2 de outubro de 1968. A pouco mais de dois meses da edição do Ato Institucional número 5, a Rua Maria Antônia, no centro de São Paulo, ardeu. A briga envolveu 3 mil estudantes da Universidade Mackenzie, ninho do Comando de Caça aos Comunistas, e 2,5 mil da Faculdade de Filosofia da USP, onde estava abrigada a sede da proscrita União Estadual do Estudantes. Começou quando alunos do Mackenzie atiraram ovos contra os colegas da USP que pediam dinheiro para atos de resistência à ditadura militar. Só terminou dois dias depois com um saldo trágico: a morte do secundarista José Guimarães.
Um jovem chamado José Dirceu, presidente da UEE na ilegalidade, liderava os estudantes do prédio da Filosofia. "As violências da direita serão respondidas com a violência do povo e dos estudantes", bradava, organizando os colegas para o confronto.
Na segunda tarde do confronto, um tiro de grosso calibre transfixou o crânio de José Guimarães. Foi a senha para que a briga se transformasse numa das maiores manifestações de protesto da história. Cerca de 800 alunos da Filosofia saíram em passeata pelo centro de São Paulo. Ao final, eram cerca de 4 mil. Pelo menos quatro veículos foram incendiados. Para animar os colegas, José Dirceu desfraldou a camisa ensanguentada de José Guimarães como bandeira do movimento.
Sábado, 9 de junho de 2012. Diante de uma platéia composta por estudantes da União da Juventude Socialista, o mesmo José Dirceu, reencarnando o líder estudantil de 44 anos atrás, conclamou o povo e os estudantes a voltarem às ruas para algo bem menos nobre: pressionar o STF por sua absolvição no julgamento do Mensalão. A verve era a mesma de quase cinco décadas. A causa, no entanto, nem de longe lembrava a dos tempos distantes que precederam o AI-5.
Entre o líder estudantil José Dirceu e o "chefe de quadrilha" dos mensaleiros, como descrito pelo Procurador-Geral da República, há um hiato importante na história. O primeiro se insurgia contra o recrudescimento da censura, a restrição das liberdades individuais, as provocações da direita raivosa -- e lutava feito um leão pela reinstitucionalização do País.
O segundo, imbui-se apenas dele mesmo -- de seus feitos ao tempo em que governava o País e articulava a pornográfica aliança do governo petista com o pior do rebotalho congressual. Agora, luta avidamente contra as Instituições brasileiras.
Com a mesma retórica de antes, embora sem a mesma motivação, Dirceu pode provocar um efeito semelhante à conflagração dos estudantes de 68 durante os dias de julgamento do Mensalão. Caso a UJS, a UNE e outras entidades do neopeleguismo estudantil sigam suas palavras de ordem, é bem provável que a Praça dos Três Poderes se transforme numa espécie de Rua Maria Antônia em agosto próximo.
Pode-se bem imaginar o que uma conclamação dessa natureza produzirá como efeito na militância paga e até entre a massa de manobra crédula que ainda se dispõe a confundir um processo criminal com processo político. A falácia, que vem sendo alimentada pela malha de blogs pagos pelo governo, ainda encontra seguidores. Não se sabe ainda se eles são capazes de atirar pedras ou se ficarão adstritos aos twitaços e flashmobs.
Os espaços amplos da Esplanada dos Ministérios criaram em Brasília uma tradição de enfrentamento entre jovens abduzidos por movimentos políticos -- legítimos, diga-se -- e a polícia. Foi assim em novembro de 87, quando uma multidão fora de controle confrontou a tropa de choque num movimento espontâneo que ficou conhecido como "Badernaço" contra o Plano Real. Sobraram bombas de efeito moral e tiros de bala de borracha para todos os lados.
Em algumas dessas oportunidades, a onda de protesto foi deflagrada por adolescentes sem causa como os que integravam grupos de punks, por exemplo. A confrontação não passou de uma afronta clara, meio inconsequente, meio lúdica, mas absolutamente sem nenhuma consequência para a História e para a institucionalidade.
Foram batalhas campais sem sentido que não produziram legado. Muito diferente da briga da Maria Antônia contra a ditadura e das manifestações pacíficas dos caras-pintadas, que lograram criar a condição política necessária para a deposição de Fernando Collor de Mello.
O importante, aqui, não é discutir a qualidade ou a legitimidade dessas manifestações. É notar que elas ocorrem, com ou sem uma motivação nobre, com ou sem um ânimo político justificável. Basta que sejam convocadas, como faz agora, na condição de réu, o ex-militante José Dirceu. E o fez para dar seguimento a um processo que já se iniciou há alguns meses, que tem como objetivo criar todo tipo de constrangimento para o Supremo Tribunal Federal. Esta é apenas mais uma etapa da estratégia que começou pela tentativa de desmoralizar o Procurador-Geral da República, o ministro Gilmar Mendes e comprometer o tribunal constitucional que, já é possível antever, tem todos os elementos para enviar José Dirceu e seus 40 comparsas para uma boa temporada na cadeia.
A estratégia, até o momento, tem se revelado desastrosa. Desde que foi deflagrada, teve o condão de levar o STF a definir uma data para o julgamento; acirrou os brios de antigos desafetos da Corte e uniu-os diante das investidas atrevidas de Lula; expôs a avidez com que os réus tentam se apropriar das condicionantes políticas do processo; e irritou profundamente até os julgadores mais garantistas, que tendiam a votar pela absolvição.
Resta saber em que medida o José Dirceu da Rua Maria Antônia conseguirá insuflar a militância em favor do José Dirceu do Mensalão. Ou quanta gente ainda se disporia a enfrentar a polícia e jogar pedras na fachada do Supremo por uma causa tão ruim. Sobretudo porque lhe falta uma camisa manchada de sangue, falta um José Guimarães, um mártir entre os que, depois de duelos históricos pelo soerguimento da democracia há quase cinquenta anos, decidiram agora cavar trincheiras contra a aplicação do Código Penal.
11 de junho de 2012
Fábio Pannunzio
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