A catástrofe de Friburgo, obra nacional
Responsável pela Defesa Civil de Nova Friburgo, no estado do Rio, o
tenente-coronel Roberto Robadey telefonou para o prefeito às onze da manhã e
avisou que a cidade estava prestes a atingir o volume crítico de chuva: 80
milímetros. O coronel constatara pouco antes que as seis estações hidrológicas
registravam um volume acumulado de 65 milímetros de chuva. Era preciso dar o
sinal de alerta.
Recentemente, haviam sido mapeadas 35 áreas de risco na cidade, de onde as pessoas teriam que sair caso o volume de chuva atingisse a marca crítica de 80 milímetros – sinal de risco iminente de extravasamento de rios e deslizamento de encostas. O coronel ligou em seguida para os presidentes das associações de moradores dessas áreas e falou para alertarem a todos. Outro alerta foi emitido pela Rádio Friburgo AM. Meia hora depois, o volume de chuvas alcançou 75 milímetros. Eram 11 horas e 26 minutos da manhã de 11 de janeiro, uma terça-feira.
Dois meses antes, a Defesa Civil da cidade preparara um plano de emergência para tempestades. Técnicos em prevenção de catástrofes disseram que era o projeto mais eficiente de todo o estado do Rio de Janeiro: associações seriam treinadas para instruir os moradores sobre como proceder na emergência, abrigos estariam preparados para receber as vítimas, hospitais e bombeiros seriam mobilizados para operar em plena capacidade. Mas, sem dinheiro para o treinamento, sem transporte e sem pessoal, o plano não saiu do estado de plano.
Às quatro da tarde, as chuvas atingiram 80 milímetros e a Defesa Civil recebeu o primeiro chamado: um prédio desabara no bairro de Olaria e duas pessoas morreram. Ao ser avisado, o coronel Robadey pediu um carro emprestado à prefeitura. Há mais de um ano, os dois únicos carros da Defesa Civil viviam no conserto. O coronel conseguiu um solitário Gol, carro inútil em calamidades.
Passou uma hora e a chuva arrefeceu. As estações pluviométricas e hidrológicas registraram redução no volume de água. Parecia que o perigo passara. Às nove da noite, contudo, uma nova tempestade desabou. Ao tentar voltar para o Centro da cidade, o coronel Robadey, sua equipe e o Gol ficaram presos entre duas barreiras. Só conseguiriam escapar às sete da manhã, descendo a pé por uma encosta.
Nessas dez horas em que ficaram retidos, o volume de chuvas chegou a inimagináveis 220 milímetros. Ou seja, caíram 220 litros de água em cada metro quadrado de Nova Friburgo. Três mil encostas deslizaram. Riachos se transformaram em corredeiras mortíferas. Construções sólidas se dissolveram como castelos de areia. Dezenas de milhares de pessoas ficaram feridas ou traumatizadas. Doze mil perderam suas casas. Quatrocentos e quarenta morreram.
Edemilson, o artesão acordou às cinco da manhã, foi até a porta de casa, uma construção de dois quartos, de paredes sem reboco, e olhou para o céu. Chovia. Aborrecido, Edemilson da Silva pensou que não poderia trabalhar. Em sociedade com três irmãos, ele explora uma pequena pedreira, herdada do avô, que fica a pouco mais de 1 quilômetro de sua casa. Fazem bancadas de pia, lajotas e outros trabalhos em pedra.
Sem poder trabalhar, Edemilson passou a manhã em casa, com a mulher, Eliane, e os quatro filhos, todos eles com nomes tirados da Bíblia: Ezequiel, Raquel, Josué e Gabriel. Os Silva são evangélicos, da Assembleia de Deus,como quase todos os moradores do bairro onde moram, a Prainha, que fica a 30 quilômetros de Nova Friburgo.
Edemilson da Silva, de 43 anos, e seus nove irmãos nasceram ali. Assim como seus pais, tios, primos, filhos e sobrinhos. Quase todos os moradores são aparentados. O avô herdara parte da fazenda do antigo dono e construíra as casas para ele e para os filhos. Depois vieram os netos, os parentes e contraparentes, e o lugar cresceu. Prainha ganhou esse nome em razão de uma pequena praia de rio que existe ali.
Ao lado da casa de Edemilson mora sua irmã, Jelci. Acima dela, outra irmã, Joelma. Do outro lado da rua, de pouco mais de 2 metros de largura, vivem seu tio e outros irmãos. Quase todos têm cabelos claros e olhos azuis. As construções mais proeminentes são o templo da Assembleia de Deus, uma mercearia e um laboratório de medicamentos abandonado.
Edemilson, a mulher e as crianças, a irmã Joelma e a filha dela, Samara, de 13 anos, se reuniram naquela noite na casa de Jelci. Queriam ensaiar hinos religiosos. O cunhado tocava teclado e Samara puxava a cantoria. Eram hinos tristes e eles se emocionaram.
Quando começou o aguaceiro, Edemilson voltou com a família para a casa. Por volta das onze da noite, a luz acabou e Prainha virou um negrume. O estrondo dos trovões o assustava: os relâmpagos, avermelhados, pareciam labaredas rasgando o céu. Edemilson não conseguiu dormir. Quando jovem, durante uma tempestade, recebera uma violenta descarga elétrica. Desde então, passara a ter medo de chuva.
Eram quase três da manhã quando Jelci chamou o irmão: tinha ouvido o ruído de uma barreira cair. Ele subiu com a lanterna e não percebeu nada de anormal. Sem sono, os irmãos ficaram na cozinha conversando. Escutaram um novo ribombar, que fez o chão tremer. Pouco depois, viram Joelma e o marido, Sérgio, saindo aos gritos de casa. Edemilson custou a entender do que se tratava. “A casa de Claudinho e Adriana caiu e Samara está lá dentro!”, berrava Joelma.
Edemilson deu um pulo da cadeira e correu atrás deles. Quando chegou, viu que não só a casa de Cláudio Coelho, o Claudinho, cunhado de Joelma, como todas as casas em volta haviam desabado. A casa onde a sobrinha estava tinha três andares.
A família morava no 2º. Os moradores do 3º andar escaparam. Os sete que moravam no 1º estavam mortos. A laje imprensara Claudinho, a mulher, os dois filhos e a sobrinha. Em desespero, tentaram retirá-los, no meio da escuridão. Mas os escombros das casas acima rolaram sobre eles. Tiveram que correr.
Apavorado com o que presenciara, Edemilson correu para sua casa. Queria tirar as crianças e a mulher de lá. A água barrenta corria forte pelo caminho. Chamou a mulher e avisou que sairiam todos. Ela acordou os filhos enquanto ele procurava um plástico para cobri-los. Não ia tirá-los da cama quente e jogá-los na chuva fria, podiam ficar doentes.
As quatro crianças, de 10 a 5 anos,ficaram no meio da sala, de pijamas, ainda sonolentas, esperando pelo pai. Edemilson os abraçou com firmeza, dois de cada lado, e os cobriu com o plástico. Levaria as crianças primeiro. Depois voltaria para buscar a mulher.
Edemilson, o artesão
Eliane saiu para o quintal. Conseguiu entender o que a voz distante dizia: “Tirei meus filhos de casa para morrerem.” Levou mais alguns segundos para se dar conta do que ocorria. “São os meus filhos!”, ela gritou. Alucinada, caiu de joelhos na lama, e, com a tempestade lhe açoitando o corpo, apelou: “Meu Deus, se é para levar meus filhos, eu te peço, eu te suplico, me leve junto também. Não posso ficar aqui sem eles.”
Na beira do rio, agarrado ao arame, com a mão ensanguentada, Edemilson berrava: “Perdi meus filhos!” Então, ouviu Ezequiel chamá-lo: “Papai, socorro.” O homem soltou a cerca e correu, e tropeçou, e correu, e caiu, e correu até alcançar o menino.
Quando um novo relâmpago iluminou o céu, avistou o caçula, Gabriel, agarrado a um bambu. O menino o chamou: “Pai, me salva.” Segurando Ezequiel pelo braço, ele se arrastou até o caçula e o puxou.
Com os dois meninos agarrados a ele, fez o caminho de volta para casa. A força da água lhes arrancou a roupa. Chegaram em casa nus e feridos. Gabriel correu para o colo da mãe com os olhos e os ouvidos cheios de lama. “Mãe, me abraça que estou com frio”, pediu. E contou: “Pensei que fosse morrer.”
Eliane o abraçou chorando. Olhou para o marido e repetiu o que o próprio Edemilson dissera. “Você tirou nossos filhos de casa para morrerem.” Depois, se calou. O marido, com as mãos na cabeça, repetia, alucinado: “Só salvei dois, só salvei dois.”
Eram quase cinco da manhã quando um primo de Edemilson apareceu como uma assombração, vindo da parte baixa da rua. Viera avisar que as outras duas crianças, Raquel e Josué, estavam salvas. O primo encontrara a menina agarrada a um paiol. Um vizinho resgatara Josué, que se agarrara a uma árvore e gritara por socorro.
Pela primeira vez, Edemilson da Silva chorou. Sem ainda acreditar que pudesse ser verdade, correu para buscá-los. Em casa, Josué contou para a mãe o que lhe passara pela cabeça: “Eu só pensava que eu ia morrer e que você tinha comprado o material da escola à toa.”
Salma, a educadora
Salma Helena Salles Gomes saiu cedo de casa e deixou o neto, Victor, dormindo. Como estava de férias, o menino passava a maior parte do tempo na casa dos avós, no bairro de Duas Pedras. O casarão branco, de portais de pedra, com um enorme jardim na frente, era o paraíso do menino de 7 anos. “Vó, aqui é o melhor lugar do mundo”, ele costumava dizer.
A casa ficava em um vale, abaixo da estrada que liga Nova Friburgo a Teresópolis. É uma região cercada por montanhas verdejantes que, mesmo com a ocupação irregular de muitas encostas, continuava a ser uma das mais bonitas da cidade. Salma mudara-se para lá com o marido, Gilson Gomes, logo que se casaram, há quarenta anos.
Aos poucos, foram fazendo melhorias: piscina, campinho de futebol, churrasqueira, pomar e um apartamento para hóspedes nos fundos. Nas férias, quando os filhos eram adolescentes, o lugar vivia cheio. Agora, eram os netos que vinham brincar. O filho mais velho, Cícero, um advogado de 36 anos,voltara a morar com os pais desde que se separara da mulher, Juliana, também advogada.
Salma Gomes nasceu no Rio, mas mudou-se para Nova Friburgo ainda pequena. Formou-se em pedagogia e foi trabalhar na Secretaria Estadual de Educação. Sua jornada de trabalho é intensa. Pela manhã, trabalha em uma escola; à tarde, na Secretaria e, à noite, ajuda na administração do curso preparatório para concursos públicos de propriedade do filho, no Centro de Nova Friburgo.
Naquela terça-feira, chegou em casa às oito da noite. Jantou, tomou banho, colocou uma camisola e foi para o computador. Às nove, começou a chover forte. Seu filho Cícero, que deixara o trabalho nessa hora, chegou, apreensivo.
Contou que, no caminho para casa, vira que o rio Bengalas estava quase transbordando. Por volta das onze faltou a luz. Cícero pegou o carro e foi em direção ao Centro da cidade para saber o que tinha acontecido. Viu que árvores haviam caído sobre a rede elétrica. No caminho de volta, o cenário mudara rapidamente. O rio transbordara e alagara as ruas, quase o impedindo de passar.
Na casa, as luzes de emergência estavam acesas porque Salma tem medo de escuro. Àquela hora, seu marido, que tomara remédio para pressão, já tinha ido dormir. Ele dizia que o remédio era o seu sonífero. O neto também dormia, no quarto virado para os fundos da casa. Salma e Cícero não pregaram o olho.
No começo da madrugada, ela foi até a cozinha. Viu que o ralo regurgitava. O filho também levantou. Preocupados, vasculharam o lado de fora da casa com a lanterna e viram que as calhas, sob o peso da água, vergavam. Por volta das duas e meia, ainda sem sono, Salma se pôs a arrumar as gavetas do armário. Cícero acendeu uma vela e pegou um livro.
Passou uma hora e houve um estrondo terrível, seguido de um barulho abafado no fundo do quintal. Cícero achou que um carro caíra no terreno. Nesse momento, Juliana, sua ex-mulher, ligou. Preocupada com a tempestade, pediu que tirasse o filho do quarto de trás e o levasse para dormir com ele, no quarto da frente. Cícero chamou a mãe e falou para ela pegar o menino enquanto ele ia ver o que acontecera lá fora.
Mas a avó não conseguiu acordar Victor. Cícero foi ao quarto e carregou o filho até a sala. Quando iam acomodá-lo no sofá, ouviram gritos apavorados do vizinho. Ele dizia para saírem imediatamente da casa. Um cilindro de oxigênio, de 15 metros de comprimento, se desprendera da base, no Hospital São Lucas, do outro lado da estrada. Fora arrastado por pedras que rolaram do alto da montanha.
O cilindro atravessara a pista e caíra no apartamento dos fundos, que ameaçava ruir sob o seu peso.
De camisola e chinelo, Salma arrastou o neto para fora de casa. Precisou pular o portão.
O filho lhe passou a criança por cima da grade. Cícero voltou para buscar o pai, que continuava dormindo, sob o efeito do medicamento. Então o apartamento detrás cedeu, e o cilindro rolou com violência para cima da casa, junto com o que parecia 1 tonelada de lama e pedra. A casa amassou como se fosse de papel, cedeu e ruiu. Os imóveis vizinhos também desabaram.
Cícero escapou por uma porta lateral. O pai ficou preso nos escombros.Sem tempo para chorar, Salma, Cícero e Victor desceram pela rua, fugindo da enxurrada.
Enquanto corriam, uma espessa nuvem branca os envolveu. Ouviram um assobio atordoante do gás que escapava do cilindro de oxigênio. Com medo de explosão, correram mais rápido. Não viam 1 metro à frente. Conseguiram chegar à casa da mãe de Salma, a poucas quadras. Mas ela também ameaçava cair. Continuaram a correr.
Cícero deixou a família na casa de um conhecido, num local mais seguro, e voltou para resgatar o pai. Mas, ao focar a lanterna, viu que não havia mais a menor chance de tirá-lo com vida. Engajou-se num grupo que tentava ajudar. De uma das casas, tiraram uma mulher, mas ela não resistiu aos ferimentos e morreu em seguida.
Durante toda a madrugada, os moradores cavaram no escuro. Era difícil saber quem estava morto ou vivo. Não se sabia o que fazer com os feridos. O Hospital São Lucas, de onde o cilindro se soltara, foi esvaziado: uma rocha caíra sobre ele, matara um funcionário e comprometera a estrutura do prédio.
Quando o dia amanheceu, Salma, sua mãe de 85 anos, Cícero e o neto Victor tomaram a direção do apartamento de Juliana, a 10 quilômetros dali.
Viram, no caminho, feridos deitados sobre o chão barrento, à espera de socorro. Com os pés afundados no lodo até o tornozelo, pisaram em ratazanas mortas, cacos de vidro, lascas de concreto e tijolos. Do alto da estrada, Salma olhou na direção de sua casa. Não existia mais nada. Só destroços. Embaixo deles, jazia seu marido.
Alex, o operário
Para ir da fábrica onde trabalha até sua casa, Alex Fleiman costumava levar quarenta minutos. Mas não se arrependia de ter se mudado, há quatro anos, para Alto Floresta, um morro em Conselheiro Paulino, com a mulher Silmara e o filho Caio, deixando para trás sua antiga casa, em frente à fábrica.
Havia, é certo, problemas: o lugar era uma invasão que crescera desordenadamente e traficantes de drogas ocuparam o seu topo. Mas agora ele vivia numa casa de dois quartos, no terreno da sogra, as ruas eram calçadas, ônibus passavam na porta e a mulher podia levar o filho a pé para a escolinha. Em julho, o casal teve mais um filho, a menina Aicha.
O expediente acabou e Alex desceu a pequena ladeira cercada de verde da fábrica de essências e sabonetes Ubon, onde trabalha há mais de seis anos. Eram cinco e vinte da tarde de 11 de janeiro.
Em casa, depois de jantar, ele foi ao quarto do filho para tocar teclado. O instrumento, comprado à prestação, não era apenas para diversão, mas um meio de reforçar o orçamento. Formara com um amigo uma dupla caipira que se apresentava em clubes de Nova Friburgo e das cidades da redondeza. Alex Fleiman, que pretendia ampliar o repertório, ensaiava enquanto o filho brincava ao seu lado.
Deu-se conta de que a chuva caía com a intensidade de centenas de baldes d’água. Achou melhor levar as crianças para o seu quarto. Acomodou-as na cama, entre ele e a mulher. Antes de dormir, disse a Silmara que colocasse o celular para despertar às três da manhã. Estava preocupado. Temia que as águas pudessem invadir a casa enquanto dormiam.
O celular tocou e ele tateou o interruptor, mas não havia eletricidade. Achou a lanterna e, de calção e chinelo, foi até a frente da casa e viu que o bairro estava às escuras. Voltou para o quarto e acalmou a mulher. Mal acabara de falar e ouviu o estrondo de um trovão, seguido de um grande estalo, um ruído que jamais ouvira.
Uma barreira desabara sobre a casa e derrubara a parede da sala. A terra só não invadira o seu quarto porque fora contida por uma estante. Saltou da cama, pegou o filho nos braços e gritou para que a mulher pegasse o bebê. Conseguiram chegar até a sala, que começava a ser tomada pela lama. Alex Fleiman forçou a porta contra a lama que entrava e escapou com a família para fora de casa.
Andaram até a frente, mas, com as mãos trêmulas e molhadas, o operário não conseguia se haver com a fechadura e destrancar o portão. Precisou de longos segundos até se assenhorar da chave e abri-lo. Na rua, Alex varreu a escuridão com o facho da lanterna. Percebeu, horrorizado, que não fora uma barreira que caíra sobre sua sala, mas sim a casa que ficava acima da sua.
O casal correu pelo breu. As crianças choravam sem parar. De repente, Silmara estancou e gritou. Lembrara-se da mãe e dos irmãos, que moravam ao lado dela. Não poderia prosseguir sem eles.
O marido tentou acalmá-la. Pediu que se afastasse dali com as crianças, enquanto ele voltaria para buscar os outros. “Vai sair todo mundo vivo de lá”, prometeu a ela.
Quando o operário chegou, a casa da sogra estava parcialmente coberta por terra e escombros. A sua própria casa já não existia: era um monte marrom de galhos, troncos e detritos. Com ajuda de um vizinho, entrou por uma janela e chamou pela sogra e pela cunhada no quarto ao lado. Elas falaram que estavam protegidas por um armário. Mas ele não conseguia chegar a elas porque a porta fora bloqueada pela lama. Só havia um jeito de tirá-las dali: através de uma abertura de ventilação na parede, que ligava um quarto ao outro.
Como a sogra relutasse, com medo de ficar presa na fresta, ele lhe disse que, ou bem saíam rápido, ou todos morreriam. Com a ajuda do cunhado, puxou as duas mulheres para o quarto contíguo. E, em instantes, os quatro pularam a janela e ganharam a rua. “Agora vamos correr porque vai desabar tudo”, gritou Alex. O grupo se juntou a Silmara e às crianças, que os aguardavam, e continuou correndo. Logo escutaram o barulho do fim do mundo: casas desabavam lentamente umas sobre as outras, como pedras de dominó em câmera lenta.
Um pastor evangélico conhecido de Alex abriu-lhes sua casa e ofereceu abrigo, roupas e sapatos. Quando clareou, viram que a área onde moravam dera lugar a uma rocha colossal, que ninguém imaginava existir ali. Toda a terra e a vegetação que antes cobriam a rocha haviam deslizado, deixando-a nua, e arrastaram casas, carros e o que mais estivesse pela frente.
O operário e a família deixaram a casa do pastor e continuaram a descida pelas ruas cobertas de barro e entulho. Caio, agarrado ao pescoço do pai, perguntava sem parar: “Aqui está seguro, papai, não vai cair nenhuma casa em cima da gente?” Levaram duas horas para chegar ao centro do bairro, um trajeto que percorriam habitualmente em quinze minutos.
O cenário também era de praga bíblica. O rio Bengalas – que nasce no Centro de Nova Friburgo e atravessa Conselheiro em direção ao norte – transbordara e invadira casas, lojas e o supermercado que abastece o bairro. Móveis, fogões, geladeiras e até carros se amontoavam nas ruas engessadas pela lama. Uma confraria de feridos e mutilados se aglomerava na praça estreita. Mas, assim como depois do terremoto e do tsunami no Japão, ninguém gritava ou se descabelava.
Alex Fleiman queria ir a Córrego Dantas, onde moravam seus parentes. Ele, a mulher e os filhos retomaram a marcha. Ruas e avenidas estavam intransitáveis. Todos os ônibus da cidade tinham ficado presos na garagem da companhia, tomada pela água barrenta. Com os pés afundando na lama fétida, a caminhada foi um suplício. Para onde olhavam, viam destroços e gente vagando, perplexas. Só numa rua, 53 moradores haviam morrido, soterrados.
Em determinada altura, o operário avistou seu irmão mais velho, Anderson, imundo, maltrapilho, com o pavor imobilizando-lhe a face. Anderson correu em sua direção, os dois se abraçaram e choraram. O mais velho também viera a pé procurar o irmão. Contou que a mãe e as irmãs estavam bem, mas tinham perdido as casas. Os tios e primos que moravam perto deles haviam sido soterrados. Todos morreram.
Foram vítimas de um fato surpreendente. Apesar da chuva torrencial, o córrego que dá nome ao bairro, misteriosamente, parou de subir. Achando que o perigo havia passado, os moradores voltaram para suas casas. Então se deu a tragédia. O rio, que ficara represado quilômetros acima pela queda de pedras, árvores e lama, rompeu a barreira e desceu a uma velocidade de mais de 100 quilômetros por hora, trazendo junto todo o entulho acumulado. Foi como se uma represa se rompesse.
Os que tiveram tempo de correr disseram ter visto uma gigantesca onda barrenta engolindo o que havia pela frente.
Em segundos, literalmente, o córrego de pouco mais de 2 metros transformou-se em um rio de 40 metros de largura. Ele destruiu as casas nas margens. Suas águas subiram pelas encostas e minaram a base do morro, provocando o deslizamento de terra que soterrou dezenas de moradores.
Sonia, a professora
Como chovera quase todo o dia, Sonia Kraemer Araújo saíra apenas para visitar a mãe, que morava a uma quadra do seu apartamento, numa das ruas mais aprazíveis do Centro de Nova Friburgo. Na hora em que a tempestade caiu, ela estava só com o marido, Amilton. Nunca teve medo de chuva.
Na infância, quando trovejava, ouvia os adultos falarem que “papai do céu estava limpando a sala e arrastando os móveis”. A casa dos avós, com quem morara durante anos, ficava numa vila de operários da fábrica de rendas Arp, quase todos imigrantes alemães. Algumas vezes, a água invadia a sala e ela se divertia ao ser posta em cima da mesa, até que a chuva passasse.
Mas naquela noite era diferente. Os relâmpagos acendiam o céu a todo instante. O som dos trovões era absurdamente alto – ela sentia o chão tremer sob seus pés. Seu marido se recolheu, tentando dormir, e Sonia Araújo foi rezar.
Não orou para si, sabia que seu prédio estava em segurança, e sim pelos moradores das áreas de risco, que deveriam estar passando por grande aflição naquele momento. Em situações de perigo, pensava: “Vou rezar por alguém. Não sei por quem, mas Deus sabe.”
Sonia e Amilton Araújo são católicos fervorosos. Chegaram a estudar teologia. Descendem das duas principais correntes de imigração que formaram Nova Friburgo. Ele, a dos colonos suíços, católicos. Ela, a de operários alemães, protestantes. Quando tinha 11 anos, Sonia decidiu converter-se ao catolicismo: gostava dos rituais e dos santos. A família não se opôs e ela passou a frequentar a igreja, assiduamente.
Sonia tem a pele muito branca, cabelos louros e olhos azuis, herança da família materna, alemã. E o temperamento apaixonado e passional do pai, espanhol. Já seu marido Amilton é racional, pensa muito antes de falar, bem devagar, e pensa muitíssimo antes de agir. Ela se formou professora e deu aula em escola primária até se aposentar. Ele trabalha como administrador na empresa que construiu o prédio onde compraram o apartamento, no Centro de Nova Friburgo.
Mudaram-se para lá no começo dos anos 70, logo que se casaram. Os três filhos – dois homens e uma moça – nasceram ali e só saíram adultos. Os rapazes costumavam protestar que a irmã ficara com o melhor dos três quartos, o que dava vista para o morro arborizado. Com a mata praticamente intocada, o morro valorizava o imóvel, pois dava um ar campestre no meio da paisagem urbana. A filha, que depois de casada se mudara para um prédio perto do rio Bengalas, dizia que se sua rua inundasse iria se proteger na casa dos pais.
Na semana anterior, como fazia todas as quintas-feiras, Sonia participara do encontro de seu grupo de oração, na catedral de Nova Friburgo. Durante duas horas, catorze pessoas rezaram pela cidade, pelas famílias, pelos que necessitavam de ajuda. Durante a reza, cada integrante do grupo pediu, em voz alta, uma graça especial. Renata, uma jovem bem articulada, casada e mãe de um bebê chamado Nicolas, pediu pelas vítimas de catástrofes. Ninguém entendeu, já que não se lembravam de nenhuma tragédia recente.
Às três e meia da madrugada, ouviu-se uma explosão mais forte que um trovão, seguida de um barulho de desmoronamento. Amilton acordou e tentou acalmar a mulher, que andava de um lado para o outro.
Sonia chegou à janela da cozinha e, de lá, teve a impressão de que faltava um pedaço no sobrado de frente da rua. Começaram a ouvir gritos, abafados pela chuva. Em seguida, chegaram os bombeiros. Da janela, através de uma pesada cortina de água, viram que o caminhão iluminava com os faróis algo que não conseguiam identificar.
Amilton sentou-se no sofá da sala, em silêncio. Sonia continuou perambulando como fera enjaulada. Às seis da manhã, no vai e vem pela casa, ela parou na janela do quarto da filha. Foi quando assistiu a uma cena que imaginou que só veria no cinema.
O morro inteiro, ao lado do seu prédio, começou a se desmanchar. Uma lenta avalanche de barro, árvores e pedras escorreu em direção a sua janela, no 2º andar. Uma densa nuvem de poeira escura brotou do solo. Ela correu para a sala e, com a voz titubeante de pavor, disse: “Jesus, estamos morrendo.” Então ouviu outro ruído infernal. Era outra avalanche.
Embaixo, os moradores da rua começaram a gritar para que deixassem o prédio. Ela colocou uma calça jeans e uma camisa azul que estava sobre a cadeira, enfiou os sapatos, correu para a porta e esperou pelo marido. No corredor, gritava para os vizinhos descerem.
A moradora do andar de cima, uma mulher de 85 anos, passou por ela de robe e sandália, amparada pela filha, portadora de um tumor cerebral. Sonia se deu conta de que o marido não saíra.
Voltou ao apartamento no cúmulo da aflição. Encontrou-o sentado na cama, calçando calmamente as meias e o tênis e juntando os documentos. “Amilton, corre pelo amor de Deus, vai cair tudo.” Desceram os dois pelas escadas às escuras.
Chegaram à rua e viram uma cena do Juízo Final. Dezenas de pessoas de camisola, pijama e roupas de baixo encharcadas choravam e tremiam sob a chuva, aguardando não sabiam o quê. O sobrado antigo, em frente ao seu prédio, tinha sido soterrado. O caminhão de bombeiros também estava debaixo da terra. Fora tragado por um deslizamento e três bombeiros haviam morrido.
A avalanche que ela acabara de presenciar demolira o outro bloco do seu prédio e soterrara dezenas de casas na rua Cristina Ziede, poucos metros acima. O morro desmoronara em duas direções, mas a parte do meio, justamente em frente ao seu bloco, ficara intacta, por isso seu apartamento não fora atingido.
O Hotel São Paulo, a uma pequena distância do prédio, abriu as portas para abrigar os moradores. Os funcionários levavam água com açúcar tentando acalmá-los. Um dos três bombeiros mortos, Sonia ainda não sabia, era o seu primo Vitor Spinelli, de 29 anos, que se apresentara como voluntário. Ele ficara noivo no sábado, após ter sido promovido a cabo.
No porão do sobrado, estavam quatro pessoas: um homem, um bebê e duas mulheres – mãe e filha. As mulheres morreram. A mais moça era Renata, que há uma semana pedira na igreja pelas vítimas de catástrofes. O marido dela, Wellington, e o filho, o bebê Nicolas, de seis meses, estavam debaixo dos escombros.
Rodolfo, o músico
Ele sempre gostou das montanhas. Davam-lhe uma sensação de segurança, de perenidade. É por isso que Carlos Rodolfo Zacarias, apesar de ter nascido e estudado no Rio, passava sempre as férias na casa da avó, em Nova Friburgo. E gostou quando a família resolveu se mudar para a cidade.
Depois de casado, mudou-se para a rua Monsenhor Miranda, no Centro. Seu prédio dava de fundos para a rua Cristina Ziede, um recanto só de casas de classe média alta. No final da rua havia um chalé, do século XIX, onde as crianças da vizinhança, por várias gerações, repetiam a mesma aventura: pular a cerca viva para pegar jabuticaba no pé e correr do caseiro de plantão. A maioria dos moradores vivia lá há anos. Rodolfo Zacarias era amigo de vários deles.
Ele costumava passar o Réveillon em Búzios, com a família da mulher, Cristina, e estendia a folga até meados de janeiro. Mas como o seu grupo musical, Os Bartira, havia agendado um show em Nova Friburgo no dia 8 de janeiro, o casal voltou antes para casa.
Na noite do dia 11, ele foi buscar a mulher na faculdade e a chuva já caía forte. Depois piorou.
Os trovões eram tão altos que tinha a impressão de que o gesso do teto da sala ia desabar. Assim que amanheceu, Zacarias foi à janela. A rua e a calçada tinham virado um lodaçal.
Com a força da água, os paralelepípedos tinham se desprendido e se espalhado por todos os lados. Um vizinho lhe contou que, na madrugada, um pedaço do morro havia deslizado. Às seis e meia, olhou novamente para a rua. Notou a expressão apavorada de um homem.
Na sequência, ouviu gritos e um estrondo tão pavoroso que o seu prédio tremeu. Pensou que um avião caíra.
Sem saber o que acontecera, puxou a mulher e saiu de casa. No corredor, encontrou a vizinha do 5º andar. Ela lhe disse, aos prantos, que vira o morro cair, soterrando uma fileira de casas. No térreo, ao olhar para a rua lateral, Rodolfo viu, mas não acreditou no que via: a rua e as casas haviam desaparecido, engolfadas pelo morro que acabara de desabar.
Rodolfo Zacarias e os vizinhos tentaram ajudar os soterrados. Numa das casas, vivia um amigo, Joel, com a mulher e o filho de 3 anos. Para alcançá-la, tinham que passar pela garagem do prédio vizinho. Se depararam com grades de ferro. Correndo contra o tempo, se puseram a serrá-las com o que tinham à mão: facas de cozinha, martelos e serrotes. Depois de longo tempo, conseguiram abrir uma passagem.
O músico ouviu então a voz de Joel, preso nos escombros. Disse que ele e a mulher, grávida de três meses, estavam bem. E pediu que resgatassem seu filho antes. Zacarias e o grupo cavaram um pouco mais e, finalmente, acharam a criança. Quando a tiraram, ela respirava.
O seu rosto estava coberto de lama e seus lábios, arroxeados. No chão da garagem, tentaram reanimá-lo, mas o menino morreu. Os pais foram levados para o hospital acreditando que o filho sobrevivera. Foram os únicos a saírem vivos do soterramento da rua Cristina Ziede, onde dezenove pessoas morreram.
Dagoberto, o médico
Entre os médicos que dariam plantão na emergência do único hospital público de Nova Friburgo, das oito da manhã daquele 11 de janeiro até as 8 horas do dia seguinte, havia dois pediatras, quatro clínicos e dois cirurgiões, além de um anestesista de sobreaviso.
Até o começo da tarde, o plantão estavarazoavelmente calmo, embora o HospitalRaul Sertã sempre sofra com o excesso de demanda. Destinado a atender a população de Nova Friburgo, de 200 mil moradores, o hospital fica sobrecarregado com o atendimento de doentes das cidades vizinhas.
Às quatro da tarde, soube-se que um prédio desabara no bairro de Olaria, e haveria pelo menos trinta feridos. O chefe do plantão, o pediatra Dagoberto José da Silva, pediu auxílio às outras unidades do hospital. Médicos de outros setores desceram para o térreo, onde funciona a emergência, para reforçar o atendimento.
Quando os bombeiros chegaram, contaram que havia bem menos vítimas do que se previa: o prédio estava praticamente vazio. Morreram o dono do imóvel e uma menina de 7 anos. O irmão da menina sobrevivera e fora levado ao hospital sem ferimentos graves. Aliviado, o doutor Dagoberto voltou às atividades de praxe.
Às onze da noite, houve seguidos cortes de luz no hospital, até que a energia acabou completamente e o gerador entrou em operação. Pouco depois, a água começou a refluir nos ralos. O chefe do plantão, que todos chamam de doutor Dagoberto, foi até a frente do hospital e constatou que o rio transbordara e não havia mais passagem para nenhum veículo. Se fossem chamadas, as ambulâncias não teriam como deixar o prédio. O Raul Sertã estava ilhado.
Ele já vivera situações em que a água ameaçara invadir o hospital. Dessa vez, porém, era mais grave. Em menos de meia hora, a água chegou ao andar térreo. Além da emergência, funcionam ali os serviços de raios x, de tomografia, de endoscopia e de hemodiálise. A farmácia hospitalar, o refeitório, a ortopedia, parte do atendimento pediátrico e a unidade intermediária, destinada aos pacientes em situações graves, mas que não necessitam de CTI, também ficam lá.
O doutor Dagoberto deu ordem para que todos os pacientes fossem transferidos para os andares mais altos. Médicos e enfermeiros desmontaram as camas e transportaram os doentes. Havia sete crianças e 26 adultos em observação na emergência. Mas como o hospital estava praticamente lotado, com 260 pacientes internados, era difícil aacomodação dos doentes do pronto-socorro. A saída foi aproximar as camas uma das outras nas enfermarias.
Quando acabaram a arrumação, não conseguiram retornar ao térreo: a água já subira 1,30 metro. Camas, macas, aparelhos de hemodiálise, de raios x e de tomografia ficaram debaixo d’água, assim como a farmácia e a cozinha.
Ao pedir ajuda, o doutor Dagoberto percebeu que não havia mais comunicação. Telefones fixos e celulares pararam de funcionar. Um lago de lama e lixo se formou em volta do hospital. Com todas as vias de acesso bloqueadas, nenhum ferido foi levado para lá naquela madrugada, embora milhares de pessoas precisassem desesperadamente de socorro.
Somente no começo da manhã os médicos e enfermeiros de plantão no hospital tiveram uma dimensão da tragédia. Pedaços de casas, móveis e carros boiavam no rio ou se amontoavam nas avenidas na frente e nas ruas próximas ao hospital. A poucos metros, várias casas haviam desabado durante a madrugada. Pelo tamanho do estrago, o doutor Dagoberto se deu conta de que, assim que a água baixasse, os feridos começariam a chegar. E ele não teria como atendê-los.
Às oito da manhã, o caos chegou. Caminhões, os únicos veículos que conseguiam atravessar a lama, chegavam lotados de vítimas. Na pressa de prestar socorro, vivos e mortos, feridos graves e superficiais, crianças e adultos foram todos colocados juntos, de qualquer maneira, dentro das caçambas. A todo instante, desembarcavam vítimas com partes do corpo decepadas, com fraturas expostas, e muitas crianças desacordadas ou mortas.
A situação no saguão era dantesca. Filhos gritavam por mães, mães chamavam pelos filhos. Feridos entravam em estado de choque. Famílias inteiras chegavam juntas, muitos deles terrivelmente machucados. Em alguns casos, apenas um sobreviveu.
Os médicos corriam, aparvalhados. As macas eram insuficientes e os feridos foram sendo colocados no chão, sobre colchões e cobertores. Em pouco tempo, os corredores ficaram apinhados. Como a água do hospital fora contaminada pela lama, os doentes eram lavados precariamente com soro fisiológico, para evitar infecção.
O soro tinha que ser racionado porque os médicos não sabiam quantas vítimas mais chegariam. As primeiras reduções de fratura foram feitas sem anestesia porque a maior parte dos medicamentos se perdera na inundação da farmácia.
Além disso, o anestesista que ficara de sobreaviso não conseguira chegar ao hospital. Faltavam medicamentos para atender também aos pacientes já internados. E, com a inundação da cozinha e do refeitório, toda a comida se perdera. Não havia como alimentar ninguém.
No meio da tarde, chegaram medicamentos. Helicópteros e ambulâncias começaram a levar os doentes mais graves para o Rio de Janeiro. Alas de hospitais públicos foram esvaziadas para receber as vítimas de Nova Friburgo. Nos primeiros dois dias, quase 300 feridos foram transferidos do Raul Sertã.
Às seis e meia da tarde, o doutor Dagoberto Silva entrou no centro cirúrgico para ajudar no atendimento de uma criança. A menina, de 4 anos, com o pulmão perfurado e coberta de ferimentos, fora encontrada sozinha. Ela chamava pela mãe e repetia: “A pedra caiu.” Em torno dela, médicos e enfermeiros choravam. Depois de 35 horas de trabalho ininterrupto, o doutor Dagoberto viu que a sua equipe não aguentava mais. Agradeceu a colaboração e mandou-os descansar.
Leonard, o bombeiro
No começo da madrugada de quarta-feira, quando os telefones ainda funcionavam, o Corpo de Bombeiros recebeu 500 chamadas. Não conseguiu atender nem 10% delas. Às sete horas, o médico bombeiro Leonard Eyer pegou a moto para ir ao quartel, onde daria plantão. Deixara o celular ligado, como sempre faz, para casos de emergência. Não recebeu nenhuma chamada. Achou que a chuva da madrugada, apesar de abundante, não fizera tantos estragos.
Mas ao sair de casa, no bairro das Braunes, os vizinhos o alertaram de que não havia passagem para o Centro devido à queda de barreiras. Leonard Eyer pediu ao irmão que lhe emprestasse sua motocross. Ao chegar à rua Augusto Spinelli, achou que uma bomba tivesse sido atirada no morro detrás dela.
E aí viu o caminhão de bombeiros soterrado. Ao lado, um grupo de bombeiros tentava tirar dos escombros um pai e o filho. Eram o marido de Renata, Wellington, e o pequeno Nicolas, o bebê deles de seis meses.
O doutor Eyer não arredou pé dali durante quinze horas, tentando com seus colegas chegar à dupla. No final da noite, conseguiram retirar o bebê Nicolas, que lhe foi entregue sorrindo e sem nenhum ferimento. Logo em seguida, tiraram o pai, Wellington, também vivo.
Até a chegada do Grupo de Resgate e Salvamento, ao meio-dia, vindo do Rio, eram os próprios moradores que se ocupavam do socorro das vítimas. No prédio que se partira na Augusto Spinelli, quase todos estavam fora, de férias. Exceto uma mulher e o filho adolescente. Ao vasculharem as ruínas, os voluntários avistaram uma perna fora da terra. Começaram a cavar em volta e retiraram a mulher. Ela estava viva, muito ferida, e resistia em ser levada ao hospital. Gritava que seu filho continuava soterrado. Quando o encontraram, estava morto.
Por volta das dez da manhã, um amigo do músico Carlos Rodolfo Zacarias trouxe uma retroescavadeira de sua empresa para escavar a montanha de terra na rua Cristina Ziede. Assim que a pá gigante enterrou no solo e voltou à tona, trouxe junto um corpo ensanguentado. Chocado, o dono da máquina não teve mais condições de ajudar.
Numa outra casa, os voluntários ainda tentaram retirar um morador com vida. Seu neto escapara porque fora cuspido para a rua. Mas o avô, que estava na parte térrea da casa, foi encontrado agachado, com a coluna quebrada. Ele olhou para os voluntários e morreu em seguida.
O doutor Eyer ficaria durante mais vinte dias dormindo no quartel, pouco mais que três horas por noite, em colchonetes espalhados pelo chão. Os bombeiros só se desmobilizaram quando tiveram a certeza de que não havia mais corpos a serem resgatados. Em seus quinze anos de serviço, nunca viu tamanho horror.
Quando Edemilson da Silva, com um talho profundo na mão, rasgada pelo arame farpado que segurou quando salvou os filhos, chegou aos escombros onde a família de Claudinho havia sido soterrada, se espantou ao ouvir um fraco pedido de socorro: Cláudio e o filho Alef estavam vivos. Sua mulher, Adriana, a filha Franciele e a sobrinha Samara haviam morrido. Cláudio pediu que se esquecessem dele e tirassem o filho, muito machucado.
Alef foi colocado num carro, no colo de uma moradora, para ser levado ao hospital. Na estrada, veio o desespero: o caminho estava bloqueado. O policial que se aproximou para falar que não havia passagem tocou o peito de Alef. Percebeu que os ossos estavam todos quebrados. E, mortificado, avisou que não conseguiriam chegar a Nova Friburgo. Alef olhou para o policial e morreu.
Ainda na estrada, Edemilson da Silva viu o morador de um condomínio de classe média alta, do outro lado da montanha, chegar com a filha de 3 anosno colo. Viera com ela no meio da lama, em busca de socorro. A menina respirava. O homem esperou um longo tempo pelo socorro que não veio. A filha morreu nos seus braços.
Com tantos feridos à sua volta, uma enfermeira de Prainha arrombou a porta do laboratório desativado e montou um abrigo. Fazia os curativos com os poucos recursos que descobrira. Ao ser levada para lá, no final da manhã, Raquel, a filha de Edemilson, tinha cortes profundos pelo corpo. Parte da coxa e das nádegas estava em carne viva. Sem chorar, apesar da dor lancinante, ela limitou-se a dizer para a mãe, enquanto lhe faziam um curativo: “Deus não é bom. Se fosse, não teria feito isso comigo.”
João, o farmacêutico
Com os pés cortados por cacos de vidro, Victor Gomes foi com a avó, Salma, tomar vacina antitetânica. O médico que o atendeu disse que ele tivesse coragem, porque a vacina doeria. O menino respondeu: “O senhor viu o seu avô morrer? O senhor viu a casa da sua avó cair? O senhor andou no meio da lama cheia de rato e caco de vidro? O senhor acha que eu vou ter medo dessa vacina? Eu vim para esse mundo para sofrer.”
O farmacêutico João Urbano foi à prefeitura levar dois sacos com amostras grátis de remédios. Ao voltar mais tarde, para trabalhar como voluntário, viu os sacos jogados no chão. Percebeu que não havia ninguém cuidando dos medicamentos. Arrumou uma mesa na farmácia e foi separando um a um. Dois dias depois, tinha uma estante lotada de remédios doados. Passou a fornecê-los para os hospitais e para os moradores. Em dez dias, mais de 3 mil pessoas foram atendidas na sua farmácia.
Numa manhã, o farmacêutico atendeu um senhor.
Ele vinha com duas crianças pequenas pela mão, suas netas, que precisavam de medicamento. João Urbano lhe forneceu os remédios e disse para que ele lesse as instruções antes de dá-los às meninas. O homem pediu-lhe que, por favor, explicasse como proceder. Não tinha condições de ler nada. Contendo as lágrimas, ele explicou que perdera o filho e a nora, pais das crianças.
O enterro tinha sido na véspera. Mas acabara de receber uma ligação dizendo que ele precisava voltar ao cemitério. Uma chuva desenterrara os caixões. Ele teria que enterrar o filho novamente. João Urbano fez o que ele lhe pediu. Quando o homem saiu, o farmacêutico sentou-se em um canto da farmácia e chorou.
Na quinta-feira, dois hospitais de campanha, um da Marinha e outro do Corpo de Bombeiros, foram instalados na cidade, um na praça e outro na prefeitura. Um grupo de médicos voluntários se apresentou para dar assistência aos abrigos e foi recebido por uma representante do Ministério da Saúde, especializada em atendimento a desastres. Ela lhes disse: “Só de vocês chegarem de branco ajudará a tranquilizar as vítimas. Ao verem vocês, saberão que não estão desamparados.”
O desamparo era a sensação dominante. O prefeito, com problemas de saúde, estava afastado do cargo. Seu grupo político é inimigo do vice-prefeito, Dermeval Barboza Moreira Neto, que, ao assumir o posto, trocou todo o secretariado. Sem saber como agir, Moreira saiu de cena. O comando da cidade foi entregue, na prática, a um forasteiro, o vice-governador Luiz Fernando Pezão.
Mais de 200 corpos foram resgatados nos dois primeiros dias. Mas o Instituto Médico Legal estava desativado há seis meses, por ordem judicial, por falta de condições de higiene. Os cadáveres foram levados para o ginásio esportivo de uma escola, o Instituto de Educação de Nova Friburgo.
Lá, os corpos eram envolvidos em cobertores ou postos em sacos plásticos. Alguns estavam completamente mutilados. Havia muitas mulheres mortas abraçadas a suas crianças. Quem fosse procurar parentes precisava abrir, um a um, os sacos ou desenrolar os cobertores. A advogada Juliana Almeida foi fazer o reconhecimento do seu ex-sogro, Gilson Gomes. Não teve dificuldade em encontrá-lo porque um dos voluntários o conhecia. Ao contemplá-lo, achou que ele estava com o rosto tranquilo de quem morrera dormindo.
Nova Friburgo se transformara totalmente. A igrejinha de Santo Antônio, um marco na cidade, fora destruída por uma barreira, assim como o teleférico e a praça do Suspiro, em volta dela. A praça Getúlio Vargas e a avenida Alberto Braune – artérias centrais – estavam atulhadas de lama e lixo. Todas as lojas ficaram fechadas. Caminhões do Exército circulavam pelas ruas e helicópteros cortavam o céu. Parte das casas continuava sem luz, os telefones seguiam mudos e o fornecimento de água fora interrompido. Quando o sol surgiu, uma poeira seca e malcheirosa empesteou as ruas.
A população passou a usar máscaras.
Sonia Araújo e o marido Amilton se abrigaram na casa de um casal de amigos. Levaram para lá a filha, Ingrid, e o genro, Alexandre. Assustada, Sonia não queria se afastar da família. Na sexta-feira, saiu com a filha para comprar remédios. Quando chegaram à farmácia, viram passar um carro do Bope com um policial de megafone em punho, anunciando: “População de Nova Friburgo, procure as áreas mais altas porque uma represa se rompeu e a água vai invadir a cidade.”
Em menos de um minuto, uma multidão apavorada corria pela avenida Alberto Braune. Pessoas caíam e eram pisoteadas por quem vinha atrás. Carros aceleravam em direção à saída da cidade ou aos bairros altos. Sonia e a filha correram sem saber para onde, seguindo os outros. Com o joelho machucado, o esforço era penoso. Um voluntário lhes disse para entrarem no prédio e aguardarem no telhado. Lá ficaram elas.
Alex Fleiman, a mulher e o filho estavam na praça Getúlio Vargas, providenciando documentos que substituíssemos que perderam. Quando ouviu a gritaria, Alex pegou o filho no colo e correu com a mulher para o morro do Cemitério, a seis quadras. Silmara, extenuada, disse para ele ir com a criança que ela os encontraria depois. Caio chorava. Alex viu um carro do Bope com a porta aberta e pediu que levassem o menino. O policial deixou que ele também entrasse e os levou para o alto do morro.
Salma Gomes, os filhos, os netos e a ex-nora iam ao enterro de Gilson. Ao chegarem à entrada do condomínio, a mais de 5 quilômetros do Centro, o porteiro avisou para voltarem por causa do rompimento da represa.
Em Olaria, longe do Centro, Amilton Araujo e o genro Alexandre faziam compras no supermercado quando souberam que a represa havia se rompido. Se olharam perplexos. Que represa?, se perguntaram.
O coronel Roberto Robadey estava no salão azul da prefeitura, junto com o comando da Marinha, do Exército e representantes do governo estadual quando ouviu os gritos na rua e foi avisado do rompimento da represa. Não existe represa perto de Nova Friburgo, só podia ser trote. E teve noção do estado de fragilidade psicológica da população para se desesperar daquela forma. Para os moradores, depois da tempestade, tudo podia acontecer. O coronel ordenou que todos os carros de polícia e da Defesa Civil desfizessem o engano.
Claudio, o geólogo
Pesquisador da Pontifícia Universidade Católica carioca e funcionário do Departamento de Recursos Minerais, o geólogo Claudio Amaral mal dormira na terça-feira. Antes de se deitar, consultara o Instituto de Meteorologia e vira que o índice de chuvas na Região Serrana estava muito acima do normal.
Às quatro e meia da manhã, saiu da cama e foi direto para o computador consultar a meteorologia. Viu, horrorizado, que o índice de chuvas em Nova Friburgo havia chegado aos 90 milímetros em apenas quatro horas. Ligou para Tassio Vargas, seu colega na PUC, que coordena com ele um grupo de prevenção de catástrofes. Fez-lhe o seguinte comentário: “Tassio, Friburgo babou.” O outro entendeu que uma grande catástrofe se abatera sobre a cidade. Combinaram que parte do grupo se deslocaria para lá rapidamente.
O trabalho do grupo da PUC é mapearas áreas de maior risco para evitar que novas vidas se percam. Com a ajuda de um helicóptero da Petrobras, Claudio Amaral e outros fizeram fotos das áreas deslizadas. E definiram as que apresentavam risco de novos desabamentos para que quem ainda estivesse lá fosse tirado logo. Avisaram a prefeitura, mas nada foi feito. Amaral se assustou ao perceber que Nova Friburgo estava sem comando.
Naquela noite, segundo um estudo da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia, a Coppe, nuvens de até 14 quilômetros de extensão se formaram sobre a região serrana e desabaram, com mais intensidade, sobre Nova Friburgo. A cidade, no meio de um vale, é mais vulnerável porque, ali, ou se mora na beira do rio ou na encosta.
A chuva teve proporções inimagináveis. Mas boa parte do estrago e das mortes se deu por razões conhecidas há décadas: ocupação desordenada dos morros, desmatamento das encostas, assoreamento dos rios, falta de um plano de contingência para retirar os moradores em dias de chuva.
Amaral olhava do helicóptero para aquele desastre e pensava nos tantos que ainda iriam ocorrer no futuro, por puro descaso. Um estudo feito pelo seu grupo mostrava que no Brasil há um atraso de cinquenta anos na prevenção de catástrofes. Ainda que se comece agora a fazer um programa – necessário e caro – de remoção de moradores, de recuperação de encostas e de dragagem de rios, ainda se levará meio século para que chuvas como a do último verão não provoquem tantos danos.
Outros técnicos descobriram que os deslizamentos produziram um volume de terra de 80 milhões de metros cúbicos. No terremoto do Chile, no ano passado, foram 20 milhões de metros cúbicos, que ainda estão sendo retirados. Para se remover a terra em Nova Friburgo seriam necessárias 16 milhões de viagens de caminhão.
A cidade ainda não definiu onde colocar o entulho. A terra deslizada está contaminada por óleo, restos de corpos, lixo. Uma chuva mais forte pode desviar essa montanha de terra para os rios da cidade e contaminá-los. Com a destruição de estradas, escolas, pontes e casas, o prejuízo da Região Serrana chega a 2 bilhões de dólares.
Até agora, não se sabe o que fazer com os desabrigados. Em Nova Friburgo, nenhuma nova casa foi construída para abrigá-los. Nenhum plano de recuperação foi ainda apresentado. A economia da cidade, com as perdas da indústria, do comércio e do turismo, encolheu.
Ninguém, entre as dezenas de milhares de feridos, ou os 12 mil que perderam suas casas, ou os familiares dos 440 que morreram, recebeu qualquer indenização. Nenhuma autoridade foi responsabilizada ou perdeu o emprego. Não houve nenhum protesto.
Quatro meses após a tempestade, Alex Fleiman ainda mora de favor na casa da cunhada. O aluguel social não foi liberado. Quase que diariamente sua mulher e sua sogra vão à antiga rua. Elas não se conformam de terem perdido as casas. Numa dessas visitas, Silmara ligou eufórica para o marido e disse: “Sabe o que eu achei aqui? Seu teclado. Está destruído, mas achei que você gostaria de guardar parte dele.”
Sonia e Amilton Araújo aguardam a definição do laudo para saber se poderão voltar ao prédio. Quando tiveram licença para pegar, rapidamente, alguns de seus pertences no apartamento, os filhos lhes fizeram um pedido. Queriam que trouxessem álbuns de fotos. “É a nossa história que está lá”, disse um deles. “O resto se reconstrói.”
Salma Salles Gomes, o filho e o netose mudaram para uma casa ao lado da filha. Lá, Victor viu na internet fotos da casa destruída onde aparecia um barco de brinquedo, que julgara destruído. Ficou feliz de ver que o brinquedo se salvara. Um vizinho o recolheu e o entregou ao garoto. Victor passou uma tarde lavando e cuidando do barco. Ainda espera encontrar o controle remoto.
Carlos Rodolfo Zacarias retomou os ensaios. Ainda sofre com crises de pânico ao se lembrar das cenas que viu durante os quinze dias em que trabalhou como voluntário. Sua mulher está grávida de quatro meses.
O doutor Dagoberto da Silva voltou a atender no consultório. Sua maior preocupação é com o trauma de seus pequenos pacientes. Muitos não querem voltar à escola porque perderam amigos. Outros se apavoram a qualquer ruído de trovão.
APrainha continua abandonada. Ninguém apareceu para tirar os entulhos. O encanamento de água se rompeu e os moradores temem a contaminação da água pelo esgoto. Edemilson da Silva pediu aos operários que trabalham na remoção de entulhos que, pelo menos, tirassem a carcaça de um fusca que, levado pela enxurrada, estacionara na frente da sua casa.
Os operários a empurraram para o terreno ao lado. Numa manhã de abril, o caçula Gabriel, ainda com cicatrizes nas pernas, brincava de motorista do carro. As outras crianças se fingiam de passageiros.
12 de janeiro de 2013
Consuelo Dieguez
Revista Piauí
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