"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 12 de janeiro de 2013

O QUE MOSTRA O FILME?

Dizem que quando morremos vemos um filme de nossas vidas. Um resumo preciso e inexorável de tudo o que fizemos de bom e de lastimoso surge numa tela, revelando as coisas inconfessáveis que escondemos dos outros e de nós mesmos.

Imaginar que o rito de passagem para o outro mundo, que a última peça do nosso "trânsito em julgado" consiste em assistir à nossa vida como uma "fita de cinema" é, no mínimo, deslumbrante.

Se tudo é concluído com um filme, estamos todos sujeitos, também no além, a interpretações. Se a vida é um filme, nenhuma vida pode se reduzir a uma verdade única, pois todas são dotadas de abundantes pontos de vista.

A hipótese é interessante porque o cinema se abre a muitas verdades e eu estou seguro de que a nossa maior tarefa nesta vida é a responsabilidade de interpretar o que - nesta fantasia - continua depois da morte. A vida, como a fita, asseguram e reiteram que somos seres em busca de interpretações responsáveis.

Na cosmologia Católica Romana, mas não na luterana e na calvinista, podemos seguir para três e não dois, e apenas dois, lugares: céu ou inferno. O purgatório, que relaciona mortos e vivos, figura como um ponto intermediário, ao lado do limbo - esse não lugar inventado séculos antes da antropologia de Marc Augé. Uma paragem cujos oradores não têm filme!

De qualquer modo, a peça final desse "trânsito em julgado" é um grandioso ato interpretativo no qual os nossos advogados de defesa e intérpretes (chamados trivialmente de anjos da guarda e santos da nossa devoção) estarão a postos para arguir a nosso favor junto ao filme revelado.

Num inquérito antigo, a maioria estava convencida de que ia para o purgatório. O culto das almas do purgatório tem muitos devotos. Há quem se esqueça que você está queimando; mas há quem se lembre de você e, interpretando sua vida positivamente, reza por sua alma, poupando-lhe alguns milhares ou milhões de anos de fogueira.

No nosso catolicismo ibérico e relacional, o purgatório é a terra das interpretações, o paraíso da crítica, o lugar privilegiado dos tribunais e um grandioso festival de cinema. Por isso eu digo que o mais importante nesta vida não é acumular dinheiro e poder, mas atuar em histórias que possam render um Oscar.

Todo filme revela coisas insuspeitas. Você pensava que o pecado era leve, mas o filme revela detalhes de uma má-fé surpreendente. O gesto, a voz e as mãos mostram, na fita, a sua maldade esquecida. Exprimem e denunciam intenções que fazem parte do inconsciente do inconsciente. Sim, porque neste plano, o querer faz parte de um desejo e o desejo faz parte de uma intenção e a intenção - que é parte de sua circunstância de vida - revela-se truncada pela mendacidade. Essa mendacidade que recusa o bom senso sem o qual não se vive debaixo da lei.

No filme final vemos tudo. Na vida terrena, esse mundo que inventa o cronista e a arte em geral, cada qual enxerga um pedaço. Sem a liberdade de todas as vozes, não se chega aos fatos, contados sempre de um só lado e por isso tidos como ficção. O problema, porém, é que os santos, os poetas e os filósofos descobrem contradições nos mandamentos. A igualdade pode ser incompatível com a liberdade do mesmo modo que o egoísmo, sem o qual não há autoestima, pode ser o fim do altruísmo e da caridade. Há casos de suicídio por amor e de santificação por meio do adultério. Que falem alguns livros do grande Graham Green.

As múltiplas interpretações inventam críticos, hermeneutas, juízes e tribunais que, não obstante, podem também errar, mas a quem atribuímos, como os árbitros de futebol, uma decisão - sem trocadilho - relativamente arbitrária. Pois quem merece mesmo ir para o inferno, exceto uns poucos f.d.p? E o que é o destino senão um conjunto de erros com pessoas certas e de acertos com gente errada? Se o homem se faz a si mesmo como ainda supomos - e se a neurociência deixar -, alguma instituição tem que cortar o nó. E essa instituição não pode ser um ator interessado em escamotear papéis. Caso isso ocorra, o palco desaba!

Termino com uma nota simples, clara e feliz. Quero externar minha alegria por ter de volta o Luis Fernando Verissimo, que quase viu esse filme.


12 de janeiro de 2013
Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo

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