De repente, lá dos fundos do quartel escuro e imundo, uma voz desesperada começou a gritar, urrar:
– Ai, meu São Gonçalo! Me salve, meu padroeiro! Eles vão me matar!
Tombos surdos, sons pesados como patadas de elefante em filmes, gargalhadas histéricas e palavrões ecoavam no silêncio úmido do quartel e não se ouvia mais a voz do devoto de São Gonçalo. Mas depois voltava, pastosa:
– Me salve, meu São Gonçalo! Eles estão me matando!
Novo tombo surdo, novas patadas, novas gargalhadas e palavrões, e caía outra vez sobre a madrugada o silêncio molhado do quartel. Para daí a pouco começar de novo. Até parar no amanhecer.
Da cela-porão, onde eu estava enfiado, em maio de 64, no infecto e multissecular quartel do Forte do Barbalho, em Salvador, dos tempos da invasão holandesa na Bahia, não dava para saber o que estava acontecendo.
Éramos mais de duzentos presos políticos no quartel: prefeitos, vereadores, professores, jornalistas, líderes sindicais e estudantis, amontoados em celas coletivas. E o deputado Mário Lima e eu confinados em dois fedorentos depósitos de tambores de gasolina, transformados em celas-solitárias. Todos dormindo no chão crispado do cimento secular.
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CAPITÃO ÁVILA
De onde viriam aqueles apelos a São Gonçalo? Não havia tortura aos presos políticos no quartel, em 64. Ninguém era tirado da cela para apanhar. Alguns, porque resistimos ao ser presos, levamos pancadas na rua, que logo pararam. Havia a bárbara nudez sobre o chão molhado de gasolina e óleo, havia o dormir sobre o cimento frio, esburacado de séculos.
Mas tortura não havia. De manhã, perguntei ao discreto e humano capitão-médico Cáliga, o que tinha acontecido. Ficou constrangido:
– Não faça perguntas, sobretudo ao comandante. Pode lhe ser pior.
Mas fiz. Tirado da cela-porão para depor no gabinete do comandante do quartel, capitão José Hermes Figueiredo Ávila, perguntei, ele ficou irado:
– Deputado, não se meta no que não é de sua conta. Podia ser com você.
Apurei depois. Um soldado saiu escondido para ir ao aniversário da mãe, em São Gonçalo, no interior. Buscaram-no e surraram a noite inteira.
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JACKSON FIGUEIREDO
A violência militar é estudada a milênios. No Brasil, Jackson de Figueiredo, líder católico que deixou uma bela herança de intelectuais comprometidos com as causas sociais, como Tristão de Athayde, escreveu:
– Na maioria absoluta dos casos, o que felizmente se dá é ser o nosso militar uma criatura honesta, cumpridora de deveres, com uma séria noção de honra e exaltado patriotismo. Uma coisa, porém, deve também ser dita: a vida de quartel, isolando-o, até certo ponto, nesse agitado meio social, que é o nosso, faz com que o militar seja, quase sempre, um simplista em matéria de política. (“Políticos e Militares”).
– Ai, meu São Gonçalo! Me salve, meu padroeiro! Eles vão me matar!
Tombos surdos, sons pesados como patadas de elefante em filmes, gargalhadas histéricas e palavrões ecoavam no silêncio úmido do quartel e não se ouvia mais a voz do devoto de São Gonçalo. Mas depois voltava, pastosa:
– Me salve, meu São Gonçalo! Eles estão me matando!
Novo tombo surdo, novas patadas, novas gargalhadas e palavrões, e caía outra vez sobre a madrugada o silêncio molhado do quartel. Para daí a pouco começar de novo. Até parar no amanhecer.
Da cela-porão, onde eu estava enfiado, em maio de 64, no infecto e multissecular quartel do Forte do Barbalho, em Salvador, dos tempos da invasão holandesa na Bahia, não dava para saber o que estava acontecendo.
Éramos mais de duzentos presos políticos no quartel: prefeitos, vereadores, professores, jornalistas, líderes sindicais e estudantis, amontoados em celas coletivas. E o deputado Mário Lima e eu confinados em dois fedorentos depósitos de tambores de gasolina, transformados em celas-solitárias. Todos dormindo no chão crispado do cimento secular.
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CAPITÃO ÁVILA
De onde viriam aqueles apelos a São Gonçalo? Não havia tortura aos presos políticos no quartel, em 64. Ninguém era tirado da cela para apanhar. Alguns, porque resistimos ao ser presos, levamos pancadas na rua, que logo pararam. Havia a bárbara nudez sobre o chão molhado de gasolina e óleo, havia o dormir sobre o cimento frio, esburacado de séculos.
Mas tortura não havia. De manhã, perguntei ao discreto e humano capitão-médico Cáliga, o que tinha acontecido. Ficou constrangido:
– Não faça perguntas, sobretudo ao comandante. Pode lhe ser pior.
Mas fiz. Tirado da cela-porão para depor no gabinete do comandante do quartel, capitão José Hermes Figueiredo Ávila, perguntei, ele ficou irado:
– Deputado, não se meta no que não é de sua conta. Podia ser com você.
Apurei depois. Um soldado saiu escondido para ir ao aniversário da mãe, em São Gonçalo, no interior. Buscaram-no e surraram a noite inteira.
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JACKSON FIGUEIREDO
A violência militar é estudada a milênios. No Brasil, Jackson de Figueiredo, líder católico que deixou uma bela herança de intelectuais comprometidos com as causas sociais, como Tristão de Athayde, escreveu:
– Na maioria absoluta dos casos, o que felizmente se dá é ser o nosso militar uma criatura honesta, cumpridora de deveres, com uma séria noção de honra e exaltado patriotismo. Uma coisa, porém, deve também ser dita: a vida de quartel, isolando-o, até certo ponto, nesse agitado meio social, que é o nosso, faz com que o militar seja, quase sempre, um simplista em matéria de política. (“Políticos e Militares”).
08 de abril de 2012
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