(Comemora-se hoje o 120º aniversário do nascimento de Graciliano Ramos. Como nenhum jornal lembrará o passado stalinista do escritor, me permito reavivar a memória dos leitores.
Este artigo foi publicado na revista Travessia nº 6, do Curso de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina, em 1983).
Graciliano Ramos, escritor e militante do Partido, não escaparia ao novo dogma e um dia irá prestar culto ao deus vivo.
Já em São Bernardo, Graciliano lança o germe de uma idéia insólita na época, pelo menos no Brasil, o socialismo. Paulo Honório, o prepotente dono da terra, saído do nada, à custa de astúcia e mesmo crime, irá confrontar-se com as idéias novas de Padilha, o semi-bacharel de quem tomou a fazenda. Ao casar-se com Madalena, terá em seu leito uma inimiga. Madalena é urbanidade, cultura, civilização, por oposição à rude incultura de Paulo Honório. Há ainda padre Silvestre, que sem ser ateu e materialista, pretende salvar o país por processos violentos. Em 1934, com sua intuição, Graciliano já define as duas religiões européias, ciumentas, em luta pela América Latina.
“Padres! exclamou Luís Padilha com desprezo.
“Era ateu e transformista. Depois que eu o havia desembaraçado da fazenda, manifestava idéias sanguinárias e pregava, cochichando, o extermínio dos burgueses”.
Padre Silvestre, por sua vez, se opõe ferozmente às novas idéias:
“ - Essas doutrinas exóticas não se adaptam entre nós. O comunismo é a miséria, a desorganização da sociedade, a fome”.
Logo adiante:
“- Uma nação sem Deus! Bradava padre Silvestre a d. Glória. Fuzilaram os padres, não escapou um. E os soldados, bêbados, espatifavam os santos e dançavam em cima dos altares”.
Na época, não perceberam ainda, cristãos e marxistas, que pertencem a uma mesma religião, pequenas nuanças à parte. O que importa não são os dogmas de superfície de um sistema de pensamento, mas a corrente subterrânea que o nutre. Duas são as inovações básicas do cristianismo, por oposição ao paganismo greco-romano: a idéia de que todos os homens são iguais perante Deus (ridícula para gregos e romanos) e a de que a História tem um sentido, a Parusia. O marxismo - e aqui voltamos à intuição de Dostoievski em O Idiota - reafirma a igualdade de todos os homens, abstraindo o “perante Deus”, e também a idéia de que a História tem um sentido, só que desta vez não é mais a Parusia, mas o Estado Comunista.
A posição de Paulo Honório não é a de quem possa discutir ideais humanitários. Ao julgar Madalena materialista, conclui:
“A verdade é que não me preocupo muito com o outro mundo. Admito Deus, pagador celeste dos meus trabalhadores, mal remunerados cá na terra, e admito o diabo, futuro carrasco do ladrão que me furtou uma vaca de raça. Tenho portanto um pouco de religião, embora julgue que, em parte, ela é dispensável num homem. Mas mulher sem religião é horrível.”
“Comunista, materialista. Bonito casamento! Amizade com o Padilha, aquele imbecil. ‘Palestras amenas e variadas’. Que haveria nas palestras? Reformas sociais, ou coisa pior. Sei lá! Mulher sem religião é capaz de tudo”.
Logo adiante:
“Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena e comecei a sentir ciúmes”.
Paulo Honório fica quatro meses sem pagar o ordenado a Padilha, agora seu empregado. E ainda faz piada:
“- Tenha paciência. Logo você se desforra. Você é um apóstolo. Continue a escrever os contozinhos sobre o proletário”.
Quando Padilha chora, pedindo emprego no fisco, Paulo Honório é cru:
“- Impossível, Padilha. Espere o soviete. Você se colocará com facilidade na guarda vermelha. Quando isso acontecer, não se lembre de mim não, Padilha, seja camarada”.
Madalena provoca em Paulo um duplo ciúme. De um lado é a mulher que se lhe foge - e sua fuga se consumará no suicídio. Por outro lado, com suas idéias, Madalena lhe quer também tomar a condição de terratenente. Se Madalena morre, a idéia de revolução persiste. Paulo Honório, que a considerava parte de seu patrimônio, é um homem que fracassa.
Estamos, na ficção militante de Graciliano, face a um mundo em transformação. As vítimas são seres cultos e civilizados, Madalena e Padilha. O carrasco é o ser bárbaro, que inclusive admite sua bárbarie. As vítimas são socialistas, comunistas. Paulo Honório, o boçal, opõe-se às idéias novas professadas pelas vítimas. Qual partido resta ao leitor tomar?
Graciliano, como tantos outros, não menos ilustres, caiu na arapuca. É militante do partido desde 1945 e, em 1952 - duas décadas após as denúncias de Gide, oito anos após O Zero e o Infinito, de Koestler, e do debate de Albert Camus com d’Astier de la Vigerie - nosso escritor vai adorar o deus encarnado. Adoração não tão derramada, como a do apologético O Mundo da Paz, de Amado. Mas ainda adoração.
A primeira frase da carta enviada de Moscou, datada de 1º de maio de 1952, diz tudo e dispensaria mais comentários:
“Clarita, Luísa, Ricardo: cá estamos na Terra Santa”.
O seco Graciliano, de repente, vira místico desbordado. Em Moscou, encontrará Jorge Amado, já Prêmio Stalin. Tudo é festa e deslumbramento.
“Tenho bebido vodca, ido várias vezes ao Kremlin, à Praça Vermelha, visto a Catedral de São Basílio e o túmulo de Lênin. Ontem visitei a VOKS: doces, frutas, vinho, arranjo do programa, discurso do Presidente, um professor de cabeça pelada. À noite, Romeu e Julieta no teatro Bolshoi, com Ulanowa no papel de Julieta. Havia talvez mais de duzentas figuras. Nunca imaginei coisa semelhante. Hoje, a festa para que fomos convidados. O desfile começou às dez horas e deve ter-se prolongado até sete da noite. Deixamos o Kremlin às três horas. Víamos, de longe, com dificuldade, a cabeça de Stalin. Furor de aplausos na multidão”.
Graciliano apanha então binóculos para melhor ver seu deus:
“Subi à última plataforma exterior do Kremlin, fui andando para a esquerda, cheguei a poucos metros do túmulo de Lênin, no momento em que Stalin ia subindo a escada. Aproximei-o com o binóculo. Está velho, gordo e curvo. Nessa altura um tipo se avizinhou e quis tomar-me o binóculo. Fingi não entendê-lo. ‘Sou estrangeiro, não compreendo o russo’. Stalin passou. Recuei dez metros, quis examinar os figurões que estavam ali a pequena distância; outro guarda, falando e gesticulando, deu-me a entender que era proibido usar binóculos. Ignoro o motivo desta proibição”.
Antes de passarmos à entusiástica transcrição deste episódio em Viagem, cabe determo-nos alguns segundos em uma frase de sua carta:
“Enquanto as organizações operárias desfilavam, Kaluguin perguntou-me quais os meus livros que deveriam ser traduzidos em russo. Talvez nenhum, respondi. E expliquei minha divergência com o pessoal daí”.
As divergências de Graciliano se referem ao zdanovismo. O alagoano se recusava a submeter-se às normas do realismo socialista, tentação à qual não resistiu Amado. Importante sublinhar nesta frase de Graciliano a proposta da edição de livros.
Afirmar que a fortuna internacional de escritores como Graciliano e Amado deve-se mais às suas relações com o Partido do que a seus talentos é enunciar o óbvio. Mas trata-se de um óbvio sacrílego, pois implica afirmar que tais escritores utilizaram o partido como agência publicitária, ou que o Partido os utilizou como agentes publicitários.
De qualquer forma, fica claro na carta de Graciliano que as traduções são decorrência da viagem, e ninguém recebe mordomias gratuitamente. O sucesso de Amado na Europa, por exemplo, decorre de suas primeiras traduções em russo. Da URSS, Amado passa à extinta RDA, de onde Meyer-Clason, seu tradutor, o puxa para a Alemanha Ocidental. Só depois sua literatura chegará a Paris e demais países europeus. Em Viagem, Graciliano volta ao tema e concluí que seus livros em nada interessariam àqueles homens.
“São narrativas de um mundo morto, as minhas personagens comportam-se como duendes. Na sociedade nova ali patente, alegre, de confiança ilimitada em si mesma, lembrava-me da minha gente fusca, triste, e achava-me um anacronismo. Essa idéia, que iria assaltar-me com freqüência, não me dava tristeza. Necessário conformar-me: não me havia sido possível trabalhar de maneira diferente: vivendo em sepulturas, ocupara-me em relatar cadáveres”.
Ignoraria Graciliano os milhões de cadáveres que o stalinismo já havia amontoado? Muita tinta já rolara no Ocidente em torno às purgas, deportações e campos de concentração. Mas crente que se preza não quer ver. Ao crente, basta crer.
Uma ligeira dúvida perpassa o espírito de Graciliano e seus companheiros ao verem a cidade cheia de retratos de Stalin, “a demonstração de solidariedade irrestrita não impressionava bem o exterior”. Mas a senhora Nikolskaya, a guia, julga tal observação leviana e absurda, para consolo dos crentes:
“Nenhum russo admitia que as coisas se passassem de outra maneira. Essa réplica, isenta de motivos era, no meu juízo, superior a um longo discurso esteado em razões. Estávamos diante de um fato, e condená-lo à pressa, ao cabo de alguns passeios na rua, parecia-me ingenuidade. Com certeza ele era necessário, e devíamos, antes de arriscar opinião, investigar-lhe a causa. Realmente não compreendemos, homens do Ocidente, o apoio incondicional ao dirigente político; seria ridículo tributarmos veneração a um presidente de república na América do Sul. Não temos em geral nenhum respeito a esses indivíduos”.
Para o escritor alagoano, Stalin é o “estadista que passou a vida a trabalhar para o povo, nunca o enganou. Não poderia enganá-lo. Esforçou-se por vencer o explorador, viu-o morto - e seria idiota supor que, alcançada a vitória, desejasse a ressurreição dele. É, desde a juventude, um defensor da classe trabalhadora. Esta expressão, razoável há trinta e cinco anos, tornou-se desarrazoada, pois aqui já não existem classes”.
Graciliano está há poucos dias em Moscou, não fala o russo, tem roteiros rígidos de passeios e visitas, e já afirma peremptoriamente que não mais existe na Rússia uma sociedade de classes. Vista de nossos dias, sua afirmação é de uma ingenuidade atroz. Independentemente desta distância crítica, nada permite a um homem que pensa, fazer tais ilações generalizantes a partir de tão parca experiência do povo soviético. Sem falar que Graciliano nada entendia da língua russa.
O seco criador de Paulo Honório, inimigo de adjetivações supérfluas, passa a cultivar os adjetivos:
“Não admitimos nenhum culto a pessoas vivas, perfeitamente: a carne é falível, corruptível, inadequada à fabricação de estátuas. Mas não se trata de nenhum culto, suponho: esse tremendo condutor de povos não está imóvel, de nenhum modo se resigna à condição de estátua. Homens embotados, afeitos à corrupção e à fraude, percebemos isto: a massa tem confiança absoluta nele e manifesta a confiança impondo-lhe a obrigação de admitir as ruidosas aclamações e os retratos. (...) Agradecimentos e louvores palpitam na alma da multidão, e recusá-los seria uma ofensa, um erro que nenhum político bisonho cometeria”.
Stalin, modesto dirigente, é coagido a aceitar a religiosa adoração das massas agradecidas. E Graciliano, que sequer pode olhar para Stalin com binóculos, chega à conclusão que “este tremendo condutor de povos” não é o monstro que o Ocidente imagina:
“Deixavam-me passar. E deixavam-me subir a escadaria, galgar as insignificantes barreiras de meio metro, avizinhar-me do homem que a burguesia odeia com razão. Stalin não vive numa toca, defendida por metralhadoras e canhões”.
VELHO GRAÇA VÊ O MENINO
O homem que, em rápido turismo por Moscou, afirma não mais existir a sociedade de classes na União Soviética, mais adiante nos alerta para o perigo das generalizações. É quando passeia pelos jardins do Kremlin, em meio a “cinzas preciosas”. Lá estão as de John Reed, americano, portanto inimigo, pelo menos em princípio. Mas Reed escreveu a grande reportagem da Revolução. Logo, “esse nome nos enche de sentimentos bons. Perigoso entregar-nos a generalizações feitas à pressa. Nem toda a gente na América deseja aniquilar a humanidade com bombas atômicas e bactérias. Não vamos responsabilizar duzentos milhões de indivíduos, oito milhões e meio de quilômetros quadrados, porque um oficial de instinto ruim tentou furtar uma estatueta amarela no Hotel Savoy”.
Ao visitar o Kremlin, o espírito de Graciliano é tomado por sensações místicas (os itálicos são nossos):
“...pisamos o núcleo de Moscou, a cidadela venerável exposta de longe ao mundo com júbilo ou furor, conforme as circunstâncias. Sim senhores. Estamos dentro dela - e as pedras santas das muralhas não caíram em cima de nós para esmagar-nos, estorvar a profanação”.
“É verdade: miseráveis sapatos americanos, brasileiros, pezunham na terra sagrada por diversas razões. Estamos no Kremlin”.
Ante a guia que lhe narra a história do castelo, Graciliano sente-se “aluno chinfrim, seguro o lápis e o caderno, abro os olhos e os ouvidos, quero aprender”.
“Andamos noutros refúgios de religião, transformados em museus, vemos riquezas semelhantes às do primeiro, ouvimos datas, noções peregrinas, toda uma santa arqueologia que a revolução guardou com zelo piedoso".
Sala de São Jorge: “o Deus dele não podia equiparar-se ao Deus existente na Catedral de S. Basílio, fora do Kremlin”.
Iríamos muito longe se enumerássemos as evocações religiosas suscitadas em Graciliano por sua visita ao Kremlin. Passemos então à visita do escritor ao berço em que nasceu o novo Deus, a cidade de Gori: “o monumento a que nos referimos é apenas uma casa miúda, de tijolos nus, sem reboco”.
Nos dois quartos que perfazem apenas dois metros, morava o velho Djugatchivili, sapateiro. Joseph nasce em 1879 e destinava-se à profissão religiosa, já que o ofício de sapateiro rendia pouco. Troque-se o sapateiro por marceneiro, a cabana por manjedoura, coloque-se uma nova no firmamento, adicione-se mais três magos, e essa história já conhecemos. Olhando o ambiente, inconscientemente, o Velho Graça - como era chamado por seus amigos - chega a trair-se: “Onde estava a cama do menino?”
Perseguir em Viagem este preito stalinista até o fim, tornar-se-ia monótono. Passemos a uma consideração final do autor:
“Meses depois, no meu país, homens sagazes e verbosos censurar-me-iam a ignorância a respeito da União Soviética. Tinham-me os guias exibido coisas necessárias à propaganda e eu, ingênuo, acreditara nelas. Indispensável aceitar verdades ocultas abaixo das aparências brilhantes. E, sem nunca ter ido à URSS, explicar-me-iam, generosos, horrores medonhos, trabalhos forçados, enxovias horríveis, fuzilamentos diários. Seria preciso admitir que as moças do Teatro Paliachivili e a menina do Instituto Marx-Engels estavam nesses lugares para enganar-me. Os transeuntes eram impostores, a serviço da polícia. As fábricas, as escolas, os palácios de pioneiros, tudo logro. Venenos do socialismo”.
Por ironia, esta irônica hipótese de Graciliano é a que acaba se configurando como a realidade da época stalinista. No XX Congresso, três anos após a morte do escritor e de seu deus, Kruschev abre as cortinas do grande teatro e revela a face do mais operoso assassino do século. Como pode Graciliano ter-se deixado embarcar em tal canoa?
Wilson Martins, ao analisar suas contradições, em O Modernismo, parece tê-lo entendido:
“Uma análise pormenorizada dessas contradições não poderia ignorar um tema que, por enquanto, deixo de lado: esse individualista e esse clássico tornou-se militante do Partido Comunista, no qual via, bem entendido, apenas os aspectos idealísticos e programáticos. O seu livro de turismo à União Soviética é, nesse particular, extremamente revelador: não me parece temerário supor que a realidade comunista, uma vez instalada no Brasil, causar-lhe-ia a mesma repugnância que a realidade republicana (no sentido radicalista da palavra). Viagem é, do começo ao fim, um livro de evasão: não de evasão do Brasil, mas de evasão da própria viagem que o escritor realizava.
Não será preciso grande acuidade psicológica para perceber que Graciliano Ramos esforça-se subconscientemente, não apenas para aceitar o que lhe contam e o que lhe mostram, mas para sufocar qualquer veleidade de espírito crítico ou de curiosidade inoportuna. Tocando a Terra Prometida, ele eliminou, por um processo muito simples de sublimação psicológica, qualquer contato com o mundo imediato e com ele próprio: Graciliano Ramos não via a URSS da geografia, da política ou da sociologia, viu a URSS tal como ela se configura no mito mental que os comunistas do mundo inteiro e nomeadamente os do Brasil elaboraram pouco a pouco em anos e anos de diáspora imaginária”.
Não é difícil entender este movimento psicológico. Imaginemos um escritor de talento, isolado em um obscuro rincão de qualquer país, em nosso caso, o Brasil. Seu talento não é reconhecido em nível merecido e sua recompensa é o cárcere. Um belo dia,é convidado pelos dirigentes de uma prestigiosa revolução a visitar o paraíso terrestre. Neste éden ignoto, onde é recebido com tapetes vermelhos, mal chega já lhe perguntam quais de seus livros devem ser traduzidos na sociedade ideal. A qual escritor não comoveria tal convite?
Em Viagem, vemos quão amargas são as marcas deixadas pelo Brasil em Graciliano. De que jeito vivem em sua terra? - pergunta-lhe uma advogada. O alagoano não se furta a explicar:
“Caí num monólogo triste, falando interiormente às deliciosas vizinhas erguidas no fim da platéia. Isso mesmo. Entalam-nos o crânio, somos coagidos a não pensar direito: as nossas idéias se esfarelam, espalham-se em torno de pequenas misérias. E nem só os pensamentos se reduzem. Os corpos também se aniquilam, nas prisões e fora delas. Uma prensa invisível nos comprime. O ar em nossa terra é denso, pesado; às vezes necessitamos esforço para respirar. E até isso nos roubam, estragando-nos os pulmões: ao sair da cadeia, estamos tuberculosos. Como vivemos? Propriamente não vivemos: aquilo não é vida. Quando entramos na Colônia Correcional, dizem-nos - “Não vêm corrigir-se. Vêm morrer. E ninguém tem direitos. Nenhum direito”. Espanta-nos a franqueza. Numa existência de animais, ficamos semanas em jejum completo. Descerram-se enfim as grades, vemos o Sol. Não realizaram, pois a ameaça? Não nos mataram? Em parte, realizaram: estamos na verdade quase mortos. Ganhamos cabelos brancos e rugas. Assim tão fracos, tão velhos, não conseguiremos trabalhar. Arrasaram-nos”.
Segunda ironia na viagem do Velho Graça: tentando descrever o Brasil a partir de sua experiência pessoal, na verdade descreve a sociedade dos gulags, da qual é hóspede privilegiado.
Tão intensa é sua vontade de crer, que vê como grande avanço do socialismo a aniquilação das diferenças individuais. Em Moscou, pergunta à sua guia se uma transeunte próxima seria empregada em oficina ou repartição pública. A senhora Nikolskaya, moscovita, não consegue satisfazer-lhe a curiosidade: “É impossível saber. Não achamos distinção”. O viajante cede então ao utópico sonho de Lênin, o da sociedade em que o pedreiro seria também engenheiro:
“Um ofício não é superior a outro - e os homens tendem a uniformizar-se. Essa idéia choca o nosso individualismo pequeno-burguês: achamos vantagens nas discrepâncias, receamos tornar-nos rebanho. E nem vemos que somos um rebanho heterogêneo, medíocre, dócil ao proprietário. Queremos guardar o privilégio imbecil de não nos assemelhar-nos ao vizinho. Enfraquecendo-nos, julgamo-nos fortes. Realmente, somos bestas”.
O gesto é de contrição.
Antes de regressar ao Brasil, nas proximidades do aeroporto de Moscou, o escritor tira o chapéu à horrenda arquitetura que nos legou Brasília. Vê casas e, intimamente, propõe a destruição delas:
“Há na vizinhança do aérodromo casinholas de madeira, lastimosas, lôbregas, a cair de velhice. Não exibem realmente a miséria das nossas favelas, mas tristes, feias, abrigam enorme desconforto. Vestígios de outras épocas, impressionam mal o visitante. Próxima se eleva a universidade, imensa, e isto aumenta a penúria dos infelizes pardieiros. Conveniente destruí-los, pensei, evitar-nos a visão molesta. O prejuízo não seria grande: os habitantes das minguadas velharias, pouco numerosos, achariam sem esforço asilo noutros lugares, e os estrangeiros de maus instintos, resolvidos a torcer o nariz ao socialismo, perderiam num instante aparências de razões badaladas com rigor lá fora: os indivíduos aqui não têm onde morar: na cidade enorme, sete milhões de criaturas se alojam a custo, várias famílias arrumando-se num quarto miúdo. Estupidez, é claro. Mas por que não suprimir a causa da estupidez?”
O cauteloso escritor que se recusa a escrever sobre um mosteiro em Sukhumi, cidade balneária, porque “não me aventuro a expor conhecimentos arranjados à pressa, numa carreira de oitenta quilômetros por hora”, mal passa alguns dias em uma cidade de sete milhões de habitantes, com passeios orientados a palácios e museus, sente-se à vontade para escrever que é estupidez afirmar que os sete milhões de moscovitas habitam mal. Haja fé.
A senhora Nikolskaya, com ar de forte desprezo, o esclarece:
“- Estão aí as belezas do individualismo”.
O ensejo de Graciliano Ramos cumpriu-se. As belezas do individualismo não mais existem em Moscou. Todo moscovita, Nomenklatura à parte, vivia em blocos cinzas de concreto, e o problema habitacional persistia ainda nos dias de regime marxista, a ponto de jovens combinarem casamentos brancos com o fim exclusivo de obter do Estado alguns parcos metros quadrados. E o que é pior: a desoladora arquitetura staliniana acabou sendo transplantada para o Planalto Central brasileiro e, salvo terremoto ou bomba atômica, ali restará séculos afora.
Ao final da viagem, em Gagra, vilarejo às margens do Mar Negro, os anfitriões mais vez cobram o escritor. Uma professora lhe pergunta se não vai escrever um livro sobre a União Soviética.
“Não sei, minha senhora. Acho que não. Faltam-me observações, demoro pouco”.
Na despedida, na Geórgia, Leonidze, presidente da União dos Escritores - a quem o convidado oficial da VOKS (Sociedade para as Relações Culturais da URSS com os Países Estrangeiros) dedica um capítulo, indignado com a imprecisão de seus informes - afirma que a viagem renderá a ele, Graciliano, um livro.
“- Muito difícil. Ignorância completa”.
Mas renderia, ainda que póstumo. E o criterioso Graciliano, que recusava dobrar-se aos ditames de Zdanov, acaba escrevendo uma obra-prima de realismo socialista. Enquanto suas ficções não são ficções, mas a realidade do homem nordestino, seu relato de viagem não é real, mas ficção pura, e das mais infelizes.
Sobrevivesse Graciliano ao XX Congresso, qual seria sua atitude? Ignoramos. Era, sem dúvida alguma, um homem íntegro. Mas a necessidade de crer em algo é mais forte, no homem, do que sua coerência.
27 de outubro de 2012
janer cristaldo
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