Onze de setembro (III)
Há exatamente dois anos, 11 de setembro de 2010, eu inaugurei meu trabalho em VEJA.com. Data solene e triste, mas estou muito feliz com esta oportunidade. O tema da primeira coluna, obviamente, foi aquele 11 de setembro. A data foi sugestão de Eurípedes Alcântara, diretor de redação de VEJA (sim, chefe pode ter ótimas idéias). Quero ficar muitos anos neste emprego. E o ritual será republicar, a cada 11 de setembro, a coluna de inauguração. Leia ou releia.
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Eu fui atacado em 11 de setembro de 2001 pelos homicidas de Osama Bin Laden. E você também. Além de derrubar aquelas torres horrendas do World Trade Center, em Manhattan, e matar muita gente, a ideia era destruir uma babel de conceitos como tolerância, diversidade, dinamismo econômico, vulgaridade, promiscuidade e balbúrdia. Em suma, a nossa civilização, com seus altos e baixos.
No caso específico dos EUA, o cálculo estratégico de Bin Laden era testar a determinação do país, sua autoconfiança e coesão. O tranco foi da pesada, mas os pilares estão aí. Sete anos depois dos atentados praticados em nome da restauração de um califado, os americanos elegeram presidente um tal de Barack Hussein Obama. Hoje, a maioria dos americanos está desiludida com o seu presidente. Alguns incautos, é verdade, por causa do seu nome do meio.
Sim, a civilização tem seus idiotas. Não é que uma pesquisa revelou que 18% dos americanos acreditam que Obama seja muçulmano? País de direitistas ignorantes e conspiratórios. E não é que 1/3 dos democratas acreditavam, em pesquisa em 2007, que o maligno George W. Bush sabia de antemão dos atentados do 11 de setembro? País de esquerdistas ignorantes e conspiratórios. Juntando todas as pesquisas com resultados bizarros, a gente chega lá: a maioria dos americanos é idiota, mas a civilização aguenta o tranco.
Há duas semanas, a revista Time, publicada no país de Barack Hussein Obama e próspero em histerismos instantâneos, perguntou soturnamente na capa: “Is America Islamophobic?” Um influente idiota de direita, o radialista Rush Limbaugh, com humor chulo, respondeu que não pode haver islamofobia num país com um presidente muçulmano. Liberais estão histéricos com a resistência (que une idiotas e outros nem tanto) ao projeto de um centro islâmico (megamesquita, no histerismo da outra banda), a duas quadras do Ground Zero, o local onde estavam as torres destruídas em 11 de setembro de 2001.
Não compartilho nenhum dos histerismos. Meu histerismo é motivado por islamofascismo e não islamofobia. Queria ver na mídia americana mais destaque para a suposta adúltera iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani, com a sentença de apedrejamento apenas suspensa. Queria ver mais muçulmanos marcharem por Sakineh e não apenas para protestar contra o pastor americano Terry Jones, que acha religiosamente correto queimar o Corão e ganhou um picadeiro da mídia (nós) para sua palhaçada incendiária, que, felizmente, não foi consumada.
É chato, no “grand opening” desta coluna, citar outros colunistas. Mas o Thomas Friedman, do The New York Times tem razão. A controvérsia sobre a tal mesquita no Ground Zero é um sideshow. A questão-chave não é se as diferentes seitas muçulmanas podem viver harmonicamente com os americanos, mas se elas podem conviver entre elas. Houve ultraje nas bandas islâmicas com este pastor fundamentalista da Flórida, mas muçulmanos explodem mesquitas no Oriente Médio e, de fato, algumas páginas do Corão (e de livros sagrados de outras religiões) deveriam ser simbolicamente queimadas devido à sua brutalidade. Quem pratica islamofobia (e homofobia e “mulherfobia”) é o regime iraniano de Mahmoud Ahmadinejad e do aiatolá Khamenei.
A nossa civilização em terras norte-americanas trata seus muçulmanos com altos e baixos (muito mais altos). Existem espamos nativistas, arroubos de ignorância e alguns lances de violência. Mas os nipo-americanos sofreram mais depois do ataque a Pearl Harbor e sucessivas levas raciais, étnicas e religiosas levaram suas pancadas, foram submetidas a linchamentos e tiveram portas fechadas até as coisas se acomodarem no melting pot.
O imã Rauf, deste projeto islâmico no Ground Zero, parece que sabe como as coisas derretem neste país. Por esta razão, ele deveria ter tido um pouco mais de jogo de cintura, deveria ter sido menos ambíguo nas suas digressões sobre o Hamas (finalmente disse à rede CNN que o grupo pratica terrorismo) e parasse de falar bobagem que os EUA foram cúmplices dos atentados do 11 de setembro porque inventaram Osama bin Laden. Este megaterrorista é obra saudita. E vamos rezar (e apurar) para que os fundos deste projeto não venham destes bilionários sauditas que investem tanto em bancos ocidentais e na rede Fox, como em madrassas fundamentalistas.
O imã mexeu com as sensibilidades de vítimas dos atentados, mas não fez provocação ou se meteu a triunfalista com seu projeto. As vítimas merecem irrestrita solidariedade e conforto. Mas, a quantas quadras do Ground Zero seria apropriado construir o centro islâmico? O imã não deveria ter ido onde foi. No entanto, já foi e ele e nós precisamos tolerar as consequências. Este negócio de direito constitucional é coisa séria. Isto aqui não é banana republic. Basta ver que 2/3 dos americanos são contra o projeto, mas em geral eles estão dispostos a tolerá-lo. Está aí a lição do pai do liberalismo, John Locke. O que ele chamava de “toleration” não é o mesmo que aprovação. Nós, aqui na civilização, toleramos (aturamos) coisas que consideramos nada aceitáveis. Nao se trata de ser bonzinho. Há circunstâncias em que não temos condições de suprimir o que não toleramos ou a supressão vai resultar em um mal ainda maior.
O acordo religioso e político nos EUA teve alguns momentos negros (sic) como a guerra civil e aparecem pastores malucos como este Terry Jones ou sicofantas como Pat Robertson, mas funciona. O acordo vai incorporar os muçulmanos (aliás o processo aqui é bem mais suave do que na Europa) desde que eles aceitem as regras do jogo. E, voltando a Locke, significa acatar a separação Estado-Igreja (ou Mesquita).
O historiador Bernard Lewis escreveu que uma forma de moderação foi uma parte central do islamismo desde o começo. Os muçulmanos não eram comandados a amar os seus vizinhos, mas a aceitar a diversidade. Basta ver que o princípio criou um nível de tolerância entre os muçulmanos e coexistência entre muçulmanos e os outros que era desconhecida na Cristandade até o triunfo do secularismo. No entanto, no período moderno, uma versão mais radical e violenta do islamismo ganhou força. E grupos como Al Qaeda e o Taliban, que eram menores e marginais, ganharam uma posição mais poderosa e até dominante.
E hoje em dia, por circunstâncias complexas, mesmo em capitais da civilização ocidental, existem partidários destes princípios. Por isto mesmo, no nosso liberalismo, precisamos evitar a condescendência e manter a vigilância sobre algumas mesquitas (e também sobre algumas congregações alopradas, como a deste pastor da Flórida). Contra o fundamentalismo religioso não dá para marcar passo com um fundamentalismo liberal. Não somos todos idiotas na nossa civilização. Precisamos manter as outras torres de pé.
11 de setembro de 2012
Caio Blinder - Veja
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