A coisa complicou-se um pouco. Agora consta nos autos: a dinheirama
bem guardada no paraíso fiscal de Jersey, no Canal da Mancha, está mesmo
relacionada a Paulo Maluf. Pelo menos foi isso que reconheceram os advogados da
offshore Durant, que tinha Flávio Maluf como diretor, no processo que corre em
Jersey - no qual a Prefeitura de São Paulo tenta recuperar US$ 22 milhões que
teriam sido desviados de seus caixas quando Maluf foi prefeito da cidade. Os
advogados admitiram que a família Maluf controlava contas na ilha britânica e
que o próprio ex-prefeito recebeu "comissões" nessas contas.
Com essa notícia, que foi publicada por este jornal há uma semana, em
reportagem de Jamil Chade (Defesa admite dinheiro de Maluf em ilha, 19/7, A6), o
lado obscuro de Maluf retornou às manchetes. Não que a defesa da Durant tenha
confessado a prática de algum ilícito: ela reconheceu os fundos, mas fala em
pagamentos por "negócios legítimos" - como uma comissão recebida pelo
ex-prefeito pela intermediação de venda de empresas. O que aumenta as suspeitas
não é - ainda - a corrupção comprovada, mas a incongruência entre as alegações
disparatadas. Se os dólares no Canal da Mancha têm origem limpa, por que nunca
foram reconhecidos pelos titulares? O que eles querem esconder?
Maluf sempre negou a existência da fortuna em Jersey. Com aquela
entonação de voz que faz a delícia dos imitadores de rádio, ele repetiu e
repetiu: "Eze diiêro dao é beu!" - ao que o humorista José Simão costumava
responder: "Não é dele mesmo, é nosso!". Agora, depois da reportagem de Jamil
Chade, o bordão caiu por terra e, naturalmente, o interesse jornalístico pelo
caso recrudesceu. O que levou os advogados a protocolar em Jersey uma nova
versão para o tesouro mal explicado?
A coisa complicou-se, de fato. Quanto a Maluf, apenas sorri, como se a
coisa complicada não fosse com ele - e, suprema esperteza, talvez não seja mesmo
com ele. A sua imagem pública vai descambando, em desmoronamentos sucessivos,
esboroando o que já parecia suficientemente esboroado, mas ele mesmo, em pessoa,
trafega, folgazão, para lá e para cá, em renovada lua de mel com a política.
Nada perturba o bom humor zombeteiro do seu trololó em barítono rachado. Ele se
diverte, ou, mais exatamente, se diverte-se à custa de outro. Guardou para si o
lado cômico desse enredo farsesco e, num golpe maligno, terceirizou a tragédia
de sua imagem pública. Ele a terceirizou para o PT. Ao firmar seu apoio aos
petistas nas eleições municipais, deu um jeito de empurrar-lhes o ônus moral da
sua conduta pregressa. A tragédia moral de Maluf virou um problema do PT.
Quanto ao PT, evita o assunto, como se algo o inibisse. Está
intimidado, mas não deveria estar. Para começar, não se deveria envergonhar de
se aliar ao PP (o partido de Paulo Maluf), que já integra a base aliada do
governo federal. Elementar: reeditar, no âmbito municipal, a aliança que já
existe no âmbito federal não constitui um erro político. O problema - o golpe
maligno - foi que, em São Paulo, o pacto PP-PT se deixou coroar por uma cena de
mau gosto, e foi dessa cena que nasceu o atual constrangimento petista.
Na hora de anunciar a aliança, Maluf conseguiu atrair Lula e seu
candidato a prefeito, Fernando Haddad, para uma sessão de fotos nos jardins da
sua casa. O ritual era uma armadilha. Por meio dela, o anfitrião transformou o
que deveria ser um acordo formal entre dois partidos numa cerimônia de
congraçamento. Nas imagens, o ex-prefeito acusado de desvios na Prefeitura e
procurado pela polícia internacional faz afagos em seus visitantes, num clima
que sugere compadrio e cumplicidade.
Ora, esse clima não traduz - ou não deveria traduzir - as reais
relações políticas entre as forças ali representadas. Portanto, o PT poderia
muito bem denunciar como falsas as impressões deixadas por aquelas imagens,
assim como deve reafirmar suas críticas ao malufismo.
Se antes das novidades de Jersey as lideranças petistas achavam que
tinham espaço para silenciar, agora não têm mais tempo. Ou vão a público expor
sua oposição radical ao modo malufista de governar, ou a coisa, que já se
complicou, vai piorar.
Maluf desfila como quem foi anistiado por Lula. Se o PT não quer
anistiá-lo, deve declarar com todas as letras que sua aliança é com o PP, não
com a conduta pessoal do ex-prefeito. Deve dizer isso com gestos e palavras
fortes, em pronunciamentos oficiais e reiterados. Neste momento, o silêncio
corre o risco de fazer coro com o cinismo. Ou, pior, com o deboche.
O deboche, vale registrar, tem sido o gênero discursivo predileto de
Maluf. Pouco depois de posar para os retratistas em sua casa, Maluf concedeu
entrevista a Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, em que exibiu o seu talento
para a velhacaria: "Eu, perto do Lula, sou comunista". Sim, sabemos que o
próprio Lula já se definiu como "metamorfose ambulante", recusando ser um
político "de esquerda". Mesmo assim, Maluf extrapola e zomba dos aliados de seu
partido: "Da maneira que exerceu a Presidência, eu diria que ele (Lula) está à
minha direita".
Brincadeiras à parte, a situação é mais delicada do que uma gincana
escolar para saber se Lula é "de esquerda" ou não é. Se este é metamorfose,
Maluf é ideologicamente líquido e já foi com quase todos: apoiou Fernando
Henrique Cardoso em 1998, Lula em 2002 e hoje defende a reeleição de Geraldo
Alckmin no governo paulista. O que está em jogo, agora, não são os rótulos de
"direita" ou "esquerda", mas a seriedade com que o PT trata um processo judicial
em que a Prefeitura paulistana é parte.
O eleitor talvez esteja perplexo. Por isso, sem abrir mão da aliança
com o PP, o PT faria bem se exigisse publicamente esclarecimentos de Paulo
Maluf. Isso tudo, claro, se tivermos uma interpretação otimista dessa história
chata.
O Estado de S. Paulo (SP)
Eugênio Bucci
29 de julho de 2012
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