Dizem que
quando morremos vemos um filme de nossas vidas. Um resumo preciso e inexorável
de tudo o que fizemos de bom e de lastimoso surge numa tela, revelando as coisas
inconfessáveis que escondemos dos outros e de nós mesmos.
Imaginar que o
rito de passagem para o outro mundo, que a última peça do nosso "trânsito em
julgado" consiste em assistir à nossa vida como uma "fita de cinema" é, no
mínimo, deslumbrante.
Se tudo é concluído com um filme, estamos todos sujeitos, também no além, a interpretações. Se a vida é um filme, nenhuma vida pode se reduzir a uma verdade única, pois todas são dotadas de abundantes pontos de vista.
A hipótese é interessante porque o cinema se abre a muitas verdades e eu
estou seguro de que a nossa maior tarefa nesta vida é a responsabilidade de
interpretar o que - nesta fantasia - continua depois da morte. A vida, como a
fita, asseguram e reiteram que somos seres em busca de interpretações
responsáveis.
Na cosmologia Católica Romana, mas não na luterana e na
calvinista, podemos seguir para três e não dois, e apenas dois, lugares: céu ou
inferno. O purgatório, que relaciona mortos e vivos, figura como um ponto
intermediário, ao lado do limbo - esse não lugar inventado séculos antes da
antropologia de Marc Augé. Uma paragem cujos oradores não têm filme!
De
qualquer modo, a peça final desse "trânsito em julgado" é um grandioso ato
interpretativo no qual os nossos advogados de defesa e intérpretes (chamados
trivialmente de anjos da guarda e santos da nossa devoção) estarão a postos para
arguir a nosso favor junto ao filme revelado.
Num inquérito antigo, a
maioria estava convencida de que ia para o purgatório. O culto das almas do
purgatório tem muitos devotos. Há quem se esqueça que você está queimando; mas
há quem se lembre de você e, interpretando sua vida positivamente, reza por sua
alma, poupando-lhe alguns milhares ou milhões de anos de fogueira.
No
nosso catolicismo ibérico e relacional, o purgatório é a terra das
interpretações, o paraíso da crítica, o lugar privilegiado dos tribunais e um
grandioso festival de cinema. Por isso eu digo que o mais importante nesta vida
não é acumular dinheiro e poder, mas atuar em histórias que possam render um
Oscar.
Todo filme revela coisas insuspeitas. Você pensava que o pecado
era leve, mas o filme revela detalhes de uma má-fé surpreendente. O gesto, a voz
e as mãos mostram, na fita, a sua maldade esquecida. Exprimem e denunciam
intenções que fazem parte do inconsciente do inconsciente. Sim, porque neste
plano, o querer faz parte de um desejo e o desejo faz parte de uma intenção e a
intenção - que é parte de sua circunstância de vida - revela-se truncada pela
mendacidade. Essa mendacidade que recusa o bom senso sem o qual não se vive
debaixo da lei.
No filme final vemos tudo. Na vida terrena, esse mundo
que inventa o cronista e a arte em geral, cada qual enxerga um pedaço. Sem a
liberdade de todas as vozes, não se chega aos fatos, contados sempre de um só
lado e por isso tidos como ficção. O problema, porém, é que os santos, os poetas
e os filósofos descobrem contradições nos mandamentos. A igualdade pode ser
incompatível com a liberdade do mesmo modo que o egoísmo, sem o qual não há
autoestima, pode ser o fim do altruísmo e da caridade. Há casos de suicídio por
amor e de santificação por meio do adultério. Que falem alguns livros do grande
Graham Green.
As múltiplas interpretações inventam críticos, hermeneutas,
juízes e tribunais que, não obstante, podem também errar, mas a quem atribuímos,
como os árbitros de futebol, uma decisão - sem trocadilho - relativamente
arbitrária. Pois quem merece mesmo ir para o inferno, exceto uns poucos f.d.p? E
o que é o destino senão um conjunto de erros com pessoas certas e de acertos com
gente errada? Se o homem se faz a si mesmo como ainda supomos - e se a
neurociência deixar -, alguma instituição tem que cortar o nó. E essa
instituição não pode ser um ator interessado em escamotear papéis. Caso isso
ocorra, o palco desaba!
Termino com uma nota simples, clara e feliz.
Quero externar minha alegria por ter de volta o Luis Fernando Verissimo, que
quase viu esse filme.
12 de janeiro de 2013
Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo
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