Vai demitir-se nos próximos dias um jornalista cuja trajetória acompanho desde minha infância. Um pouco tarde para demitir-se, não?. Ocorre que heróis de quadrinhos nunca envelhecem. Trata-se de Clark Kent, do Daily Planet, jornal em que trabalhou antes mesmo de eu ter nascido. Verdade que nunca li uma reportagem sequer deste repórter. Sabia apenas que ele tinha um caso platônico com a Miriam Lane. E que era a identidade secreta do Super-Homem.
Na edição de número 13 que chega amanhã (24/10) às bancas dos Estados Unidos, Kent vai dizer para toda a equipe do jornal que está decepcionado com os rumos tomados pelo jornalismo que, segundo ele, está virando puro entretenimento. O discurso, na verdade, é apenas para encobrir o cansaço de ter de ficar despistando o tempo todo seu rígido editor Perry White. Consta que agora Kent vai tomar decisão semelhante à minha: mergulhar num mundo sem patrão pelo blog na Internet.
Fui leitor voraz de quadrinhos em minha adolescência. Não sei como, os gibis chegavam até os rincões onde nasci. Quando fui para a cidade, fiz a festa. Nas matinês de sábado, após algum seriado do Capitão Marvel ou de Hopalong Cassidy, havia um farto mercado onde trocávamos revistinhas. Era leitura garantida para a semana toda. Às vezes, quando encontro alguém de minha idade, fazemos um torneio de erudição. Qual a identidade secreta do Capitão Marvel? Billy Batson, é claro. E a eterna namorada do Mandrake? Narda. E como era mesmo o nome do negrão aquele que parecia ter um caso com o mágico? Lothar. Como se chamava o cavalo do Zorro? Silver.
E o cachorro do Fantasma que Anda? Capeto. Em verdade, não era um cão. Mas um lobo. E sua noiva? Diana Palmer. Foi um dos noivados mais longos da história. Durou 40 anos antes que o Fantasma tomasse uma decisão. Morava na Caverna da Caveira e era imortal, graças a um truque: a cada geração, o filho retomava a identidade do pai. tom de respeito e seguindo uma longa tradição, a Caverna da Caveira conta com uma cripta, na qual estão os 20 antepassados da linhagem, aos quais ele apresenta sua esposa e, posteriormente, seus filhos. Sua marca registrada era o anel da caveira, que deixava sua impressão no rosto dos bandidos que derrotava.
Sem falar em Tarzan e suas aventuras nos pântanos de Pal Ul Don, responsável por não poucas de nossas quedas de árvores. Mal víamos um galho solto, nele nos agarrávamos gritando: kriagh bandolo tarmangani! Matar homem branco. Tarzan, eu o li em quadrinhos e nos livros de Edgar Rice Burroughs. Gostei mais dos livros, deixavam mais lugar à imaginação.
Em suma, minha adolescência não foi de Monteiro Lobato ou contos de Grimm. Meus heróis foram estes e mais Buck Jones, David Crocket, Hopalong Cassidy, Nyoka, a Rainha das Selvas, Tim Holt, Charlie Chan, Mickey, Pato Donald e outros cuja lembrança me foge. Foram úteis para minha educação? Não saberia dizer. Talvez tenham desenvolvido minha capacidade de leitura. Só sei que me alegraram aqueles dias.
Mas, como dizia Koelet, “tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar”.
E há obviamente tempo de ler quadrinhos e ler bom livros. Adulto, ainda curti duas revistinhas, as de Mafalda e as de Asterix. Mas aí não é mais quadrinho e sim boa literatura.
Assim sendo, fico um tanto perplexo ao ler esta notícia recente no Estadão: que, em 2006, governo federal, por meio do Ministério da Educação (MEC), comprou e distribuiu para a rede pública, pela primeira vez, literatura em quadrinhos. "Com o PNBE, as editoras puderam tirar os quadrinhos do underground e direcioná-los para um público maior", afirma Ivan Pinheiro Machado, editor da L&PM Editora.
Vivo longe do universo das escolas e desconhecia esta barbaridade. Escritores escrevem para serem lidos, não para terem seus textos traduzidos em desenhos. Desenho é uma coisa, atende aos olhos. Palavras é outra completamente distinta. Palavras apelam à imaginação.
Já vi, é verdade, adaptações em quadrinhos do Quixote e mesmo da Bíblia. Para crianças, vá lá. De nada adianta colocar esses livros nas mãos de quem ainda não adquiriu – nem poderia – o hábito da leitura profunda. Leio no jornal que Machado de Assis, Raul Pompeia, Monteiro Lobato, Dante Alighieri e Júlio Verne são apenas alguns escritores que tiveram textos recém-adaptados.
Mais uma vez vá lá. Desde que para crianças. Mas em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) passou a recomendar "formas contemporâneas de linguagem e manifestações artísticas nos ensinos fundamental e médio". Ora, este é o tempo da leitura de livros, não de folhear revistas em quadrinhos.
Considera-se inclusive que, como a linguagem tem de ser adaptada, isto faz surgir uma nova obra. Segundo Paulo Ramos, professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador de HQs, o mercado hoje também enxerga dessa forma. Antigamente era o nome do escritor do texto original que aparecia nas capas das publicações; agora, os direitos da versão HQ ficam com o roteirista e o quadrinista.
Imagine a obra de Cervantes assinada por um moleque qualquer. E já que falamos no manco de Lepanto, tente conceber o texto que segue transposto em quadrinhos:
Dichosa edad y siglos dichosos aquellos a quien los antiguos pusieron nombre de dorados, y no porque en ellos el oro (que en esta nuestra edad de hierro tanto se estima), se alcanzase en aquella venturosa sin fatiga alguna, sino porque entonces los que en ella vivían ignoraban estas dos palabras de tuyo y mío.
Eran en aquella santa edad todas las cosas comunes: a nadie le era necesario para alcanzar su ordinario sustento tomar otro trabajo que alzar la mano, y alcanzarle de las robustas encinas que liberalmente les estaban convidando con su dulce y sazonado fruto. Las claras fuentes y corrientes ríos, en magnífica abundancia, sabrosas y transparentes aguas les ofrecían.
Dá pra imaginar isto desenhado? O curioso é que as autoridades desde há muito se queixam do baixo nível de aprendizado dos alunos. E não poupam esforços para rebaixá-lo ainda mais.
25 de outubro de 2012
janer cristaldo
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