"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 29 de julho de 2012

"JOSÉ DIRCEU FAZ POSE DE SUB-DELÚBIO"

Por Josias de Souza



Defesa de Dirceu transforma um líder nato num sub-Delúbio
A defesa de José Dirceu distribuiu aos repórteres ao longo da semana que antecede o julgamento da ação penal do mensalão um resumo das alegações do principal réu do processo. Mais do que defender o ex-chefe da Casa Civil de Lula das acusações da Procuradoria-Geral da República, o documento reescreve-lhe a biografia. Na peça, Dirceu é retratado como um figurante, um antilíder.
Afirma-se no texto que o mensalão não existiu. O que houve foi caixa dois eleitoral. “A defesa de José Dirceu, entregue ao Supremo, desmonta ponto a ponto as acusações feitas há sete anos”, anota o texto. “Os advogados mostram que nunca houve o chamado mensalão. O que de fato existiu foi a prática de caixa dois para cumprimento de acordo eleitoral…”

Com esse argumento, a defesa de Dirceu como imprime ao escândalo a (i)lógica do catecismo do PT. Nessa doutrina, o partido não fez nada além do que todo mundo faz. Do ponto de vista jurídico, a tese também tem grande serventia: além de jamais ter levado um culpado à cadeia no Brasil, o crime de caixa dois já prescreveu.

O documento evita referir-se à perversão como crime. Chama-a pelo apelido edulcorado de “conduta irregular”. Nada a ver com José Dirceu. A “irregularidade” foi “prontamente assumida por Delúbio Soares…” Em defesa do réu, os advogados sustentam que Dirceu não interferiu nem mesmo na nomeação de indicados dos partidos aliados para cargos no governo ao qual servia como principal ministro.

Tomando-se como verdadeiras as alegações expostas na peça da defesa, a alma de Dirceu foi virada do avesso por uma insuspeitada revolução interior. No movimento estudantil, Dirceu era tratado pela rapaziada como líder. Inflamava e virava assembléias com seus discursos.

No PT, Dirceu liderou um grupo cuja hegemonia era insinuada no nome: Campo Majoritário. Presidente da legenda, prevalecia nas deliberações internas impondo às correntes mais radicais da legenda uma maioria que roçava o patamar de 70% dos votos.

Nas campanhas de Lula, Dirceu era o coordenador. Pavimentou o caminhou que levou ao triunfo de 2002 ao impor ao PT a política de alianças. Uma política que empurrou o partido do socialismo dogmático para uma coligação que incluiu a centro-direita.

Guindado ao Planalto, Dirceu foi pendurado nas manchetes como uma espécie de primeir-ministro de fato. Um equívoco, informam os advogados. Foi nessa época, janeiro de 2003, que o líder desapareceu. Dirceu tornou-se um coadjuvante.

Autor da denúncia que resultou na abertura ação penal que o STF prepara-se para julgar, o ex-procurador-geral da República Antonio Fernando de Sousa qualificou Dirceu de “chefe da quadrilha” do mensalão. Afora o crime de formação de quadrilha, acusou-o de corrupção ativa e peculato. Sucessor de Antonio Fernando, o atual chefe do Ministério Público Federal, Roberto Gurgel, repisou a qualificação nas alegações finais que anexou ao processo.

Escreveu: “As provas coligidas no curso do inquérito e da instrução criminal comprovaram, sem sombra de dúvida, que José Dirceu agiu sempre no comando das ações dos demais integrantes dos núcleos político e operacional do grupo criminoso. Era, enfim, o chefe da quadrilha.”

Nos autos do mensalão, Dirceu frequenta o capítulo em que a Procuradoria esquadrinhou a ação do “nucleo político” do bando. Coabita esse grupo com Delúbio Soares, ex-tesoureiro das arcas petistas, e José Genoino, que respondia pela presidência do PT na época em que explodiu o escândalo, em 2005.

Escorada nas conclusões da Polícia Federal de Lula, a Procuradoria sustenta na acusação que Dirceu tinha na Casa Civil a missão compor a base de apoio congressual ao governo Lula. Queira por em pé um projeto de poder longevo para o PT. Foi quando decidiu, segundo Antonio Fernando e Roberto Gurgel, “subornar parlamentares federais.”

A Procuradoria afirma, em timbre categórico, que Dirceu “estava no comando das ações” da quadrilha. Delúbio e Genoino reportavam-se a ele, seguindo as orientações do “líder do grupo.” Diz a denúncia que, juntos, os réus do núcleo político da quadrilha “estabeleceram um engenhoso esquema de desvio de recursos de órgãos públicos e de empresas estatais, e de concessões de benefícios diretos ou indiretos a particulares em troca de ajuda financeira.”

Tudo isso com “o objetivo era negociar apoio político ao governo no Congresso Nacional, pagar dívidas pretéritas, custear ganhos de campanha e outras despesas do PT”. Ou seja, o esquema ia muito além do mero caixa dois eleitoral.

A denúncia da Procuradoria rende homenagens à biografia de Dirceu, um líder nato, protagonista desde a primeira mamada. Mas torna a existência humana monótona ao ignorar a metamorfose insinuada nas páginas da defesa. O Dirceu pintado pelos advogados é um intrigante personagem. Desafia os estudos antropológicos.

Esse Dirceu da defesa, autoconvertido em pobre-diabo, passou pela Casa Civil da Presidência como ator irreconhecível. É como se, nesse período, o ex-líder tivesse assumido, voluntária e gostosamente, um papel de sub-Delúbio, fazendo da quadrilha do mensalão uma fábula acéfala, uma máfia sem capo. A denúncia da Procuradoria tem mais lógica. Mas a defesa do ex-Dirceu é bem mais engraçada.

UOL
29 de julho de 2012
ucho.info

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