Esses são alguns dos milhares de clichês melosos de um livro que será lançado agora no Brasil. Cinquenta tons de cinza é o primeiro volume da trilogia escrita pela inglesa Erika Leonard James, casada, mãe de dois adolescentes e ex-produtora de televisão.
A trilogia já vendeu no mundo 31 milhões de exemplares.
O romance conta o namoro entre Anastasia Steele, virgem aos 21 anos, e Christian Grey, um “megamagnata empresário enigmático”, “absurdamente gostoso”, com “lábios esculturais” (!), controlador e sádico. Anastasia, ou Ana para os íntimos, cai de quatro por Christian e não se acha lá grande coisa: “Sou desastrada, malvestida e não sou loura”.
Christian, com seus “olhos ardentes de um cinza líquido” e “cílios longuíssimos”, deixa Ana, que nunca beijou nem se masturbou, “como uma massa trêmula de hormônios femininos em fúria”.
Cinquenta tons tem sido badalado como pornô para mulheres, porque, para homens, é fraco. Fala sério. “A nível” de pornografia, o livro também é fraco para mulheres – talvez seja uma carochinha erótica para amadores. Só 10% de suas páginas são dedicadas a sexo. Os adjetivos e interjeições são ingênuos. Talvez por isso esteja claro hoje que a idade média das compradoras é baixa.
As mil e uma noites, que li aos nove anos de idade, é uma coleção de fábulas mais ousadas.
A escritora Anaïs Nin fez muito mais nos anos 40 pela ficção erótica feminina, ao escrever seus contos Delta de Vênus, por encomenda de um colecionador e a pedido de Henry Miller. Ganhava um dólar por página.
A protagonista de Cinquenta tons, Ana, uma Sabrina transformada em máquina improvável de orgasmos, enrubesce cinquenta vezes com o mala do Christian Grey. Ele tem 28 anos e se define assim para a moçoila: “Sou um homem muito rico e tenho hobbies caros e apaixonantes”. Oi???
Quando quer dar um efeito às palavras, fala esquisito: “Você. É. Muito. Gostosa.” “Eu. Quero. Você. Muito”. Se um homem falasse assim comigo, eu recomendaria uma fonoaudióloga.
Wow. Uau, repete Anastásia cinquenta vezes. Holy crap! Minha nossa!. Holy fuck! P.... m.....Oh my. Ai meu Deus.
O best-seller Cinquenta tons é um dos piores livros que li até o fim em minha vida. Forcei-me a ler as 514 páginas do original em inglês por quase três meses. Sempre tinha algo melhor a fazer.
Além de protagonistas tão inverossímeis quanto bobos, incomoda a mania com grifes, marcas e modelos. O Mercedes é esportivo CLK. O Audi é SUV preto. O par de tênis no original é Converse, e na tradução brasileira é All-Stars. Para combater a dor, Advil. A cueca é Ralph Loren. No cinema, será um show de merchandising.
Por que fui ler “Cinquenta tons”? Pelo frenesi. Vendeu muito na internet, em capítulos. Chamava-se Mestre do Universo. Era inspirado nos vampiros de Crepúsculo. A escritora usava o pseudônimo Snowqueen’s Icedragon. O sucesso na blogosfera acordou as editoras e Hollywood para o “fenômeno”. A autora passou a assinar E.L. James e por muito tempo não quis aparecer. Lendo o livro, dá para entender.
Para ajudar a divulgação no Brasil, alguns jornalistas receberam um par de algemas, uma máscara, uma gravata e um contrato entre dominador e submissa.
Comprei o livro pela Amazon em abril quando vi a autora falando na televisão. Simpatizei com E.L. James. Irônica, calorosa, gordinha, com óculos na ponta do nariz ao ler, ela parece aquela dona de casa londrina que vai ao pub com as amigas e ajuda os filhos no dever da escola – e não se leva a sério.
“Se tenho um quarto de tortura na minha casa? A casa não é grande o suficiente...Tenho um quarto com parede vermelha, mas é cheio de roupa para passar”, ri. “Revolucionária, eu? Nada disso. É só uma história de amor. E quando as pessoas se apaixonam, fazem sexo. Se é que me lembro”, ri de novo. Ela não gosta que leiam ao vivo passagens de seu livro: “Não, por favor, para. Não quero que meus filhos escutem. Até hoje fico com vergonha”.
Sua vida vai mudar com o dinheiro, Erika? “Quem sabe posso enfim ganhar uma nova cozinha”, diz, fazendo troça de si mesma e da entrevistadora. O outro sonho: “Ficar deitada numa praia ensolarada com um drinque na mão”.
Espantoso foi o debate sociológico na mídia: a exemplo de Anastasia, as mulheres de hoje querem ser dominadas e levar muita palmada com açoite? Fico estarrecida com a insistência em generalizar o desejo “das mulheres”.
Quando Michael Douglas se submeteu a todos os caprichos sádicos de Sharon Stone em Instinto Selvagem – como já aconteceu em muitos filmes e livros e na vida real de alguns amigos –, ninguém criou a teoria de que esta seria a verdadeira fantasia dos machos de hoje.
Cansados do poder, eles sonham em ser atados, vendados e consumidos por mulheres alfa como objetos de prazer. É isso? Não. Sim. Depende. Cada um é cada um. Cada uma é cada uma. Com todas as nossas contradições bem particulares.
01 de agosto de 2012
RUTH DE AQUINO é colunista de ÉPOCA
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