. Enfim, protestos multitudinários tomaram as ruas de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte e de Brasília.
 
A sequência desafia a lógica convencional e escapa às ferramentas de tradução dos políticos, mas lança alguma luz sobre uma crise larvar que, agora, emergiu. Bem na hora em que o Palácio do Planalto preparava-se para tocar novamente uma velha canção da Copa do Mundo de 1970 o céu desabou.
 
Nada houve de espontâneo na etapa inicial. Os movimentos pelo "passe livre" são constituídos por autointitulados "anarquistas", seitas esquerdistas e jovens indignados que se movem à margem dos aparelhos da esquerda oficial (PT, PCdoB, sindicatos, UNE). Nas franjas dos movimentos, circulam bandos de punks à caça de oportunidades para confrontos com a polícia.
 
O "passe livre", uma utopia socialmente reacionária, funcionava como pretexto para quimeras diversas: a "superação do capitalismo", a "revolução proletária", a "guerra urbana". As vergonhosas distorções de nossos sistemas de transporte coletivo - avessos à transparência, hostis aos usuários, pontilhados de privilégios, curvados pela associação oculta entre empresas de ônibus e políticos - não interessam realmente aos grupos radicalizados que protagonizaram as primeiras manifestações.
 
Há sintomas de uma notável regressão política. As passeatas estudantis de 1977 contra a ditadura militar tinham linha de frente e cordões de segurança, elementos ausentes nos protestos em curso. A desordem prestou-se à ação de incendiários e depredadores. Governantes e chefes de polícia despreparados multiplicaram o caos, produzindo cenas chocantes de violência contra manifestantes pacíficos. Mas a escala faz a diferença: quando dezenas de milhares foram às ruas, os encapuzados viram-se reduzidos à insignificância e, quase sempre, à impotência.
 
"Não é por centavos, é por direitos", esclarecia uma faixa no Rio de Janeiro. "Brasil, vamos acordar, o professor vale mais que o Neymar", cantou-se em São Paulo.
Na segunda-feira, o "passe livre" já era só um pretexto coletivo para manifestações que exigiam o reconhecimento de um "direito ao protesto" e exprimiam uma frustração "difusa" e "crescente" - duas palavras usadas pelo ministro Gilberto Carvalho, a sombra onipresente de Lula no governo de Dilma.
 
As marcas da juventude e de uma diversificada classe média, inclusive das periferias, estavam impressas nos protestos de massa. "Não é a Grécia, não é a Turquia - é o Brasil que sai da letargia", gritaram em São Paulo. Só se grita isso porque, de algum modo não óbvio, é "a Grécia" e é "a Turquia".
 
A escala faz a diferença. As quimeras das seitas esquerdistas tornaram-se inaudíveis nos protestos de multidões. No lugar delas, desenhavam-se os contornos de uma agenda implícita, ainda não cozida no fogo da linguagem política. As pessoas estão fartas do governo e da oposição, da corrupção e da impunidade, da arrogância e do cinismo, da soberba e do descaso. O estádio superfaturado, o ônibus superlotado, a escola arruinada, a inflação, a criminalidade, o Dirceu e o Eike - é sobre isso que falam os manifestantes, ecoando palavras de milhões ainda inseguros quanto à conveniência de protestar nas ruas.
 
O inimigo, que ninguém se engane, é toda a elite política reorganizada durante a década de balofa euforia do lulopetismo. Um preocupado Gilberto Carvalho alertou contra a tentação de "tirar proveito político, de um lado ou de outro" dos eventos da segunda-feira. Mestre no ofício de "tirar proveito político", ele já percebeu que um ciclo se fechou.
 
A política é, entre outras coisas, a arte de ordenar e hierarquizar as inquietações populares. No declínio da ditadura, estudantes e sindicalistas usaram as expressões "anistia", "liberdades democráticas" e "direito de greve". Na hora da dissolução do regime militar, as oposições se reuniram em torno do estandarte das eleições diretas. A bandeira do impeachment, erguida por partidos e movimentos sociais, encerrou a saga desastrosa do governo Fernando Collor.
 
Diante da hiperinflação, os tucanos ofereceram um programa de estabilização, reformas e privatizações. Na conjuntura de crises externas que erodiam os salários e as aposentadorias, o PT prometeu distribuir a renda e exterminar a pobreza. Hoje, porém, a "difusa" e "crescente" inquietação não encontra traduções políticas nítidas.
 
A desmoralização da ágora* - eis a pior herança do lulopetismo. O governo Lula cooptou os movimentos sociais, convertendo-os em marionetes de suas ambições eleitorais, e reforçou os grilhões que prendem o movimento sindical ao poder de Estado. No governo Dilma, completou-se a construção de uma esmagadora maioria parlamentar alicerçada sobre a distribuição de sesmarias na administração direta e nas empresas estatais.
 
Do lado de fora da ampla coalizão governista, destituídos de princípios ou convicções, os partidos de oposição remanescentes abdicaram da crítica e do debate, aguardando que um milagre transfira o poder para suas mãos. A política parlamentar democrática feneceu, exaurindo-se de sentido. As manifestações provavelmente teriam começado antes, não fossem as esperanças depositadas no julgamento do mensalão.
 
Nesse cenário, os protestos descrevem trajetórias pré-políticas e os manifestantes apalpam terreno desconhecido, em busca de uma linguagem e de uma agenda.
A anomia não perdurará eternamente - mas, por enquanto, gera muito calor e pouca luz. De qualquer modo, uma festa terminou antes mesmo de começar: desconfio de que Pra frente Brasil não será ouvida na Copa do Mundo de 2014.

* (praça pública da Grécia antiga)

20 de junho de 2013
Demétrio Magnóli, O Estado de São Paulo
 

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