Na Câmara dos Deputados foi retomada a discussão a respeito do projeto de lei nº 5.921/2001, que proíbe qualquer comunicação mercadológica destinada a crianças. De acordo com o projeto, entende-se por comunicação mercadológica: “toda e qualquer atividade de comunicação comercial para a divulgação de produtos e serviços independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado”, o que abrange “a própria publicidade, anúncios impressos, comerciais televisivos, ‘spots’ de rádio, ‘banners’ e ‘sites’ na internet, embalagens, promoções, ‘merchandising’ e disposição dos produtos nos pontos de vendas”.
Há mais de onze anos pendente no Legislativo, o resgate do projeto reacende a polêmica em torno da questão: de um lado, a defesa de um marco legal para a proteção da infância; por outro, o repúdio à intervenção estatal em nome da autorregulamentação do setor da publicidade dirigida ao público infantil.
Na falta de legislação específica, a fiscalização da propaganda endereçada às crianças cabe ao Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária).
Qual seria o regime mais adequado à proteção da infância? Seria razoável a imposição de limites à publicidade infantil? Isto significaria uma restrição arbitrária à liberdade de comércio? Como equilibrar os direitos das crianças com a liberdade empresarial?
A comunicação mercadológica dirigida às crianças é aquela que faz uso de cenários fantasiosos, cores, músicas, personagens infantis e crianças modelos protagonizando os filmes publicitários.
Pesquisas comprovam o impacto da propaganda endereçada à criança: contribui para a obesidade infantil (e outros distúrbios alimentares e doenças associadas); a erotização precoce; o estresse familiar; e a violência.
Dados do Painel de Televisores do Ibope de 2007 revelam que as crianças brasileiras, entre 4 e 11 anos, passam em média 5 horas por dia em frente à TV — mais tempo do que passam na escola (em média 4 horas). O desafio é evitar que a publicidade tenha mais influência no desenvolvimento infantil do que a própria educação.
Em países desenvolvidos com forte tradição democrática — como a Suécia e Alemanha —, a restrição à publicidade que se dirige às crianças não contou com a resistência das empresas, sob a alegação de suposta afronta ao direito à liberdade de expressão do setor econômico.
Na Suécia não é permitida a propaganda direcionada ao público infantil. Já na Alemanha os programas infantis não podem ser interrompidos por publicidade.
Não há que se confundir a publicidade e a liberdade de expressão. A liberdade de expressão é direito consagrado no âmbito internacional e interno, enunciado em instrumentos de proteção de direitos humanos, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos.
Abrange a livre manifestação do pensamento político, filosófico, religioso ou artístico. O alcance de tal direito não compreende a publicidade — atividade que utiliza meios artísticos visando essencialmente à venda de produtos.
Ao contrário de matérias jornalísticas, veiculadas nos mais diversos meios de comunicação, a publicidade requer necessariamente um espaço na mídia para se alojar. A sua lógica é a mercantil, orientada pela equação de compra e venda de produtos.
Os parâmetros internacionais e constitucionais endossam a absoluta prevalência dos interesses da criança, seu interesse superior e a garantia de sua proteção integral, na qualidade de sujeito de direito em peculiar condição de desenvolvimento.
Neste sentido, destacam-se a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança (ratificada por 193 Estados), a Constituição Brasileira e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ademais, organismos internacionais, como a OMS (Organização Mundial de Saúde) e o SCN (Comitê Permanente de Nutrição) reconhecem que a publicidade tem um papel central no desencadeamento de problemas alimentares, como a obesidade infantil.
Por estar em processo de desenvolvimento biopsicológico, a criança não tem o discernimento necessário para compreender a mensagem publicitária, o que torna o seu direcionamento às crianças abusivo.
A proteção da criança merece prevalecer em face do ilimitado exercício da atividade comercial envolvendo a propaganda destinada às crianças. Restringir a publicidade endereçada às crianças não é ato de censura e tampouco ofensa à liberdade de expressão. É um imperativo ético em defesa da infância.
07 de fevereiro de 2013
Flávia Piovesan é procuradora do Estado de São Paulo e professora da PUC-SP.
O Globo
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