Além da fachada, não sobrou pedra (de construção) sobre pedra
(de crack) no sobrado da Cracolândia que tem 100 anos de história para
contar
por Carol Pires | Fotos: Tuca Vieira
Padre Mário Quilici, que completou 89 anos no mês passado, está cansado. Não
tem conseguido dormir com o barulho dos helicópteros da polícia e das emissoras
de tevê que atazanam o seu sossego desde janeiro. Pároco mais antigo do
centenário Colégio Salesiano Liceu Coração de Jesus – sua fundação data de 5 de
junho de 1885 –, o religioso cuida até hoje do acervo
histórico da instituição. Ingressou na casa ainda rapazote, como aluno interno,
e se formou nos mesmos bancos em que se sentaram, em épocas variadas, dois
futuros governadores de São Paulo (Carvalho Pinto e Franco Montoro), um futuro
presidente da República (Jânio Quadros), o criador e reitor da Unicamp, Zeferino
Vaz, além de Monteiro Lobato, Grande Otelo, Toquinho e tantos outros.
Em sua época de ouro, na década de 60, a instituição chegou a formar até 3 mil alunos por ano letivo. Para 2012, Mário Quilici prevê menos de 300 crianças matriculadas na instituição. Nem poderia ser diferente. Os cinco quarteirões da alameda Dino Bueno, rua onde o Liceu foi erguido, somados aos três mais degradados da rua Helvétia, no outrora respeitado bairro central de Campos Elíseos, provocam arrepios. Abandonado há décadas pela cidade, deformado pelo crack e reempossado pelo mais recente surto de ação policial, o local mais parece uma terra arrasada.
uma caminhada recente pela vizinhança, o padre Mário apontou para o sobrado de número 118, situado a um quarteirão do Liceu. “Este casarão já foi um hotel. Não muito luxuoso, mas era arrumado”, relembrou. Chamava-se Hotel Rio Jordão, fora inaugurado em 1970 e até estacionamento para automóveis oferecia – reflexo da construção da Estação Rodoviária de São Paulo, em frente à praça Júlio Prestes, a menos de 200 metros dali.
Trinta anos atrás, o corpo técnico do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (o Condephaat) indicou cerca de quarenta imóveis do bairro para serem tombados. Entre eles, o de número 118. Sua construção fora registrada na Prefeitura como sendo de 1939, mas o arquiteto e professor da Universidade de São Paulo Carlos Faggin acredita que o imóvel seja de um período anterior – algo entre 1910 e 1920. “O estilo é o eclético paulista, mistura um pouco de neoclássico com outras tendências locais. Era tipicamente uma casa de renda, construída para ser alugada”, assegura ele. Um decreto municipal de 1984 declarou o sobrado 118 “sob preservação de nível 2” – categoria que determina a preservação externa do imóvel e permite reparos em sua fachada.
Passados quase trinta anos, não se pode dizer que a lei não foi cumprida à risca. Os vãos da porta e dos quatro janelões da fachada foram vedados com blocos de cimento. As janelas menores foram arrancadas e parte da parede externa ficou enegrecida por um incêndio recente. Mas a “arquitetura externa” foi preservada. Na parede castanho-avermelhada, uma pichação em preto informava o essencial: “Welcome City Cracko.” Bastava um passo adentro para captar o retrato da degradação social naquele pedaço de subvida urbana.
Na segunda semana de janeiro, o saguão ainda estava coberto de lixo – barro, cacos de tijolos, um casaco de crochê rosa, uma bota preta, um par de tênis All Star marrom, garrafas vazias de Guaraviton, uma lata de sardinha, o cinco de copas de uma carta de baralho. Na parede em frente ao que restou de uma escada de mármore, um penico azul permanecia pendurado por um arame, como se fosse uma guirlanda.
Uma semana antes, a Polícia Militar havia esvaziado quatro casas geminadas da rua Helvétia, além do sobrado 118 da Dino Bueno, cujos fundos se interligavam através de buracos abertos em paredes e muros. Conhecido como “o buraco”, aquele labirinto improvisado chegou a abrigar quatro centenas de usuários de crack. Volta e meia a Prefeitura levantava vedações de cimento destinadas a impedir o acesso dos “noias” (corruptela de “paranoias”) às entranhas das casas abandonadas. Mas, tal qual toupeiras, eles sempre conseguiam se esgueirar de volta para dentro do “buraco”.
Ali, entre o entulho espalhado pelos cômodos, baratas cascudas caminhavam sob a fuligem gerada por paredes queimadas. A chuva do fim das tardes de janeiro tinha passagem livre, pois o que restou dos tetos das casas era permeável. A água se misturou ao bolor, lodo, mofo, ferrugem, teias e chorume gosmento brotando do entulho. O cheiro de detrito e putrefação era de fazer arder as narinas.
Antes da intervenção, a população flutuante diária do lado de fora das casas chegou a 2 mil pessoas, entre usuários e traficantes de drogas. Até mesmo a linha de ônibus 719P-10 (Metrô Armênia/Pinheiros), que passava por esse trecho da Helvétia, teve de ser desviada por falta de espaço para a circulação de coletivos e carros entre tantos zumbis.
ampos Elíseos foi o primeiro bairro projetado de São Paulo. Ele surgiu no final do século XIX com o loteamento da vasta área até então pertencente ao visconde de Mauá. O que inicialmente eram chácaras de fazendeiros de café se transformou em casas inspiradas na arquitetura francesa, com ruas paralelas e perpendiculares. Tudo obra de um suíço, Frederico Glette, e um alemão, Victor Nothmann, que adquiriram esse naco de terras em 1878 e as planejaram como um Champs Elysées paulistano. A alameda Dino Bueno, batizada à época de alameda dos Andradas, foi justamente uma das primeiras ruas abertas no novo bairro.
O sobrado 118 da Dino Bueno teve outras encarnações desde sua construção como “casa de renda” e transformação em hotel. Foi adquirido por uma família de descendentes de alemães e italianos, os Hergett, que do negócio só guardam amargura. “Compramos a casa como investimento e a alugamos para um indivíduo que a transformou num cortiço. Com a morte desse senhor, o próprio filho abandonou o cortiço e o sobrado foi sendo ocupado pelos noias”, conta Maria Hergett, que, aos 80 anos, continua sendo proprietária do imóvel, agora reduzido a uma fachada. “Eu nunca mais fui lá, temos até medo de passar na frente”, acrescenta. A família é dona de vários outros imóveis na Dino Bueno e ruas adjacentes, mas há quarenta anos mora no bairro residencial de Perdizes.
Sentada na calçada em frente ao que restou do casarão dos Hergett, Joelita Alves dos Santos, 55 anos, três filhos e dois netos, reclama: “Por que tiraram a gente daí se era pra virar isso?” Ex-moradora do 118 nos tempos de cortiço do sobrado, ela não se conforma com o final da história que desalojou 66 famílias. “Era cortiço, mas era limpo, arrumado, ali só morava gente trabalhadeira.” Tinha até nome: Condomínio Alvorada. O senhorio, conhecido como “seu Peixoto”, cobrava 480 reais por um quarto com banheiro, e a vida ia bem. Após sua morte, o filho Edmar assumiu o cortiço e a Prefeitura começou a fazer inspeções no local, com exigências de habitabilidade.
Joelita morou no local até sua interdição pela Prefeitura, dois anos atrás. “Quando a Prefeitura fechou o cortiço”, relembra ela, “os moradores concordaram em sair, mas combinamos que íamos invadir de novo. Só que os noias já tinham ocupado as casas da rua de trás e acabaram chegando no 118 antes da gente.” Com uma carta de crédito de 56 mil reais que ganhou da Prefeitura a título de compensação, Joelita acabou comprando um apartamento a 500 metros dali. Mas sempre volta ao quarteirão detonado para conversar com os antigos vizinhos.
Nos últimos dias de janeiro, antes de as casas geminadas da rua Helvétia serem trituradas por escavadeiras, as mensagens ainda visíveis nas entranhas daquele submundo davam testemunho de vidas arruinadas. “Marcos, te amo”, proclamara alguém, em letras cor de laranja.
Os dizeres são quase todos mais monótonos do que desconexos. Poderiam ter sido rabiscados numa cela de prisão, num banheiro público, num caderno escolar: “Garota misteriosa, você é demais”; “Humildade em primeiro lugar”; “Só os loucos sobrevivem”. No entanto, estavam gravados em paredes sem portas, janelas sem paredes, colunas sem teto, lajes quase sem apoio, escadas que dão para lugar nenhum ou andares já sem escada.
Em dois dos prédios desossados pelos serviços de limpeza da Prefeitura, ficaram para trás, além das baratas, cinco Bíblias, um gato de pelúcia, uma bola de futebol azul e amarela, e um recado que algum dia teve urgência: “Isa, antes de machucar meu coração, se lembra que você mora nele. Não é difícil tirar você da cabeça e sim do coração”, assina Tiago na Zoio. “Vida loka” ficou gravado num azulejo amarelo que escapou de algum incêndio.
Algumas mensagens têm ótima caligrafia. “Poder te dizer que o que eu mais sonhava nessa vida aconteceu: foi te conhecer e agora que estamos juntos não quero nem pensar em te perder. Só quero saber se estar ao meu lado irá te fazer feliz. Eu só sei dizer que estou apaixonada e isso é tudo o que eu sempre quis. Amor, Thaty.” Apenas duas marcações faziam alusão à droga: uma folha de maconha desenhada e a frase “Não roubem nossa brisa”.
No interior dos casarões, ainda com cheiro pútrido, ratos zanzando e lixo a cobrir o chão, era possível imaginar uma rotina dos ocupantes. Antes da demolição, havia um pátio a céu aberto que dava acesso a vários cômodos numerados aleatoriamente: 33, 159, 15, 33, 55, 121. Nesse simulacro de vila informal os espaços se assemelhavam: não tinham porta nem janela e lonas faziam as vezes de teto. Numa parede, uma mensagem definitiva: “Alex, você é um canalha, mas é o homem que conquistou meu coração.”
nquanto os lixeiros retiravam a primeira camada de detritos com pás e carrinhos de mão, um garoto entrou numa das casas e começou a remexer o entulho com um cabo de vassoura quebrado. Vestia bermuda, casaco, tênis e boné pretos e trazia uma mochila nas costas. Não dizia o que procurava. Começou a bater em um dos muros capengas e conseguiu derrubar alguns tijolos. Mostrou-se irritado ao ser indagado se morava ali. “Quem morava nessa nojeira aí eram os noias. Eu sou de Itapevi!” Dois agentes da Polícia Militar surgiram para revistá-lo. Encontraram um cachimbo e o levaram embora.
Uma garota ainda nova, aparentando não ter mais de 20 anos, se aproximou da repórter. Tímida, perguntou se estávamos fazendo uma filmagem e ofereceu um conselho. “As mensagens na parede são pedidos de socorro. Se você prestar atenção, vai entender”, disse em tom de código, antes de sair dali acelerada. Um senhor que ouviu a conversa comentou: “Ela é noia, acabou de voltar da reabilitação, mas amanhã já vai estar aí de novo, toda suja.”
ito dias depois do início da operação de higienização social da Cracolândia, a quantidade de lixo já havia diminuído bastante e a Prefeitura fazia a zeladoria do lugar. Uma gari comentou que ainda precisariam de uns quarenta dias para concluir o trabalho. No final, foram 128,3 toneladas de roupas, móveis, brinquedos, sucata e lixo recolhidas. Quando o massivo já havia sido levado, sobressaíam os detalhes do que ficou daquelas vidas: isqueiros e carteiras de identidade.
Passados alguns dias, Maria das Graças Bernardino voltava a vender eletrodomésticos de segunda mão numa lojinha montada no lado ímpar da Dino Bueno, em frente ao extinto buraco dos noias. Ela conta que até recentemente trabalhava com um porrete na mão para se livrar dos usuários que ficavam agressivos quando ela não queria pagar pela sucata que lhe ofereciam. “Já vi matarem gente a paulada. Um dia passou um cara todo ensanguentado, mas enquanto eu ligava pro bombeiro, eles pegaram o rapaz de novo e terminaram de matar, assim, nas minhas costas”, relembra.
No dia 18 de janeiro, a polícia ainda fazia a vigilância do local e os usuários de crack se esgueiravam pelas adjacências quando o Diário Oficial da Cidade de São Paulo publicou o despacho do prefeito Gilberto Kassab. Determinava a demolição das casas que formavam o buraco – exceto a fachada da casa 118 da alameda Dino Bueno. Razão: apresentavam risco à saúde pública, de desabamento e à segurança da vizinhança. Na mesma semana a City Cracko e suas ramificações subterrâneas viraram pó. E antes que o mês de janeiro acabasse, máquinas-mamute cuidaram de fazer a “pavimentação asfáltica” do quadrilátero maldito. Essa foi a parte mais fácil da anunciada recuperação do Centro de São Paulo. Falta todo o resto.
Em sua época de ouro, na década de 60, a instituição chegou a formar até 3 mil alunos por ano letivo. Para 2012, Mário Quilici prevê menos de 300 crianças matriculadas na instituição. Nem poderia ser diferente. Os cinco quarteirões da alameda Dino Bueno, rua onde o Liceu foi erguido, somados aos três mais degradados da rua Helvétia, no outrora respeitado bairro central de Campos Elíseos, provocam arrepios. Abandonado há décadas pela cidade, deformado pelo crack e reempossado pelo mais recente surto de ação policial, o local mais parece uma terra arrasada.
uma caminhada recente pela vizinhança, o padre Mário apontou para o sobrado de número 118, situado a um quarteirão do Liceu. “Este casarão já foi um hotel. Não muito luxuoso, mas era arrumado”, relembrou. Chamava-se Hotel Rio Jordão, fora inaugurado em 1970 e até estacionamento para automóveis oferecia – reflexo da construção da Estação Rodoviária de São Paulo, em frente à praça Júlio Prestes, a menos de 200 metros dali.
Trinta anos atrás, o corpo técnico do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (o Condephaat) indicou cerca de quarenta imóveis do bairro para serem tombados. Entre eles, o de número 118. Sua construção fora registrada na Prefeitura como sendo de 1939, mas o arquiteto e professor da Universidade de São Paulo Carlos Faggin acredita que o imóvel seja de um período anterior – algo entre 1910 e 1920. “O estilo é o eclético paulista, mistura um pouco de neoclássico com outras tendências locais. Era tipicamente uma casa de renda, construída para ser alugada”, assegura ele. Um decreto municipal de 1984 declarou o sobrado 118 “sob preservação de nível 2” – categoria que determina a preservação externa do imóvel e permite reparos em sua fachada.
Passados quase trinta anos, não se pode dizer que a lei não foi cumprida à risca. Os vãos da porta e dos quatro janelões da fachada foram vedados com blocos de cimento. As janelas menores foram arrancadas e parte da parede externa ficou enegrecida por um incêndio recente. Mas a “arquitetura externa” foi preservada. Na parede castanho-avermelhada, uma pichação em preto informava o essencial: “Welcome City Cracko.” Bastava um passo adentro para captar o retrato da degradação social naquele pedaço de subvida urbana.
Na segunda semana de janeiro, o saguão ainda estava coberto de lixo – barro, cacos de tijolos, um casaco de crochê rosa, uma bota preta, um par de tênis All Star marrom, garrafas vazias de Guaraviton, uma lata de sardinha, o cinco de copas de uma carta de baralho. Na parede em frente ao que restou de uma escada de mármore, um penico azul permanecia pendurado por um arame, como se fosse uma guirlanda.
Uma semana antes, a Polícia Militar havia esvaziado quatro casas geminadas da rua Helvétia, além do sobrado 118 da Dino Bueno, cujos fundos se interligavam através de buracos abertos em paredes e muros. Conhecido como “o buraco”, aquele labirinto improvisado chegou a abrigar quatro centenas de usuários de crack. Volta e meia a Prefeitura levantava vedações de cimento destinadas a impedir o acesso dos “noias” (corruptela de “paranoias”) às entranhas das casas abandonadas. Mas, tal qual toupeiras, eles sempre conseguiam se esgueirar de volta para dentro do “buraco”.
Ali, entre o entulho espalhado pelos cômodos, baratas cascudas caminhavam sob a fuligem gerada por paredes queimadas. A chuva do fim das tardes de janeiro tinha passagem livre, pois o que restou dos tetos das casas era permeável. A água se misturou ao bolor, lodo, mofo, ferrugem, teias e chorume gosmento brotando do entulho. O cheiro de detrito e putrefação era de fazer arder as narinas.
Antes da intervenção, a população flutuante diária do lado de fora das casas chegou a 2 mil pessoas, entre usuários e traficantes de drogas. Até mesmo a linha de ônibus 719P-10 (Metrô Armênia/Pinheiros), que passava por esse trecho da Helvétia, teve de ser desviada por falta de espaço para a circulação de coletivos e carros entre tantos zumbis.
ampos Elíseos foi o primeiro bairro projetado de São Paulo. Ele surgiu no final do século XIX com o loteamento da vasta área até então pertencente ao visconde de Mauá. O que inicialmente eram chácaras de fazendeiros de café se transformou em casas inspiradas na arquitetura francesa, com ruas paralelas e perpendiculares. Tudo obra de um suíço, Frederico Glette, e um alemão, Victor Nothmann, que adquiriram esse naco de terras em 1878 e as planejaram como um Champs Elysées paulistano. A alameda Dino Bueno, batizada à época de alameda dos Andradas, foi justamente uma das primeiras ruas abertas no novo bairro.
O sobrado 118 da Dino Bueno teve outras encarnações desde sua construção como “casa de renda” e transformação em hotel. Foi adquirido por uma família de descendentes de alemães e italianos, os Hergett, que do negócio só guardam amargura. “Compramos a casa como investimento e a alugamos para um indivíduo que a transformou num cortiço. Com a morte desse senhor, o próprio filho abandonou o cortiço e o sobrado foi sendo ocupado pelos noias”, conta Maria Hergett, que, aos 80 anos, continua sendo proprietária do imóvel, agora reduzido a uma fachada. “Eu nunca mais fui lá, temos até medo de passar na frente”, acrescenta. A família é dona de vários outros imóveis na Dino Bueno e ruas adjacentes, mas há quarenta anos mora no bairro residencial de Perdizes.
Sentada na calçada em frente ao que restou do casarão dos Hergett, Joelita Alves dos Santos, 55 anos, três filhos e dois netos, reclama: “Por que tiraram a gente daí se era pra virar isso?” Ex-moradora do 118 nos tempos de cortiço do sobrado, ela não se conforma com o final da história que desalojou 66 famílias. “Era cortiço, mas era limpo, arrumado, ali só morava gente trabalhadeira.” Tinha até nome: Condomínio Alvorada. O senhorio, conhecido como “seu Peixoto”, cobrava 480 reais por um quarto com banheiro, e a vida ia bem. Após sua morte, o filho Edmar assumiu o cortiço e a Prefeitura começou a fazer inspeções no local, com exigências de habitabilidade.
Joelita morou no local até sua interdição pela Prefeitura, dois anos atrás. “Quando a Prefeitura fechou o cortiço”, relembra ela, “os moradores concordaram em sair, mas combinamos que íamos invadir de novo. Só que os noias já tinham ocupado as casas da rua de trás e acabaram chegando no 118 antes da gente.” Com uma carta de crédito de 56 mil reais que ganhou da Prefeitura a título de compensação, Joelita acabou comprando um apartamento a 500 metros dali. Mas sempre volta ao quarteirão detonado para conversar com os antigos vizinhos.
Nos últimos dias de janeiro, antes de as casas geminadas da rua Helvétia serem trituradas por escavadeiras, as mensagens ainda visíveis nas entranhas daquele submundo davam testemunho de vidas arruinadas. “Marcos, te amo”, proclamara alguém, em letras cor de laranja.
Os dizeres são quase todos mais monótonos do que desconexos. Poderiam ter sido rabiscados numa cela de prisão, num banheiro público, num caderno escolar: “Garota misteriosa, você é demais”; “Humildade em primeiro lugar”; “Só os loucos sobrevivem”. No entanto, estavam gravados em paredes sem portas, janelas sem paredes, colunas sem teto, lajes quase sem apoio, escadas que dão para lugar nenhum ou andares já sem escada.
Em dois dos prédios desossados pelos serviços de limpeza da Prefeitura, ficaram para trás, além das baratas, cinco Bíblias, um gato de pelúcia, uma bola de futebol azul e amarela, e um recado que algum dia teve urgência: “Isa, antes de machucar meu coração, se lembra que você mora nele. Não é difícil tirar você da cabeça e sim do coração”, assina Tiago na Zoio. “Vida loka” ficou gravado num azulejo amarelo que escapou de algum incêndio.
Algumas mensagens têm ótima caligrafia. “Poder te dizer que o que eu mais sonhava nessa vida aconteceu: foi te conhecer e agora que estamos juntos não quero nem pensar em te perder. Só quero saber se estar ao meu lado irá te fazer feliz. Eu só sei dizer que estou apaixonada e isso é tudo o que eu sempre quis. Amor, Thaty.” Apenas duas marcações faziam alusão à droga: uma folha de maconha desenhada e a frase “Não roubem nossa brisa”.
No interior dos casarões, ainda com cheiro pútrido, ratos zanzando e lixo a cobrir o chão, era possível imaginar uma rotina dos ocupantes. Antes da demolição, havia um pátio a céu aberto que dava acesso a vários cômodos numerados aleatoriamente: 33, 159, 15, 33, 55, 121. Nesse simulacro de vila informal os espaços se assemelhavam: não tinham porta nem janela e lonas faziam as vezes de teto. Numa parede, uma mensagem definitiva: “Alex, você é um canalha, mas é o homem que conquistou meu coração.”
nquanto os lixeiros retiravam a primeira camada de detritos com pás e carrinhos de mão, um garoto entrou numa das casas e começou a remexer o entulho com um cabo de vassoura quebrado. Vestia bermuda, casaco, tênis e boné pretos e trazia uma mochila nas costas. Não dizia o que procurava. Começou a bater em um dos muros capengas e conseguiu derrubar alguns tijolos. Mostrou-se irritado ao ser indagado se morava ali. “Quem morava nessa nojeira aí eram os noias. Eu sou de Itapevi!” Dois agentes da Polícia Militar surgiram para revistá-lo. Encontraram um cachimbo e o levaram embora.
Uma garota ainda nova, aparentando não ter mais de 20 anos, se aproximou da repórter. Tímida, perguntou se estávamos fazendo uma filmagem e ofereceu um conselho. “As mensagens na parede são pedidos de socorro. Se você prestar atenção, vai entender”, disse em tom de código, antes de sair dali acelerada. Um senhor que ouviu a conversa comentou: “Ela é noia, acabou de voltar da reabilitação, mas amanhã já vai estar aí de novo, toda suja.”
ito dias depois do início da operação de higienização social da Cracolândia, a quantidade de lixo já havia diminuído bastante e a Prefeitura fazia a zeladoria do lugar. Uma gari comentou que ainda precisariam de uns quarenta dias para concluir o trabalho. No final, foram 128,3 toneladas de roupas, móveis, brinquedos, sucata e lixo recolhidas. Quando o massivo já havia sido levado, sobressaíam os detalhes do que ficou daquelas vidas: isqueiros e carteiras de identidade.
Passados alguns dias, Maria das Graças Bernardino voltava a vender eletrodomésticos de segunda mão numa lojinha montada no lado ímpar da Dino Bueno, em frente ao extinto buraco dos noias. Ela conta que até recentemente trabalhava com um porrete na mão para se livrar dos usuários que ficavam agressivos quando ela não queria pagar pela sucata que lhe ofereciam. “Já vi matarem gente a paulada. Um dia passou um cara todo ensanguentado, mas enquanto eu ligava pro bombeiro, eles pegaram o rapaz de novo e terminaram de matar, assim, nas minhas costas”, relembra.
No dia 18 de janeiro, a polícia ainda fazia a vigilância do local e os usuários de crack se esgueiravam pelas adjacências quando o Diário Oficial da Cidade de São Paulo publicou o despacho do prefeito Gilberto Kassab. Determinava a demolição das casas que formavam o buraco – exceto a fachada da casa 118 da alameda Dino Bueno. Razão: apresentavam risco à saúde pública, de desabamento e à segurança da vizinhança. Na mesma semana a City Cracko e suas ramificações subterrâneas viraram pó. E antes que o mês de janeiro acabasse, máquinas-mamute cuidaram de fazer a “pavimentação asfáltica” do quadrilátero maldito. Essa foi a parte mais fácil da anunciada recuperação do Centro de São Paulo. Falta todo o resto.
21 de abril de 2012
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