"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 22 de janeiro de 2012

COLOCANDO AS COISAS EM SEUS LUGARES...

Clínicas para viciados são parte de nossa caridade; o verdadeiro trabalho de prevenção é a repressão ao tráfico e ao consumo

Aqui e ali, vejo tentativas de reproduzir ou sintetizar o que tenho escrito sobre a cracolândia e, mais genericamente, sobre as drogas — e a descriminação —, e constato sínteses absolutamente erradas. Acho que escrevo com razoável clareza. Mas o debate é mesmo complexo, e é grande o bombardeio de opiniões, informações e difamações. Tudo acaba na tal zona cinzenta. Vamos lá.

POLÍCIA PARA QUEM PRECISA

Eu não acho que a retomada do centro de São Paulo pelo Poder Público, devolvendo-o ao estado de democrático e de direito, seja uma medida para combater o vício, socorrer os viciados ou liquidar com o tráfico de drogas. Eu considero que a retomada daquela área é apenas a retomada daquela área, a saber: o que é de todos não pode ser privatizado por um grupo que cultiva um hábito, um vício ou mesmo um conjunto de valores.

Se, amanhã, cinco mil apreciadores de Tubaína decidirem tomar um pedaço da cidade, hostilizando quem não é da grei, ameaçando, sitiando as pessoas em sua casa, emporcalhando a área, acho que a polícia tem de entrar em ação. A propósito: eu acho que nem mesmo os admiradores da Bíblia, da minha religião ou de qualquer outra, têm o direito de se impor, cerceando liberdades garantidas pela Constituição. Essa história de que drogado precisa de médico não de polícia é uma falácia, uma picaretagem. Para se livrar do vício, pode ser. Se ele estiver cerceando o direito de outros, precisa mesmo é de polícia, ora! Aliás, eu defendo que se faça o mesmo com quem estaciona seus carrões fora do local permitido. É preciso acabar com essa coisa estúpida, muito comum entre nós, de que “o público não é de ninguém”. É, sim! É de todos!

A REPRESSÃO E A PREVENÇÃO

Vocês sabem: sempre digo tudo, ainda que possa aborrecer. Mas há questões que me mobilizam mais e questões que me mobilizam menos. Atenção para os passos seguintes.

Sou contrário — e não entrarei no mérito neste texto porque há dezenas neste blog a respeito — à descriminação das drogas. O crack, aliás, é o argumento “quase-vivo” de por que não. Acho que cabe ao estado reprimir, com dureza máxima, o tráfico de drogas e, sim, as, sei lá como chamar, “cidades dos viciados”, espetáculos deprimentes de crueldade. Traficar e consumir drogas devem ser atividades malvistas pela sociedade. Não há um só motivo para que o Poder Público seja um facilitador de uma coisa ou de outra. Mas atenção! Eu não sou exatamente um crente na estratégia da medicalização, não!

INÚTIL MEDICALIZAÇÃO

O que quero dizer com isso? As sociedades não vão se livrar de todos os seus viciados. Desde que o mundo é mundo, eles nos assombram. Na Bíblia, não há exemplos de comunidades reunidas para cultivar ou celebrar uma substância, mas Sodoma e Gomorra já são exemplos de uma organização contra os costumes, não? Sempre houve; sempre haverá! A melhor prevenção que se pode fazer — além, claro!, da educação (sem superestimá-la) — é criar dificuldades para que a droga chegue ao consumidor; vale dizer: é mesmo a repressão. Acreditar que vamos nos livrar de nossos viciados espalhando clínicas país afora é, se querem saber, uma ilusão. Não vamos, não!

Mas não darei este murro em ponta de faca. Dou muitos outros; este não! E digo por quê. Há, sim, a possibilidade de se curarem uns tantos gatos pingados nesse esforço. Sou cristão. Uma vida humana, qualquer uma, já me é muito cara. Se um homem se salvar, rejubilo-me. Como escolha de política pública, no entanto, trata-se de custeio, não de investimento. Vivemos dias em que se acredita que só os loucos e os doentes fazem escolhas erradas. Não é verdade! Convém que a gente lide com a hipótese de que muita gente só sabe viver daquele modo, experimentando aquele limite!

Qual seria a minha escolha? Reitero: reprimir o tráfico e deixar claro que nem viciados em crack nem viciados em tubaína imporão a sua (in)disciplina a terceiros. Garantido isso, que cada um viva segundo a sua escolha até o limite em que não passe a ser uma ameaça pública. O suicídio é uma abominação, mas nenhum estado é tão abominável a ponto de proibi-lo… Caso se leve mesmo a sério a proposta de espalhar clínicas país afora (duvido um pouco), veremos o óbvio: muito dinheiro será torrado, e o resultado será pífio. Sim, é verdade: neste momento, milhões de pessoas se entopem de barbitúricos, analgésicos etc. É uma forma do vício. Só que seus usuários não saem por ameaçando pessoas. “Ah, é só porque é legal!” Mentira! O crack não era (ou não é) reprimido nas cracolândias, e a gente viu no que se transforma aquilo.

Essas clínicas, como política pública contra as drogas, serão inúteis, e ainda há o risco — fiquemos atentos! — de estimular o consumo, sugerindo que há uma “cura” para o mal. Mais: a seguir a cartilha do Ministério Público, o viciado fura a fila até para conseguir uma moradia financiada pelo Estado. Pretende-se estupidamente que a droga encurte o caminho para benefícios sociais, o que é um acinte à inteligência. Volto à questão daqui a pouco, ao tratar das internações forçadas.

OS LIMITES DA EDUCAÇÃO

Muito se fala também de um trabalho amplo de “educação” contra o crack. É… Olhem aqui: fosse esse um fator realmente decisivo, não haveria mais transmissão do vírus da AIDS pela via sexual — aconteceria, eventualmente, em rincões de desinformação, e olhem lá! E, no entanto, a contaminação continua grande. Falta informação? Não! Falta conhecer os riscos? Não! Falta camisinha? Não! Não há política pública eficaz, lamento escrever, contra “o tesão de correr riscos”. Ora, bem pouca gente ignora os efeitos deletérios das drogas ou o perigo do sexo sem proteção. Não se inventou prevenção maior contra uma coisa e outra do que cultivar valores que sejam hostis a um e a outro.

E, nesse caso, cometem-se, com freqüência, verdadeiros crimes morais e educacionais. Lembro-me, por exemplo, de uma propaganda na TV contra AIDS que mostrava um grupo numa festa animada e tal. Corte! O rapaz dá um pulo de susto na cama, olha do lado, vê um desconhecido, apavora-se, mas relaxa ao ver o invólucro aberto de uma camisinha no criado-mudo. Isso é campanha contra AIDS? Não! Isso é uma campanha a favor! O VALOR que afasta a AIDS é o sexo responsável. A camisinha é só a barreira física. No caso, responsabilidade não havia. O sujeito nem mesmo tinha memória da transa.

Finalmente, trato das internações forçadas. Quando já não conseguem mais encontrar uma resposta, as famílias têm recorrido a esse expediente. Mas há, sim, casos em que o viciado já rompeu também esse vínculo — não raro, acometido de moléstias mentais as mais variadas. Como sociedade, podemos — e acho que devemos — retirá-los das ruas e procurar tratá-los. Mas é só uma medida de segurança e de caráter humanitário, não necessariamente para acabar com vício. Se ocorrer, muito bem — mas não sou exatamente um otimista nessa matéria, já disse. Creio que é preciso fazê-lo para que deixem de ser uma ameaça pública e para que possam receber um tratamento digno. Quanto estaremos dispostos a investir nisso?

CONCLUINDO

Considero as eventuais clínicas e centros de recuperação públicos, quando e se os houver em número significativo, uma expressão da CARIDADE, não de uma política de combate às drogas. A educação deve cuidar da informação. Em tese ao menos, quanto mais se sabe sobre um assunto, melhor é a escolha. Mas nenhum trabalho do estado é tão importante quanto a repressão ao tráfico e, sim!, ao consumo. Não será com o estado-babá que se vai manter a questão sob controle. A cada vez que alguém é flagrado com droga — ainda que apenas para seu consumo —, sem que isso gere alguma conseqüência ou obrigação junto ao estado, há um pequeno investimento no caos social e na calamidade. Nessa matéria, a verdadeira prevenção é a repressão eficaz.

Podemos — e até devemos — criar as tais clínicas como expressão da nossa caridade. Mas não podemos ser generosos com o vício. Vender droga será sempre um bom negócio, e é preciso meter em cana os traficantes. Mas consumi-la tem de ser um mau negócio. Cuidemos, sim, de nossos doentes. Mas não podemos e não devemos ser tolerantes com os viciados em transgredir as regras e, pior, recompensá-los por isso.

22 de janeiro de 2012
Reinaldo Azevedo

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