Escreve a Folha de São Paulo em editorial:
- Ficou célebre a frase do poeta Ferreira Gullar: “A crase não foi feita para humilhar ninguém”. Com mais razão seria possível acrescentar que ninguém estará ameaçado de cadeia ou multa se desobedecer às regras do novo acordo ortográfico, adotado no Brasil a partir de 2009.
Não há sanção alguma para quem desobedecer tal reforma. Se não há sanção, não há crime. Logo, se não é crime adotar as novas regras – confusas e contraditórias – por que adotá-las? Há horas venho afirmando que se a imprensa, o mundo editorial e as universidades não adotassem a lei inútil e confusa, ela morreria no berço. Não que os idiomas sejam imutáveis. Fossem imutáveis, nem o português existiria. Mas a reforma proposta por Antonio Hoauiss é confusa e só serve para dificultar o uso da língua.
Costuma-se afirmar que o povo é quem faz a língua. Por acaso foi consultado o tal de povo nesta reforma? Não foi consultado nem para dizer amém. Nem o povo, nem os escritores, nem os jornalistas, nem os professores, os principais usuários deste instrumento. A reforma veio de cima e foi imposta a “los de abajo”. A bem da verdade, não foi imposta legalmente. Mas jornais, editoras e universidades brasileiras a assumiram como se lei fosse. Pior ainda, o acordo foi imposto até ao país onde nasceu a língua. Mas Portugal não nasceu ontem e resiste à reforma espúria.
- Chega a ser notável, aliás, a diligência com que tantos brasileiros trataram de se adaptar às modificações impostas – continua o editorial –. Manuais explicativos, dicionários atualizados, edições refeitas de antigos livros se produziram em quantidade e - no que sem dúvida consistiu em forte motivo para todo o desassossego - se venderam com rapidez.
Nada espanta que a diligência tenha sido notável. Reforma ortográfica rende mais que tomada de três pinos. De repente decidiu-se que só tomadas com terra eram seguras, como se todos os dias morresse um brasileiro por choque em tomadas. Ocorre que a maior parte das residências no Brasil não está aterrada. Que se modifiquem então as instalações elétricas do país. O mercado precisa de novos produtos.
Mas a tomada de três pinos afeta só o mercado das tomadas. A reforma ortográfica afeta livros, jornais, leis, tudo o que se escreve. Toda a literatura publicada tem de ser republicada, trate-se tanto de ficções como de bíblias, leis, manuais e até mesmo placas de rua. Isto é, a rigor não teria, já que a lei não tem sanção. Mas imprensa, universidade e editoras se comportaram como se sanção tivesse.
Mal foi instituída a reforma, já estava nas livrarias o manual Escrevendo pela nova Ortografia. Editado por quem? Por uma parceria entre a Publifolha e o Instituto Antônio Houaiss. A imprensa foi cooptada desde o início.
Tamanha era a certeza na aposta da reforma, que o Instituto Houaiss apressou-se em publicar, em 2008 – um ano antes da entrada em vigor do acordo – uma nova edição do Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o primeiro dicionário brasileiro a contemplar integralmente a nova lexicografia.
Disse na ocasião o editor Roberto Feith, da Objetiva, que muitos pais compram os livros escolares do ano seguinte ainda em agosto ou setembro. "Não faz o menor sentido adquirir uma obra de consulta que esteja defasada. O fato é que todos os dicionários estarão ultrapassados em poucos meses."
Alvíssaras. Nunca uma decisão autocrática de um intelectual favoreceu tanto o mercado editorial. Antonio Houaiss ganhou seus galões com a tradução de Ulisses. O que ninguém comenta é que a obra - que rendeu o fardão de imortal a Hoauiss – tem pelo menos cinco mil erros. Erros não do tradutor. Mas da edição princeps de Joyce, que tinha uma péssima caligrafia que não foi entendida pelo linotipista. Você imaginou que festa para um psicanalista se Joyce escreveu another e o linotipista entendeu mother?
Quem ganha com isto? O mercado editorial e livreiro. O brasileiro só perde. Além de ter de assimilar uma reforma irracional e incoerente, tem de usar as novas tomadas – digo, livros – que o mercado impõe.
Brasileiros adoram protestar contra o mensalão, mas engolem prazerosamente inovações inúteis que lhes tiram do bolso muito mais grana que os mensaleiros.
12 de janeiro de 2013
janer cristaldo
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