Se tem algo em minha vida de que não posso falar, é de minha primeira namorada. Pois comecei minha vida afetiva com duas. Uma, foi a que me acompanhou durante quatro décadas e que a vida houve por bem roubar-me há cinco anos. Mas o que importa agora é a outra.
Era um bugra linda guarani, com uma voz um pouco grave que ainda sonho ouvir alguma vez de novo antes do final de meus dias. Índia do Mato Grosso, nada tinha a ver com essas selvagens que andam de tanga nas florestas. Seu pai era guarda aduaneiro e assim ela foi cair em Dom Pedrito.
Trabalhava como locutora na Rádio Upacaraí, o que lhe dava uma certa onipresença na cidade. Minha paixão por ela surgiu aos poucos, subrepticiamente. Fui estudar em Santa Maria, depois em Porto Alegre. Até que um dia fui tomado por uma necessidade imperiosa de revê-la e decidi: vou até Dom Pedrito. Vou lá buscar o que é meu.
Nesse meio tempo, eu já havia achado a Baixinha. Mas... que fazer? Era algo mais forte que minha vontade. Resumindo: vivemos dias de muito carinho, durante uns bons dois ou três anos. Ela vivia enrolada em problemas familiares, o que nos fez decidir por dar um fim àquela relação. Em nossa última noite, choramos até o amanhecer. Saí a viajar, troquei de cidades e ela também. De nossa história, resultou minha expulsão da cidade. Com a promessa de ser castrado com brasas, se voltasse. Mais tarde, soube vagamente que casou, terá tido filhos e creio que mantém uma pousada em Santa Catarina. E mais não sei.
Índia, integrou-se perfeitamente à vida urbana. Para isso, teve um dia de sair de sua aldeia, abandonar sua tribo, desfazer-se de seu passado. Tivesse ficado no meio do mato, seria provavelmente uma mulher analfabeta, viveria sendo espancada por um bruto, talvez tivesse tido filhos que ou logo morreriam ou viveriam doentes e mal-nutridos, sem acesso à educação e aos confortos do mundo contemporâneo. Em suma, não teria vivido como gente.
Corto para outra boa amiga de meus dias de Santa Maria. Foi em função dela que fiz meu curso de Direito. Eu vivia em Porto Alegre, ela em Santa Maria. Cursar Direito lá era para mim um pretexto para visitá-la pelo menos seis vezes ao ano. Daí minha rápida passagem pelas ditas Letras Jurídicas. Bom, viajamos, cada um para seu lado. Musicista, ela casou com um alemão e foi viver em Berlim. Hoje vive em Florianópolis. Sem filhos, adotou duas adoráveis bugrinhas caingangues. As indiazinhas vivem hoje em uma casa de sonho, em um ambiente de muito carinho, de muita música e cultura e têm pela frente um mar de rosas. Não é difícil imaginar o que seria delas se não saíssem da tribo.
Por estas razões – e também por outras – é que leio com pasmo a denúncia da Fundação Nacional do Índio (Funai) de que crianças e adolescentes indígenas em Dourados (MS) têm sido retirados das famílias e colocados para adoção sem nenhum critério que respeite suas diferenças culturais. “Índio fora da tribo sofre muito mais, principalmente preconceitos. Tem comportamento diferente dos não-índios, portanto precisa viver com suas raízes, sua gente”, diz a administradora da fundação na cidade, Margarida Nicolletti.
Segundo esta senhora, a procuradoria da Funai já entrou com ação, com base no Estatuto do Índio, para cancelar processos de adoções por famílias não-índias que estejam em andamento ou já concluídos. Quando vítimas de maus tratos de pais ou familiares, as crianças são recolhidas pelo Conselho Tutelar de Dourados e levadas aos quatro abrigos de menores da cidade. Depois de 60 dias, tornam-se responsabilidade da Vara da Infância e Adolescência, que as põe na lista de adoção.
Segundo o juiz Zaloar Murat Martins, “menores de idade são menores, não importa a raça. Qualquer um que esteja sofrendo maus tratos tem que ser assistido. A destituição do vínculo familiar e a seguida adoção são medidas perfeitamente legais. Procuro todos os meios possíveis de evitar esse caminho, mas existem situações que não deixam alternativas.”
O mesmo já não pensa o antropólogo Rubem Thomaz de Almeida. “É um horror” – disse. “Os juízes estão agindo movidos por preconceitos, a partir de estigmas, sem conhecimento da realidade indígena.” Para Almeida, é um erro aplicar o Estatuto da Criança e do Adolescente nas comunidades guaranis, sem respeitar seus traços culturais: “No fundo, o que prevalece nas decisões é o estigma de que todos os índios são coitadinhos e alcoólatras e por isso sua cultura deve ser eliminada".
O que só confirma minha tese de que os antropólogos querem preservar os indígenas em jaulas atemporais, numa espécie de zoológico para contemplação dos homens do futuro. Se você quiser adotar um menino africano, vietnamita ou cambojano, não há problema algum. Mas ai de você se quiser adotar um indiozinho de seu país, que está condenado a uma vida econômica e culturalmente miserável se permanecer em sua aldeia. Você é visto como uma espécie de criminoso, de exterminador de culturas.
Ora, ninguém está pretendendo exterminar culturas indígenas. Culturas que, com o avanço da civilização mato adentro, com a expansão dos meios de comunicação e das escolas, inexoravelmente serão extintas. Como um dia foi extinta a cultura de caldeus e assírios, de guanches e godos, de mujiques e etruscos. Os indígenas brasileiros sequer chegaram a construir um alfabeto. Culturas ágrafas estão condenadas ao desaparecimento. Sem escrita a memória é curta, não há História. Quando um índio aprende a ler e escrever, sua cultura já está morrendo. Quando um indiozinho vai à escola, já está deixando de ser índio. O que os antropólogos querem preservar é uma crosta de rituais e crendices, que só serve para manter os índios presos a um passado paupérrimo e desconfortável.
Ninguém quer matar culturas. Que, aliás, estão condenadas a morrer. O que se quer é salvar uma criança da miséria. Digamos que uma família índia, que tomou consciência de que na aldeia não há futuro, queira entregar seus filhos a casais brancos. Quer entregá-los para dar-lhes educação, melhores condições de vida, enfim, um futuro decente. Não pode. A Funai não deixa. Para a Funai, é melhor que a criança morra por desnutrição ou doenças da pobreza. Que viva chafurdando em meio à incultura e à barbárie. Porque segundo o novo dogma antropológico, índio fora da tribo sofre muito.
Não foi o caso de minha bugra adorada, que se sofreu foi de amores, e este sofrimento tem um arrière-goût dos mais agradáveis. Não é o caso das adoráveis bugrinhas caingangues, que têm um futuro admirável pela frente.
Esta raça infame de antropólogos deveria ser condenada a viver no paleolítico, por crime de lesa-humanidade. Deveriam ser confinados numa aldeia, sem ter acesso nem a água corrente nem a sanitários, nem a geladeiras ou papel higiênico, muito menos a vinho ou champanhe, enfim, desprovidos de todos esses luxos capitalistas da civilização branca.
É muito confortável defender a vida na tribo quando se vive na metrópole. Difícil é viver na aldeia. Este é o quinhão dos bugres.
31 de outubro de 2012
janer cristaldo
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