A seis meses dos XXII Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi, na Rússia, o presidente Vladimir Putin está no centro de um inflamado embate com a comunidade LGBT do mundo inteiro. Em princípio, nada que tire o sono desse chefe de Estado que esculpiu para si um perfil de macho nacional.
Putin também sabe que ao desempenhar o papel de cruzado das tradições russas contra a degradação dos costumes no Ocidente sua popularidade cresce junto à base conservadora e religiosa que lhe é fiel.
A sucessão de leis que ele sancionou nas últimas semanas restringindo os direitos dos grupos LGBT evoca os tempos stalinistas. A primeira, aprovada por maioria absoluta no Parlamento e por 88% da população, criminaliza qualquer manifestação a favor dos direitos civis gays e classifica como pornografia a “propaganda homossexual”.
Outra proíbe a adoção de crianças russas não apenas por casais homossexuais mas também por solteiros residentes em países onde o casamento gay tem alguma forma de legitimação.
E uma terceira autoriza a polícia russa a prender turistas e cidadãos estrangeiros suspeitos de serem homossexuais, lésbicas ou “pró-gay”. Podem ficar detidos por duas semanas. No mês passado uma equipe de cinema holandesa que entrevistava jovens para um documentário sobre direitos civis foi a primeira enquadrada.
Em tese, isso significa que qualquer atleta, técnico, repórter, membro de delegação ou turista olímpico gay ou suspeito de sê-lo pode ser detido antes, durante ou após os 18 dias de duração dos Jogos em Sochi.
Para o Comitê Olímpico Internacional (COI), é encrenca à vista — mesmo que as autoridades locais sejam lenientes para não estragar o evento que terá custado mais do que a Olimpíada de Pequim.
“Recebemos garantias do escalão mais alto do governo russo de que a legislação não afetará a quem participar dos Jogos”, informou o comunicado inicial do COI. “As Olimpíadas são um evento internacional de grande porte. Devemos ser tão polidos e tolerantes quanto possível. E por este motivo foi tomada a decisão de não levantarmos essa questão [a aplicação da lei aos visitantes] durante os Jogos”, assegurou também o vice-presidente russo da Comissão Parlamentar de Educação Física, Esporte e Juventude.
“Quer dizer então que, com o nosso salvo-conduto para participar dos Jogos de 2014, os skinheads vão espancar somente os homossexuais russos, é isso?”, indaga o americano John Aravosis, um dos blogueiros mais ativos na campanha para sacudir Sochi.
O embate está apenas começando. Numa segunda rodada, a entidade aceitou receber em sua sede de Lausanne representantes do grupo ativista All Out, para quem realizar os Jogos em Sochi, com a atual legislação em vigor, equivale a realizá-los em Johannesburgo no auge do regime de apartheid. Petições contendo centenas de milhares de assinaturas chegam à sede olímpica que promete exigir do governo russo um compromisso mais amplo e firme. E por escrito. Ela também reitera sua posição de que os Jogos devem ser abertos a todos — espectadores, oficiais, mídia, atletas — e livres de discriminação. “Nos oporíamos frontalmente a qualquer ato capaz de ameaçar este princípio”, conclui.
Pode não ser um princípio, mas uma coisa já foi mais do que ameaçada — foi derrubada. Em contraste com os Jogos de Inverno de Vancouver, em 2010, e os de Londres, em 2012, Sochi não terá uma “Pride House” como ponto de encontro e de informação para atletas LGBT.
Ironicamente, porém, essas Olimpíadas talvez venham a ter um efeito bumerangue. Elas podem se tornar uma inesperada plataforma para que atletas e os próprios russos driblem as leis vigentes e tornem o direito de ser gay a marca de 2014. Algo como o protesto contra a discriminação racial imortalizado nos punhos dos americanos Tommie Smith e John Carlos, no pódio dos 200 metros rasos de 1968, na Cidade do México.
Para a rede de televisão americana NBC, que pagou US$ 775 milhões pelos direitos de transmissão de Sochi, a sinuca não é menor. Nos Estados Unidos a não discriminação de gays é defendida tanto pelo ocupante da Casa Branca como por patrocinadores olímpicos de peso — Coca-Cola e McDonald’s, entre outros. Como não fazer qualquer referência a uma questão cuja existência será difícil de ignorar?
Vários são os cenários imaginados por atletas, militantes e ativistas com passagem comprada de como furar o bloqueio televisivo. Há até quem já deixou de comprar vodca Stolichnaya.
E há vozes nobres. Uma delas a se juntar ao coro de indignados com o cerco aos homossexuais na Rússia é a de Greg Louganis. Vale a pena relembrar de quem se trata.
Louganis é detentor de quatro ouros olímpicos em salto ornamental. Foi o maior atleta da modalidade de todos os tempos. Na Olimpíada de Seul, em 1988, fez a arquibancada lotada parar de respirar ao bater com a cabeça no trampolim no seu nono salto. Ao sair da piscina para levar doze pontos, um pálido filete de sangue ficara na água. Meia hora depois, o atleta retornou ao trampolim e deu o salto final rumo ao ouro.
O público, boquiaberto e eletrizado, ovacionou o que viu. Só seis anos mais tarde foi saber o que não viu: Louganis era portador do vírus HIV. Recebera o resultado positivo seis meses antes e apenas seu técnico conhecia o segredo. O preconceito contra a doença, naqueles tempos, ainda era monumental. O tamanho do pânico do atleta no dia da pancada, como ele contou na autobiografia, foi inenarrável. Saltar novamente foi o de menos.
Passaram-se 25 anos. O tempo da causa gay no esporte avançou. Louganis está de casamento marcado. Na Rússia de Putin, o tempo andou para trás.
11 de agosto de 2013
Dorrit Harazim é jornalista.
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