Analistas apontam que o esquema teve peso fundamental para a política
brasileira
Um escândalo político generalizado, obra coletiva de dirigentes de um partido
que se declarava arauto da moralidade, e gerador de uma forte reação das
instituições, como a Procuradoria-Geral da República e o Supremo Tribunal
Federal (STF), que o Poder Executivo não pode brecar.
Para pesquisadores entrevistados pelo Estado, o mensalão significou um rompimento com o tipo de corrupção que tradicionalmente marcou a política brasileira. A ação individual dos corruptos, para fins pessoais, foi sobrepujada pelo uso político-partidário do dinheiro sujo, avaliam.
"Há (tradicionalmente) casos individuais de corrupção. Agora, com um partido que está no governo foi um fato único. Não estou dizendo que outros partidos não tenham seus esquemas. Mas o caso do mensalão tem como característica que as denúncias envolvem um partido. Foi feito de forma sistemática."
A pesquisadora avalia que foi novidade, no escândalo, o uso sistemático do sistema bancário. "Não foi só dinheiro na cueca", ressalta, em alusão ao caso do assessor petista preso pela Polícia Federal em 2005 com US$ 100 mil escondidos na roupa e levando outros R$ 200 mil. Para Maria Celina, a corrupção apontada no escândalo não tem a ver só com a sociedade brasileira, mas com o estágio das sociedades em geral, com o que chamou de "avanço dos procedimentos democráticos".
Coisa genética. "Enfim, não é uma coisa genética do Brasil. Tem a ver com características institucionais da sociedade", afirma Maria Celina. "Claro que a cultura importa. Mas, como cientista política, acho que as instituições fazem a diferença. Com boas instituições, a gente vai diminuir a corrupção. Se a gente tiver um Judiciário funcionando direito, essas coisas não vão acontecer. Agora, com um Judiciário que leva dez anos para começar a julgar um negócio... É complicado, né?"
A capacidade de reação da sociedade é o centro da argumentação do também cientista político Luiz Werneck Vianna. "Da forma como foi, (a reação) foi nova", diz. "Preste atenção: o poder político foi atingido. E o poder político não teve força para obrigar as instituições a lhe servir, nem, de outro lado, de paralisar a sociedade. A sociedade não está mobilizada em defesa dos réus.
O poder político assistiu a esse processo sem condições de intervir. Isso quer dizer o seguinte: as instituições deram uma demonstração de força muito grande. Acho que a República saiu fortalecida, independentemente do resultado da sentença. O fato de que próceres políticos do governo e do partido hegemônico tenham sofrido um processo, e ele tenha transcorrido segundo todos os procedimentos previstos pela democracia política, esse é o grande resultado."
Advertindo que a existência do mensalão "nunca chegou" a ser provada, o historiador Daniel Aarão Reis Filho, da Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca que "o PT envolveu-se em grossa corrupção, que merece investigação, apuração e, quando for o caso, condenações". Ele lembra que, apesar do que considera falta de provas sobre o caso, "o nome (lançado por Jefferson) pegou e se tornou uma arma política de combate ao governo Lula e ao PT".
O pesquisador resiste, porém, a considerar o caso o maior do tipo na história do País ou da República. "A tradição de corrupção na história do Brasil é densa e antiga", afirma. "Digamos que o escândalo é um dos mais importantes, pelos personagens envolvidos, pelo montante dos recursos e pela promiscuidade entre o público e o privado."
Aarão Reis acha que é possível traçar paralelos com outros escândalos envolvendo corrupção, como a crise que levou o presidente Getúlio Vargas, em 1954, a se matar, ou o caso PC Farias, que provocou o impeachment do presidente Fernando Collor em 1992. "Mas é preciso não esquecer a corrupção disseminada na época da ditadura, que nem sequer era mencionada, muito menos apurada e investigada."
O historiador discorda da ideia de que nunca houve tanta corrupção no Brasil como agora. "A questão é que ‘nunca antes neste País’ se investigou e se apurou como agora. O que evidencia um amadurecimento democrático da sociedade, que resiste cada vez mais à corrupção, e também o aperfeiçoamento das instituições – menção especial à Procuradoria-Geral da República, bastante fortalecida pela Constituição de 1988, e também à Polícia Federal. É preciso que as pessoas saibam que é graças à democracia que os escândalos estão sendo investigados. Ou seja, a democracia não é a causa dos escândalos."
Em sentido diverso, outro pesquisador da história brasileira, José Murilo de Carvalho, autor, entre outros, de Os bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não foi –, avalia que o mensalão foi um caso de gravidade extrema e inédita. "Pelo número e importância das pessoas envolvidas, pela instância máxima do julgamento (STF) e pela grande cobertura da imprensa, pode-se dizer que se trata da mais importante denúncia de irregularidade da história da República", afirma.
Na monarquia. Ele avalia ser impossível fazer um paralelo com casos ocorridos no Império e mesmo na República Velha. "Havia na época (da monarquia) menos gente para roubar, menos coisas a serem roubadas e um chefe de Estado com um lápis vermelho na mão para fiscalizar políticos e funcionários. Na Primeira República, também as malfeitorias eram menos comuns e mais contidas", explica o pesquisador.
José Murilo pondera que, com o crescimento do Estado, cresceram o número e a diversidade de políticos e as oportunidades de corrupção. "A essas mudanças, digamos, estruturais, em parte devidas ao próprio avanço da democracia, acrescentou-se, como fator precipitador, a impunidade dos governantes durante o período militar, quando se formou boa parte da elite política atual", diz ele. "A restauração da legalidade trouxe avanços na democracia social, mas não nas práticas republicanas do bom governo. E a combinação de mais oportunidades para malfazer, de um lado, e liberdade de imprensa, um Ministério Público e uma Polícia Federal mais atuantes, de outro, aumentaram a visibilidade da corrupção."
O pesquisador afirma ainda que mudanças da postura de partidos que trocam a oposição pelo poder – como ocorreu com o PT – são fenômeno conhecido. "No Império, dizia-se que nada era mais parecido com um saquarema, um conservador, do que um luzia, um liberal, no poder, e vice-versa. O poder é um vício, seu uso gera vontade de mais poder, sobretudo entre nós, onde é cada vez mais um negócio", acrescenta.
Entre as causas do mensalão, ele aponta a tradição patrimonialista (de apropriação privada do público) do Estado brasileiro, a necessidade de formar grandes coalizões políticas e "a escandalosa impunidade da turma do andar de cima", o que torna o crime compensador. "Daí a importância do julgamento que está para começar. Por seu resultado se saberá se tinha ou não razão o mensaleiro que profetizou a transformação do episódio em ‘piada de salão’."
Autor de Corrupção, mostra a sua cara, a ser lançado dia 2, o historiador Marco Morel, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), diz ser "fanfarronice" apontar o mensalão como maior escândalo da história brasileira. "Até porque tem muita corrupção que a gente nunca vai conhecer", ressalta.
Wilson Tosta, de O Estado de S.Paulo
29 de julho de 2012
Para pesquisadores entrevistados pelo Estado, o mensalão significou um rompimento com o tipo de corrupção que tradicionalmente marcou a política brasileira. A ação individual dos corruptos, para fins pessoais, foi sobrepujada pelo uso político-partidário do dinheiro sujo, avaliam.
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"Acho que não tem nada parecido na história do Brasil", diz a cientista
política e historiadora Maria Celina d’Araújo, da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). "Há (tradicionalmente) casos individuais de corrupção. Agora, com um partido que está no governo foi um fato único. Não estou dizendo que outros partidos não tenham seus esquemas. Mas o caso do mensalão tem como característica que as denúncias envolvem um partido. Foi feito de forma sistemática."
A pesquisadora avalia que foi novidade, no escândalo, o uso sistemático do sistema bancário. "Não foi só dinheiro na cueca", ressalta, em alusão ao caso do assessor petista preso pela Polícia Federal em 2005 com US$ 100 mil escondidos na roupa e levando outros R$ 200 mil. Para Maria Celina, a corrupção apontada no escândalo não tem a ver só com a sociedade brasileira, mas com o estágio das sociedades em geral, com o que chamou de "avanço dos procedimentos democráticos".
Coisa genética. "Enfim, não é uma coisa genética do Brasil. Tem a ver com características institucionais da sociedade", afirma Maria Celina. "Claro que a cultura importa. Mas, como cientista política, acho que as instituições fazem a diferença. Com boas instituições, a gente vai diminuir a corrupção. Se a gente tiver um Judiciário funcionando direito, essas coisas não vão acontecer. Agora, com um Judiciário que leva dez anos para começar a julgar um negócio... É complicado, né?"
A capacidade de reação da sociedade é o centro da argumentação do também cientista político Luiz Werneck Vianna. "Da forma como foi, (a reação) foi nova", diz. "Preste atenção: o poder político foi atingido. E o poder político não teve força para obrigar as instituições a lhe servir, nem, de outro lado, de paralisar a sociedade. A sociedade não está mobilizada em defesa dos réus.
O poder político assistiu a esse processo sem condições de intervir. Isso quer dizer o seguinte: as instituições deram uma demonstração de força muito grande. Acho que a República saiu fortalecida, independentemente do resultado da sentença. O fato de que próceres políticos do governo e do partido hegemônico tenham sofrido um processo, e ele tenha transcorrido segundo todos os procedimentos previstos pela democracia política, esse é o grande resultado."
Advertindo que a existência do mensalão "nunca chegou" a ser provada, o historiador Daniel Aarão Reis Filho, da Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca que "o PT envolveu-se em grossa corrupção, que merece investigação, apuração e, quando for o caso, condenações". Ele lembra que, apesar do que considera falta de provas sobre o caso, "o nome (lançado por Jefferson) pegou e se tornou uma arma política de combate ao governo Lula e ao PT".
O pesquisador resiste, porém, a considerar o caso o maior do tipo na história do País ou da República. "A tradição de corrupção na história do Brasil é densa e antiga", afirma. "Digamos que o escândalo é um dos mais importantes, pelos personagens envolvidos, pelo montante dos recursos e pela promiscuidade entre o público e o privado."
Aarão Reis acha que é possível traçar paralelos com outros escândalos envolvendo corrupção, como a crise que levou o presidente Getúlio Vargas, em 1954, a se matar, ou o caso PC Farias, que provocou o impeachment do presidente Fernando Collor em 1992. "Mas é preciso não esquecer a corrupção disseminada na época da ditadura, que nem sequer era mencionada, muito menos apurada e investigada."
O historiador discorda da ideia de que nunca houve tanta corrupção no Brasil como agora. "A questão é que ‘nunca antes neste País’ se investigou e se apurou como agora. O que evidencia um amadurecimento democrático da sociedade, que resiste cada vez mais à corrupção, e também o aperfeiçoamento das instituições – menção especial à Procuradoria-Geral da República, bastante fortalecida pela Constituição de 1988, e também à Polícia Federal. É preciso que as pessoas saibam que é graças à democracia que os escândalos estão sendo investigados. Ou seja, a democracia não é a causa dos escândalos."
Em sentido diverso, outro pesquisador da história brasileira, José Murilo de Carvalho, autor, entre outros, de Os bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não foi –, avalia que o mensalão foi um caso de gravidade extrema e inédita. "Pelo número e importância das pessoas envolvidas, pela instância máxima do julgamento (STF) e pela grande cobertura da imprensa, pode-se dizer que se trata da mais importante denúncia de irregularidade da história da República", afirma.
Na monarquia. Ele avalia ser impossível fazer um paralelo com casos ocorridos no Império e mesmo na República Velha. "Havia na época (da monarquia) menos gente para roubar, menos coisas a serem roubadas e um chefe de Estado com um lápis vermelho na mão para fiscalizar políticos e funcionários. Na Primeira República, também as malfeitorias eram menos comuns e mais contidas", explica o pesquisador.
José Murilo pondera que, com o crescimento do Estado, cresceram o número e a diversidade de políticos e as oportunidades de corrupção. "A essas mudanças, digamos, estruturais, em parte devidas ao próprio avanço da democracia, acrescentou-se, como fator precipitador, a impunidade dos governantes durante o período militar, quando se formou boa parte da elite política atual", diz ele. "A restauração da legalidade trouxe avanços na democracia social, mas não nas práticas republicanas do bom governo. E a combinação de mais oportunidades para malfazer, de um lado, e liberdade de imprensa, um Ministério Público e uma Polícia Federal mais atuantes, de outro, aumentaram a visibilidade da corrupção."
O pesquisador afirma ainda que mudanças da postura de partidos que trocam a oposição pelo poder – como ocorreu com o PT – são fenômeno conhecido. "No Império, dizia-se que nada era mais parecido com um saquarema, um conservador, do que um luzia, um liberal, no poder, e vice-versa. O poder é um vício, seu uso gera vontade de mais poder, sobretudo entre nós, onde é cada vez mais um negócio", acrescenta.
Entre as causas do mensalão, ele aponta a tradição patrimonialista (de apropriação privada do público) do Estado brasileiro, a necessidade de formar grandes coalizões políticas e "a escandalosa impunidade da turma do andar de cima", o que torna o crime compensador. "Daí a importância do julgamento que está para começar. Por seu resultado se saberá se tinha ou não razão o mensaleiro que profetizou a transformação do episódio em ‘piada de salão’."
Autor de Corrupção, mostra a sua cara, a ser lançado dia 2, o historiador Marco Morel, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), diz ser "fanfarronice" apontar o mensalão como maior escândalo da história brasileira. "Até porque tem muita corrupção que a gente nunca vai conhecer", ressalta.
Wilson Tosta, de O Estado de S.Paulo
29 de julho de 2012
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