Atribuem ao presidente Kennedy a observação de que a vitória tem muitos pais, mas a derrota é órfã. Melancólica verdade, sobretudo na política, que sempre a confirma sem perdão, bastando ver como as mãos políticas que hoje afagam são as mesmas que ontem apedrejavam e vice-versa.
Em nosso caso, temos ainda uma tradição de adesismo por que zelar, bem como a prevalência do Sonho Brasileiro, que é descolar uma mamata vitalícia em algum lugar do governo ou do estado, porque aqui governo e estado são a mesma coisa.
Entra um governo novo e declara “o estado é nosso e só faz o que nós queremos”. Isso torna impossível a realização do sonho sem que o sonhador abandone o inditoso derrotado e passe para o lado do futuroso vencedor. Suponho que devemos encarar essas coisas com compreensão e até caridade, pois o pessoal está apenas querendo sobreviver e subir na vida, é natural.
Vários outros princípios e paradigmas de conduta estão também envolvidos na questão, entre os quais sobressai o “farinha pouca, meu pirão primeiro”, farol ético que parece nortear nossa formação coletiva, tal o vigor com que se evidencia no comportamento de nossos governantes. Às vezes penso que a frase devia constar de algum emblema nacional, é muito injusto que não receba o reconhecimento merecido.
No momento, a farinha ainda não está propriamente pouca, mas há sempre os previdentes, que não querem deixar seu pirão aos cuidados do acaso. Melhor tratar de farejar os ares e descortinar por onde anda a temível assombração da derrota, para ir-se afastando dela quanto antes. Não sei se já começou a debandada, mas acho que pelo menos há alguns sinais dela, difusos nos noticiários e comentários políticos.
O moral do governo não parece andar muito alto. O saco de gatos dos ministérios é um espetáculo triste, desanimado, desarvorado e sem aparentar saber muito para onde ir, ou o que fazer. Ninguém — arrisco-me a dizer que nem mesmo a presidente — é capaz de lembrar todos os ministérios e muito menos todos os ministros.
Sabe-se que muitos destes se esgueiram obscuramente pelos corredores e salas dos fundos do poder, sem sequer terem a chance de dar um bom-dia à presidente, quanto mais de despachar alguma coisa.
Fica aquela pasmaceira, interrompida por momentos de falatório vago e repetitivo, que não prenunciam nada de importante. E há, seguramente, ministros que, se perguntados de surpresa, não saberão bem o que fazem suas pastas, acrescido o pormenor de que vários ministérios, ou grande parte deles, não fazem nada mesmo, a não ser dar despesa.
A reação às manifestações de rua mostrou um esforço atarantado para manter a aparência de calma, equilíbrio e controle da situação, quando era visível que não havia nada disso e estava todo mundo de olho arregalado e sem saber o que dizer ou, pior ainda, fazer.
Comentou-se em toda parte que, como já teria acontecido antes com frequência, a presidente peregrinou ao ex-presidente, para saber dele como agir, porque ela mesma não fazia ideia, o que vem sublinhando a imagem de despreparo e insegurança mal articulada que ela cada vez mais projeta.
Ouvidos também os vizires do momento, saiu do Planalto uma voz chocha e pouco inspiradora, naquele tom de professora repetindo uma aula decorada a contragosto e sem nenhum entusiasmo ou até confiança, propondo absurdos, tentando espertezas quase amadorísticas e, em última análise, mostrando a incompetência do esquema que a rodeia.
A tal governabilidade, que tanto mal tem produzido, tão pouco bem tem causado e nunca funcionou direito, servindo basicamente para o intricado jogo das nomeações, colocações, favores e outros objetivos dos nossos homens públicos, está cada vez mais caindo pelas tabelas.
Todo dia um cai fora, outro proclama dissidência e independência, formam-se alas e subalas, o rebuliço surdinado é grande. A turma da base aliada, que sempre deu trabalho e aporrinhação e nunca agiu pelos belos olhos da nação, começa a enxergar um governo fraco e a querer distância dele, ainda mais com as ruas pressionando.
A corte continua lá, o ex-presidente continua lá, mas é de se acreditar que, de agora em diante, a solidão da presidente vai agravar-se.
A inflação está voltando e as negativas e bravatas das autoridades não convencem, diante da realidade dos preços.
As declarações otimistas do ministro da Fazenda são recebidas quase com deboche. O crescimento é minguado, e a economia cambaleia cada vez mais e o governo caracteriza seu comportamento por ações meramente conjunturais e pontuais, respondendo de forma superficial e casuística aos problemas que aparecem.
Os índices de popularidade da presidente desabaram e mesmo um antes improvável segundo turno nas eleições já está sendo previsto. Até uma surpreendente vaia de prefeitos ela tomou em Brasília. Tudo isso com certeza provoca inquietude na alma e comichões nos pés de quem quer ficar longe da órfã derrota.
Para completar o quadro, o governo não dispõe de um Big Bang para apresentar, no encerramento destes seus quatro anos. Nenhuma grande obra, nenhum grande passo, nenhum grande marco. Inflação subindo, PIB baixando, educação alarmante, saúde escangalhada, infraestrutura desmantelada, transporte urbano infernal, segurança pública impotente, estrutura fiscal pervertida, ferrovia Norte-Sul em descalabro, transposição do São Francisco roubada e sucateada — nada a apresentar, nada a trombetear, nada a comemorar.
A propalada truculência da presidente está virando folclore e em lugar de força, mais parece denunciar exasperação impotente. Cara de derrota para o governo e ninguém vai querer ser o pai dela. Mas receio que não terão dificuldade em apontar a mãe.
21 de julho de 2013
João Ubaldo Ribeiro, O Globo
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