Comentei ano passado o ridículo parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), datado de 2010, que sugeriu que o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, não seja distribuído a escolas públicas, ou que isso seja feito com um alerta, sob a alegação de que é racista.
Conforme o parecer do CNE, o racismo estaria na abordagem da personagem Tia Nastácia e de animais como o urubu e o macaco. "Estes fazem menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano", diz a conselheira que redigiu o documento, Nilma Lino Gomes, professora da UFMG. Entre os trechos que justificariam a conclusão, o texto cita alguns em que Tia Nastácia é chamada de "negra". Outra diz: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão".
Esta mania vem de longe, desde os dias em que as esquerdas adotaram o politicamente correto, em verdade um eufemismo para o stalinismo na literatura e nas artes. O MEC liberou, em ato homologatório do mesmo ano, a presença da obra no programa, desde que os exemplares distribuídos fossem acompanhados de uma nota explicativa. A nota deveria discutir "a presença de estereótipos raciais na literatura" de Monteiro Lobato e oferecer a devida contextualização histórica.
Segundo a Folha de São Paulo, isso não pareceu suficiente para o Iara (Instituto de Advocacia Racial), do Rio, que impetrou mandado de segurança pedindo a reforma do ato homologatório do MEC.
O texto da ação diz: "Não há como se alegar liberdade de expressão quando a obra faz referências ao 'negro' com estereótipos fortemente carregados de elementos racistas. Não somos contra a circulação do livro. Mas entendemos que uma nota explicativa não basta", disse à Folha o advogado Humberto Adami, que representa o Iara.
Pois bem. Ontem à noite, o Supremo Tribunal Federal se reuniu, em audiência de conciliação, convocada pelo ministro Luiz Fux, para discutir a distribuição do livro às escolas públicas.
Se o CNE viu racismo na abordagem de Tia Nastácia, é porque não leu O Presidente Negro, onde Lobato reduz os negros a pó de mico. Para Miss Jane, personagem americana do romance, a América seria a privilegiada zona que havia atraído os elementos mais eugênicos das melhores raças européias. O Mayflower trouxera homens de uma têmpera superior que não hesitaram um segundo “entre abjurar das convicções e emigrar para o deserto”. As leis de imigração se tornam seletivas e as massas que procuravam a América, já em si boas, são peneiradas. A Europa é drenada de seus melhores elementos e no novo mundo resta a flor dos imigrantes.
Ocorre então o que Miss Jane chama de “o erro inicial”: entra no país, à força, o negro arrancado da África. O Sr. Ayrton observa que o mesmo erro foi cometido no Brasil, mas nossa solução foi admirável: em cem ou duzentos anos teria desaparecido o nosso negro em virtude de cruzamentos sucessivos com o branco.
Miss Jane não julga admirável tal solução, mas medíocre, pois estraga as duas raças ao fundi-las. Prefere que ambas se desenvolvam paralelas dentro do mesmo território, separadas por uma barreira de ódio, a mais profunda das profilaxias. Para ela, o ódio mantém as raças em estado de relativa pureza.
Ninguém perde por esperar. No dia em que os intelectuais do CNE lerem algo mais que a literatura infantil do taubateano, O Presidente Negro será alvo dos inquisidores. Mais dia menos dia, será censurada entre nós qualquer tradução de Martín Fierro. Pois o negro não fica bem na obra de Hernández. Retraduza-se também a Bíblia, onde no Cântico dos Cânticos Sulamita diz: "Eu sou negra, mas formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão". Vamos à Vulgata Latina, tradução da qual deriva a maior parte das traduções atuais. Lá está: nigra sum, sed formosa. A Vulgata, por sua vez, deriva da tradução dos Septuaginta - feita a partir do original hebraico - onde está, em grego: Melaina eimi kai kale.
Mesmo admitindo – para efeitos de raciocínio apenas – que a alusão foi racista, Caçadas de Pedrinho é um livro de ficção. No fundo, o que se pretende é censurar o direito de um escritor definir seus personagens como bem entende. Lobato, efetivamente, não via o negro com bons olhos, como se pode ver em O Presidente Negro. Ora, dirá um leitor mais benévolo, é apenas mais uma ficção. Pode ser.
Mas A Barca de Gleyre(Cia. Editora Nacional, 1944), que reúne a correspondência ativa de Lobato com o escritor mineiro Godofredo Rangel, entre 1903 e 1943, não é ficção. E lá está:
“Estive uns dia no Rio (…). Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível Rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. E vão apinhados como sardinhas e há um desastre por dia, metade não tem braço ou não tem perna, ou falta-lhes um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara. “Que foi ?” “Desastre na Central.” Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problema terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!…”
Mas seria pedir demais que os intelectuais do CNE lessem a correspondência do autor. Se os movimentos negros querem censurar Caçadas do Pedrinho, com mais razões devem censurar O Presidente Negro ou A Barca de Gleyre. Iara diz não ser contra a circulação do livro. Mas entende que uma nota explicativa não basta. Quer o quê então? Uma substituição de palavras? Seria uma mutilação do texto. Um anexo com um discurso explicativo? Seria ridículo.
O STF terminou sua reunião sem chegar a conclusão alguma. Transferiu a decisão para o próximo dia 25. Após a reunião, Cesar Callegari, secretário de educação básica do MEC, manteve a posição inicial do governo de combate à censura. "Nós somos completamente contrários a qualquer forma de censura, ainda mais um autor como Monteiro Lobato. Não vamos censurar Monteiro Lobato".
Ora, não há nenhuma solução além de duas. Ou se censura um clássico nacional... ou se deixa como está, única solução sensata. Esses ativistas do movimento negro, que vêem pêlos em ovos, que enfiem a viola no saco.
12 de setembro de 2012
janer cristaldo
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