Artigos - Direito
Nosso papel é tentar abolir essa escravidão não percebida do indivíduo ao estado, mostrando a esses pobres coitados aparentemente felizes que na verdade eles não são felizes, porque ninguém pode ser feliz se for privado de suas liberdades individuais.
“Nada é tão desalentador como um escravo satisfeito". A frase, postada anteontem no Facebook, atribuída ao famoso anarquista mexicano Ricardo Flores Magón (1874-1922), por me levar a pensar no quanto é tristemente verdadeira, me deu a ideia que procurava para minha postagem de hoje.
Nunca me considerei um anarquista. No plano da filosofia política, estou mais para um, vamos dizer assim, minarquista conservador (se é que existe tal coisa). Minarquista porque concordo com os que acham que o papel do estado não pode ser mais do que assegurar os direitos negativos dos indivíduos, ou seja, garantir que estes não sofram coerção física e moral, inclusive por parte do estado.
E conservador no sentido de que, embora defenda o estado laico, sei que isso não significa estado ateu e luto pela tradição moral judaico-cristã, o que me leva a rejeitar, tanto pela fé como pela razão – já que ambas sempre caminharam juntas - muitas propostas de "transformações" da sociedade, como as tentativas de mudar artificialmente e por decretos a ordem espontânea que gerou a família, legalizar o aborto, o casamento de pessoas do mesmo sexo, as drogas pesadas, as políticas afirmativas, etc.
Aceito como funções do estado a segurança (interna e externa) e a justiça, não mais do que isso. Sou, portanto, um defensor do chamado estado mínimo, o que me afasta dos chamados anarco-capitalistas, embora reconheça que me aproximo bastante deles quando sustentam que as minarquias tenderiam com o tempo a se transformar, pelo elemento coercitivo inerente ao estado, em estados tradicionais.
Mas ainda creio, talvez ingenuamente, que mecanismos corretos de contenção de poder poderiam impedir essa tragédia (um deles poderia ser as chamadas instituições intermediárias entre indivíduos e estados, na linha da filosofia do chamado movimento focolares).
Em outras palavras, concordo totalmente com Rothbard em teoria quando ele diz que o estado é nosso inimigo, pois seus argumentos são irrefutáveis.
Mas penso em termos práticos que, já que não nos é possível acabar com esse inimigo nem convencê-lo a se tornar nosso amigo, então devemos lutar para transformá-lo em adversário, por saber que ter um adversário é sempre melhor (ou menos ruim) do que ter um inimigo.
Não tenho a menor simpatia por nenhuma das classificações do tipo liberal, libertário, neoliberal, novoclássico, minarquista, anarquista, anarco-capitalista, conservador e outras, porque acho que todas nos amarram a padrões fixos de um tipo ou de outro.
Na verdade, creio que sou um pouco disso tudo, mas meus dois traços mais fortes creio serem a minarquia e o conservadorismo.
O que importa, para mim - em termos teóricos também, mas principalmente em termos práticos, é a redução do tamanho do estado moderno, esse gigante engolidor de tributos e escravizador de indivíduos.
A única categorização que aceito com orgulho e na qual creio me encaixar perfeitamente é a de ser um economista da Escola Austríaca, mas no plano da filosofia política procuro fugir de qualquer carimbo para ser eu mesmo, para ter independência, para desfrutar de vida própria, para ter, enfim, a liberdade de criticar sem medo.
É claro que a frase do anarquista Magón me tocou porque prezo a liberdade individual como um valor de que não podemos abrir mão.
Liberdade econômica, política e de consciência, mas liberdade entendida em um contexto de indivíduos vivendo - queiram ou não! -, dentro de uma sociedade, o que torna sua liberdade, como a chama o antropólogo espanhol Juan Luis Lorda, uma liberdade sitiada: ninguém, em sã comsciência, por exemplo, pode sair nu pelas ruas, simplesmente porque não pode, porque isso já está estabelecido pelos usos, costumes e tradições.
Liberdade, portanto, não é, como acreditam alguns libertários ingênuos e despreparados, se arvorar o direito de fazer o que der na veneta, mas sim ser livre vivendo de acordo com os princípios morais e éticos que ordenam a vida em sociedade, que aquele antropólogo define como "a arte de viver bem”.
Feitas essas ligeiras divagações, voltemos a Magón e sua feliz frase. Vou modificá-la um pouco, para "Nada é tão desalentador como um escravo satisfeito e que não se dê conta de sua condição de escravo".
Quando alguém perde sua liberdade e não mostra insatisfação com isso porque não consegue perceber que é tratado como escravo, é mesmo de desanimar qualquer um que preze a liberdade e que deteste a estupidez! Você perguntará, talvez, "mas será possível alguém perder sua liberdade, não perceber isso e ainda assim se mostrar satisfeito"?
A resposta é: sim, porque existem os homens-toupeiras e basta olhar para as sociedades modernas para ver que existem mesmo! Vamos dar uma dezena de exemplos do Brasil, mas que são válidos, com pequenas alterações de país para país, para praticamente todos eles.
(1) Você trabalha até o final de maio para pagar os tributos dos publicanos insanos (ou coletores impostores) do estado;
(2) você não tem segurança nem justiça: dois exemplos disso são o da moça que foi atingida por uma bala perdida no ônibus em que ia trabalhar no bairro do Lins de Vasconcelos, no Rio, e veio a falecer e o de uma famosa CPI recente que inocentou um conhecido acusado de corrupção, ligado a poderosos, que foi solto imediatamente;
(3) mesmo paganto tributos descomunais, você não tem acesso a bons serviços (por favor, não pensem que estou entre os que acham que, desde que esses serviços sejam “bons”, podemos aceitar elevadas cargas tributárias). Dois exemplos disso foram a fila, mostrada na televisão, dobrando o quarteirão em um hospital carioca no bairro de Bonsucesso, apenas para marcar consultas em um hospital público e o deste Natal, em que uma menina de dez anos, atingida na cabeça por uma bala perdida no subúrbio da Piedade foi levada pelos pais ao hospital Salgado Filho, também do governo, no Méier, e ao chegar lá não havia um neurocirugião, porque o que havia sido escalado para o plantão na noite de Natal simplesmente faltou, o que fez com que a pobre criança tivesse que esperar quase dez horas para ser atendida por um especialista requerido pela gravidade de seu ferimento.
Por essa razão, quem tem alguns recursos, embora seja descontado para uma “saúde pública” que só existe na cabeça dos adoradores do estado, precisa pagar por um plano de saúde privado;
(4) se você se aposentar pela previdência estatal compulsória, estará condenado a viver o resto de seus dias - e noites - à míngua. Por isso, quem pode (e também quem não poderia, mas corta aqui e ali para poder), além de pagar pela previdência compulsória, paga também por um plano privado de aposentadoria;
(5) se você não entregar a sua declaração de imposto de renda até o dia 30 de abril, receberá a chicotada de uma multa e terá como castigo oito chibatadas de uma só vez, já que desobedeceu a seu senhor - o estado –, as de perder o direito ao parcelamento em oito vezes.
E, se esquecer de declarar algum rendimento, será caçado impiedosamente pelos capitães do mato de seu senhor, que lhe arrancarão até o último centavo de suas algibeiras. As reportagens na TV, como sempre, entrevistam pascácios felizes da vida porque se anteciparam à correria de última hora e incentivam todos a preencherem logo aquelas malditas declarações, não deixando para fazer isso nos últimos dias do prazo decretado pela hiena do imposto de renda (o leão é um animal nobre e não merece ser comparado ao fisco);
(6) se você quiser abrir uma empresa, por menor que seja, é tratado pelo estado com total desconfiança e terá que provar ser honesto e passar por uma via crucis burocrática até que seu senhor autorize a abertura do seu negócio. Uma vez aberto, receberá frequentes visitas dos feitores-fiscais do seu senhor, para ver se está recolhendo direitinho o que lhe deve;
(7) se você desejar transportar, por exemplo, o seu neto de cinco anos em seu carro e este não for equipado com aqueles banquinhos obrigatórios, seu senhor o multará impiedosamente;
(8) se você parar o seu carro em um sinal vermelho durante a noite, em uma cidade perigosa, a probabilidade de ser assaltado por marginais é alta, mas se você não parar essa probabilidade será de 100%, porque seu senhor ali mandou instalar um pardal cuja função é não mais do que arrecadar;
(9) se você não gosta do tipo de educação que seu senhor impõe às escolas e quiser educar seus filhos em casa, será levado acorrentado da senzala até a barra dos tribunais;
(10) como disse o recém-falecido Joelmir Beting com o bom humor inteligente que o caracterizava, “Se você entrar na farmácia tossindo , paga 34% de imposto; se entrar latindo, paga só 14%”, pois a taxação sobre os medicamentos para nós, seres humanos, é mais do que o dobro da taxação sobre os produtos veterinários.
Dei apenas dez exemplos, mas poderia dar, sem exagero, centenas.
Os brasileiros são escravos do estado prepotente, contraproducente, confrangente, oprimente, intransigente, incompetente, repelente, incongruente e que impõe a seus escravos uma droga estupefaciente, de efeito analgésico e euforizante e que pode provocar dependência, a ponto da maioria dos escravos simplesmente não saberem viver sem ela.
Muitos deles chegam ao cúmulo de se apaixonarem por seu algoz, em uma síndrome de Estocolmo estatista.
Por isso, nosso papel, antes de partir para a abolição completa do estado pretendida pelos anarco-capitalistas mais radicais, é tentar abolir essa escravidão não percebida do indivíduo ao estado, mostrando a esses pobres coitados aparentemente felizes que na verdade eles não são felizes, porque ninguém pode ser feliz se for privado de suas liberdades individuais.
Porque eles são escravos, mas poucos dentre eles percebem isso. Amam o estado, por isso não acreditam que são permanentemente traídos por ele. Serão os últimos a saberem.
E a maioria segue na senzala, mas feliz da vida. Escravos, mas satisfeitos, jogando caxangá. Bobos alegres.
03 de janeiro de 2013
Ubiratan Iorio
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