Tempo de elogio; tempo de decepção. O elogio preza uma pessoa, uma política, mostrando o quanto ela, por exemplo, está em consonância com a justiça e o Estado de direito. A decepção, por seu lado, intervém quando aquilo que foi digno de elogio se torna objeto de frustação.
O ministro da AGU (Advocacia-Geral da União), Luís Inácio Adams, editou a Portaria 303, normatizando a aplicação do acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF), relativo ao julgamento do caso Raposa Serra do Sol. Tomou uma atitude corajosa para cumprir a lei. Não era -e não é- mais possível conviver com o conflito e com a ausência do Estado de direito.
O ministro, naquela ocasião, chegou a declarar que a portaria remediava um grave problema, o da insegurança jurídica. São palavras suas. Não hesitei, então, em apoiá-lo. Convém lembrar que já se passaram três longos anos desde que o Supremo julgou o caso da Raposa Serra do Sol, estabelecendo condicionantes que deveriam, doravante, reger todo processo de identificação e demarcação de terras indígenas. Décadas de conflito poderiam, enfim, ser equacionadas, de uma maneira justa para índios e não índios.
Equivoca-se quem pensa que se trata de um conflito entre os "indígenas" e o "agronegócio". A questão é muito mais complexa, por envolver milhares de agricultores familiares e pequenos produtores, além da própria infraestrutura brasileira. Estão em questão a construção de hidrelétricas, estradas e rodovias, de portos, além da exploração de minérios e a própria presença das Forças Armadas em todo o território nacional. É a soberania nacional que está em jogo.
Veio, agora, o tempo da decepção. O mesmo órgão que editou a portaria, seguindo as diretrizes do Supremo, depois suspende essa norma, considerada tão necessária. A justificativa é que a portaria será adiada até que o STF julgue os embargos de declaração opostos contra os termos da sua decisão. Discordo -tais embargos não têm efeito suspensivo, não impedem, portanto, a execução do decidido pelo Supremo.
E o fez sob a pressão. É literalmente estarrecedor observarmos Funai, ONGs indigenistas e movimentos sociais orientando a AGU, ditando que decisões do Supremo não sejam cumpridas. Observe-se que, quando da publicação do acórdão, o governo o acatou integralmente, o que significa dizer que acolheu as condicionantes, passando a aplicá-lo no Estado de Roraima. Não posso silenciar diante de tanta contradição e afronta ao Estado de direito.
Se a Funai pensa, por exemplo, que são necessárias mais terras para os indígenas pela ocorrência de explosão demográfica em certa região, nada mais fácil do que comprar terras e distribuí-las. O que, porém, não pode ocorrer é o desrespeito à lei, com uma verdadeira expropriação de produtores, detentores de títulos de propriedade que remontam a antes da Constituição de 1988.
Eis a situação atual da condição indígena no país. As reservas indígenas perfazem 106.739.926 hectares. A sua população é, segundo o IBGE, constituída de 517.383 indivíduos que vivem nessas reservas. Logo, temos uma média de 206,3 hectares per capita, ou seja, 2.060.000 metros quadrados para cada índio. Isso equivale a 215 campos de futebol para cada um.
Não discuto o mérito, se é pouca ou muita terra. Não discuto desejos, apenas legalidade. Um dos grandes feitos do governo da presidente Dilma reside na construção de um clima de entendimento e de negociação. Tenho me associado a ela nessas iniciativas que visam o bem-estar maior da nação. A superação de ideias preconcebidas tem sido a sua marca.
A suspensão da portaria 303 pela AGU segue na contramão dessa política, retrocedendo ao clima de conflito e de incerteza. A insegurança jurídica se generaliza e joga os brasileiros uns contra os outros, ao arrepio do Estado de direito. Pior ainda, contraria os interesses maiores do Brasil e da soberania nacional. O abuso está transpondo qualquer limite do tolerável.
27 de outubro de 2012
KÁTIA ABREU, 50, senadora (PSD/TO) e presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), escreve aos sábados na Folha de São Paulo.
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