Vivemos momentos emocionantes. Desde 1848, pelo menos uma meia dúzia de vezes, cérebros peregrinos iluminados afirmaram que a "revolução" estava nas ruas: o socialismo libertador esperava atrás da esquina. Os movimentos das ruas no mundo, inclusive no Brasil, demonstrariam que agora vai. Teria chegado, afinal, o fim do alienante capitalismo, que produziu toda a miséria humana, como é visível pela piora do bem-estar do mundo desde o século XVIII... Já se anuncia, outra vez, a inevitabilidade do "socialismo", seja lá o que isso for.
O abuso das generosas ideias de Karl Marx ajudaram a dar credibilidade ao chamado "socialismo real" de Lênin e Stalin. Marx, um libertário, seguramente o consideraria nada menos do que abjeto: uma "igualdade" construída pela eliminação da liberdade individual que pretendia criar o "homem novo", apoiado no mais ineficiente aparato produtivo, que refletia as preferências do poder totalitário. Setenta anos depois de tentativas frustradas de aperfeiçoamento interno e do uso inaudito da força bruta, o sistema revelou-se dos mais poluidores e corruptos de quantos já frequentaram a história. Sem saída, suicidou-se!
Além da coordenação pelos "mercados", os homens não descobriram outro mecanismo que permita melhor acomodação relativa das demandas contraditórias que procuram na organização da sociedade. Há 150 mil anos, eles buscam uma forma de organização social na qual possam construir sua humanidade: 1) liberdade para escolher livremente a sua atividade e explorar os seus talentos; 2) sendo um animal gregário e territorial, sente-se melhor com uma relativa igualdade dentro do seu clã; e 3) para "humanizar-se", precisa de tempo livre para reflexão, o que exige um eficiente sistema de produção da sua subsistência material. Esse não é um fim em si mesmo: é a possibilidade civilizatória implícita na liberdade de escolha e na relativa igualdade, porque "não é o tempo de trabalho, mas o tempo disponível que mede a riqueza" (Marx, K. - "Grundrisse", Ed. Anthropus, Paris, T.2 (1968):226).
Na Suméria, os mercados já eram uma forma de coordenar pequena liberdade individual com o atendimento das demandas da sociedade, que Adam Smith teorizou 50 séculos depois!
O problema é que os três objetivos - liberdade, igualdade e eficiência produtiva - não são inteiramente compatíveis. Liberdade e igualdade costumam brigar entre si: os homens são, naturalmente, dotados de talentos diferentes. Liberdade e igualdade acomodam-se mal na hierarquia de um sistema produtivo eficiente. A história mostra que um processo de seleção quase natural tem levado a uma aproximação assintótica dos três objetivos pelo sufrágio universal, pelo uso cada vez mais inteligente dos "mercados", e pela apropriação dos benefícios da ciência e da tecnologia.
A organização da atividade econômica através de mercados cada vez mais eficientes não se confunde com o capitalismo, que é a supremacia das finanças sobre a atividade produtiva. Um artigo publicado no "The Economic Journal" (Sept. 1928), pelo grande Joseph Schumpeter, então na Universidade de Bonn, "The Instability of Capitalism", era leitura obrigatória na disciplina de sistemas econômicos comparados da FEA-USP, no fim dos anos 40 do século passado. Nele ensina, com sua adorável afetação: "Temos de definir o que significa nosso sistema econômico. Ele é caracterizado pela propriedade privada, pela produção para o mercado e pelo fenômeno do crédito. Este último é a 'differentia specífica' que distingue o sistema 'capitalista' das outras espécies históricas, ou possíveis, que pertencem ao gênero definido pelas duas primeiras características".
A evolução quase natural para a organização social, que vai acomodando o atendimento aos três objetivos não inteiramente conciliáveis, tem sido acelerada pelo jogo continuado entre os resultados da urna, comandados pelo sufrágio universal, e o funcionamento dos mercados, aperfeiçoado pelos conhecimentos desenvolvidos no avanço da economia.
Há limites físicos insuperáveis na aceleração desse movimento. O gráfico abaixo revela o processo de desenvolvimento econômico descarnado de toda sua complexidade. Da população extrai-se a população economicamente ativa (L), que opera o estoque de capital (K) da economia: ambos dependem do suprimento de energia.
A produtividade do conjunto depende da relação K/L, ou seja, do capital associado a cada unidade da mão de obra. A combinação produz o PIB, que pode ser ou consumido ou investido para reforçar a qualidade da população com educação e saúde e o estoque de capital. Se para ampliar o consumo, o estoque de capital cresce menos do que a mão de obra, o sistema perde produtividade e o crescimento murcha. Não há mágica que supere essa restrição física. Podemos apenas tentar violá-la com o risco de perder o crescimento e a democracia.
21 de julho de 201
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário