O sucesso do comediante Marcelo Adnet consagra uma geração de humoristas que nasceu no teatro, cresceu na internet e agora leva à televisão um jeito novo de rir de si mesma e do Brasil
Depois de uma carreira que começou no teatro há menos de dez anos e chegou à TV somente em 2009, o comediante apontado como o mais completo de sua geração gravará seu primeiro programa na TV Globo. Na MTV, onde estava até agora, Adnet não chegava a 1 ponto no Ibope.
Agora, prestes a receber o prêmio de Melhor Humorista de 2012, conferido pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), será protagonista de seriado num horário noturno que tem de 15 a 20 pontos de audiência. Como cada ponto corresponde a cerca de 200 mil telespectadores, é certo que nunca tantos rirão dele ao mesmo tempo.
Uma das maiores qualidades de Adnet é a capacidade de reunir dois ou mais assuntos em quadros impagáveis. Em 2011, na mesma semana em que Osama bin Laden foi descoberto e morto pelo Exército americano, bombava nas redes sociais um vídeo de Luiza Marilac, um travesti brasileiro radicado na Itália que curte “uns bons drinque” na piscina.
Foi o suficiente para Adnet encarnar o Bin Laden, de sunga e turbante, com um texto semelhante e o mesmo gestual do travesti. A conexão entre a fama passageira de um personagem e o ocaso sangrento de outro conferiu ao quadro um resultado surreal, inteligente – e naturalmente hilário.
Parte da quase unanimidade que Adnet se tornou vem do tipo de humor que ele faz. Seria difícil chamar de “politicamente correto” alguém que mistura um travesti e um terrorista assassino no mesmo esquete. Mas, ao contrário do humor sem travas praticado por colegas como Rafinha Bastos, Adnet manifesta um grau de preocupação com aquilo que transforma em piada. Não costuma falar de homossexuais, negros ou adeptos de alguma religião.
“Tenho uma regra: nunca sacaneio quem não escolheu ser daquele jeito”, afirma. Pobre e deficiente, não pode. Playboy ou político corrupto, pode. Gay e negro, não pode. Perua e rico preconceituoso, pode. Ele também acha machistas os programas de humor com mulheres seminuas.
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“Impossível não acompanhar tudo o que o Marcelo faz. Ele é um virtuoso, um multitalento que nasce de tempos em tempos”, diz o roteirista Alexandre Machado, autor de sucessos do humor como TV Pirata e Os normais. Machado, ao lado da mulher, Fernanda Young, assina a estreia de Adnet na TV Globo, no seriado O dentista mascarado.
Seu protagonista atende no consultório pela manhã e defende os fracos e oprimidos à noite. Machado diz que o texto está aberto aos pitacos de Adnet, assim como a improvisos nas gravações. “Se quiser, ele pode até escrever alguns episódios.”
O primeiro foi o teatro, mais especificamente o stand-up comedy. É um espetáculo em que o comediante se apresenta sozinho, sem figurino ou cenário, fazendo observações sobre o cotidiano.
Tradição nos Estados Unidos, ele era feito no Brasil por José Vasconcelos, na década de 1960, depois por Chico Anysio e Jô Soares, na década seguinte. No começo dos anos 2000, o estilo foi trazido de volta ao Rio de Janeiro por Fernando Ceylão, primeiro brasileiro a participar do festival de stand-up de Nova York.
Com Claudio Torres Gonzaga, ele criou o espetáculo Comédia em pé, que há quase dez anos roda o Brasil. Em São Paulo, na mesma época, jovens humoristas criaram grupos que se apresentavam em bares e pequenas casas de espetáculo.
Abrasileirado, o stand-up já incorporava alguns figurinos e o humor de tipos, consagrado na televisão.
Nomes populares na TV de hoje, como Danilo Gentili, Dani Calabresa ou o próprio Rafinha Bastos, começaram sozinhos no palco. Em apenas uma década, o Brasil aprendeu a apreciar intensamente esse tipo de humor. No ano passado, o espetáculo de stand-up a céu aberto da Virada Cultural de São Paulo reuniu 52 comediantes e foi visto por mais de 10 mil pessoas.
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O segundo caminho para o sucesso da geração de Adnet foi a internet – e depois as redes sociais. Seus esquetes de teatro começaram a circular pela rede há quase dez anos. Ele se tornou conhecido antes mesmo de ganhar seu primeiro programa na TV. Em 2007, Adnet passou num teste para fazer um comercial para a operadora de telefonia Oi. Na peça publicitária, um jovem tem enorme orgulho de sua pochete – acessório quase tão renegado no mundo da moda quanto as capangas masculinas.
Seguro e sorridente, o rapaz vai ao trabalho e a boates usando uma pochete vermelha na cintura, para riso geral. Exibido no horário nobre, o comercial transformou Adnet no “cara da pochete” e encantou milhões que nem sabiam seu nome.
Na TV, os vídeos do programa registravam audiência média de 0.6 ponto no Ibope. Na internet, passaram a acumular milhões de acessos. Alguns se transformaram s em clássicos e são vistos e comentados até hoje. É o caso do dueto de Ana Carolina e Dercy Gonçalves, do ator José Wilker cantando o “Créu” e do técnico Joel Santana cantando o hino do Botafogo – em inglês. Ali, no ato, sem tempo para pensar: “Put fire, put fire...”.
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No programa seguinte, Comédia MTV, com mais tempo e estrutura, a improvisação deu lugar à criação mais cuidadosa. A qualidade cresceu. A visibilidade de Adnet aumentou. Ele fazia rir pelo inusitado. No da Gaiola das cabeçudas, ele e sua trupe encarnavam gostosas fãs de filósofos como Platão, Nietzsche e Foucault. Rebolando de shortinho, cantavam: Qual é a diferença/entre o Lutero e o Kant?/Um é iluminista/E o outro é protestante.
Adnet também fazia rir por fazer pensar. Num quadro, um brasileiro “refugiado”em sua mansão de Miami, de robe de seda e taça de vinho na mão, desfila seu horror pela ascensão do povo no “Brazil” – pronunciado com sotaque gringo: “Meu jatinho vive atrasando, porque agora... pobre voa!”. “O humor é aquilo que leva ao riso ou a um estado de excitação intelectual”, afirma Adnet. Quase sempre ele consegue as duas coisas juntas.
Marcelo França Adnet não queria ser artista desde pequeno – apesar de ser de uma família ligada às artes. Seu pai, Francisco, e seu tio, Mário, são instrumentistas e arranjadores. Sua mãe, Regina Cocchiarale, é ex-modelo e figurinista. Sua irmã, Luiza, cinco anos mais nova, é bailarina clássica. Ele foi uma criança, antes de tudo, curiosa. Sua mãe conta que, aos 4 anos, aprendeu a ler sozinho. A escola sugeriu que pulasse o ano da alfabetização.
Nem os pais nem o próprio garoto quiseram. Seu pai trabalhava compondo jingles, que o pequeno Marcelo adorava e contribuíram para sua facilidade em criar paródias musicais. O menino gostava de samba e decorava sambas-enredo. Com 5 anos, fazia a voz dos puxadores das escolas. Adorava assistir ao horário político na TV. Imitava os candidatos. Criava uma rádio e chamava a irmã para fazer os números musicais.
saiba mais
- Assista alguns dos sucessos de Adnet:
>> Imitando José Wilker cantando o Créu
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>> Eleitor elitista
>> Osama Marilac
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Aos 12 anos, começou a ficar mais fechado e tímido. A mãe coloca a culpa na acne. As espinhas pipocaram forte e precocemente. Enfurnado no quarto, o adolescente Adnet pesquisava a cultura de outros países e suas línguas.
Comprava livros e fitas. Aprendeu russo e grego. Decorava hinos de times de futebol, mesmo dos clubes mais obscuros. Consumia o noticiário político. Quando saía, era para fazer trilhas em morros e matas da cidade.
Uma vez chegou a se perder e foi resgatado por bombeiros. Aos 14 anos, pediu à mãe que o trocasse para uma “escola mais difícil”. Saiu do Andrews, no Humaitá, bairro onde morava, e foi para o rígido Santo Agostinho, no Leblon. Continuou com notas altas.
Na época, ficou amigo do hoje ator Mateus Solano, que namorava sua prima. Costumavam jogar xadrez em toda parte – até na praia. Ao longo de meses, fizeram uma “melhor de 100”. Adnet ganhou 98, segundo Solano. Hoje os dois se veem bem menos do que gostariam. “Ele é bom em tudo, sempre foi. É brilhante sem ser arrogante. Sempre achei que um dia eu perderia meu amigo para o mundo. Mas o mundo merece”, diz Solano.
>> Humor levado a sério
Na PUC do Rio de Janeiro, Adnet conheceu Fernando Caruso, que o levou para o teatro. Filho do cartunista Chico Caruso, Fernando logo percebeu as boas tiradas do novato. “Adnet já estava inventado, pronto, foi só jogar um holofote nele”, diz. Estava criado o espetáculo Z.É. – Zenas emprovisadas, que, no ano seguinte, ganhou um Prêmio Shell e roda o Brasil até hoje. “Incrível é, depois de todo esse tempo, ver que o Marcelo é, no palco, na TV ou no cinema, do mesmo jeito que ele é quando está encenando entre amigos”, afirma Caruso.
Foi na MTV que Adnet começou a namorar sua mulher, a também comediante Daniella Giusti, a Dani Calabresa. Os dois formam, hoje, o casal 20 do humor nacional. Agora, depois de férias de mais de um mês nas praias paradisíacas de Aruba, Costa Rica e Punta Cana, eles viverão um amor de ponte aérea.
Dani, contratada pelo programa CQC, da Band, fica no apartamento de Higienópolis, em São Paulo, e Adnet fica no Rio durante a semana. Ele procura um apartamento na Barra da Tijuca, para ficar mais perto da Central Globo de Produções, no Projac. “Vou chorar no banheiro, e ele vai chorar na praia”, diz Dani. Os dois dizem querer escrever e atuar juntos numa peça e num filme.
Adnet atribui seu sucesso ao que chama de “bom ouvido”, uma expressão que, no caso dele, não tem a ver apenas com a música. Está ligada, diz ele, à paciência em estudar e observar o mundo, que lhe dá consistência para criticar e criar. O “bom ouvido” se estende também à capacidade de reproduzir.
Num Brasil em que imitadores se multiplicam, ele impressiona com a multiplicidade de vozes e sotaques que produz perfeitamente. É também ótimo cantor, em vários tons. E, apesar do tempo curto, continua investindo no aprendizado de novas línguas.
A última é o papiamento, idioma que mistura espanhol, português, holandês e inglês. Teve contato com a língua numa viagem a Aruba, achou interessante e passou a ler os jornais locais e a conversar com as pessoas. A fluência já é tão boa que ele fez show de stand-up e participou do show de um músico local.
>> Justiça condena Rafinha Bastos a pagar R$ 150 mil a Wanessa Camargo Não é de surpreender que seu humor faça rir mesmo em outro idioma. A explosão da comédia é um fenômeno internacional, que floresce ao ritmo da crise econômica mundial. Na TV da Grécia, o país que foi o estopim da crise financeira europeia, o humorista Lakis Lazopoulos tem batido recordes de audiência com seu programa semanal Sinto muito, sou grego, repleto de autodepreciação. Com o sucesso, a produção viajou pelo mundo.
Nos Estados Unidos, crescem as bilheterias dos filmes de humor – que sempre foram polpudas. Ted (um ursinho escrachado que gosta de maconha e sexo) arrecadou US$ 219 milhões em 2012. Em 2011, Se beber não case 2 já havia batido o recorde de faturamento na estreia, que era de American pie 2 (2001). Diretores de comédia como Judd Apatow – dos fenômenos O virgem de 40 anos e Superbad – têm sido tratados como gênios do cinema. Apatow foi convidado para editar o número de janeiro da sofisticadíssima revista Vanity Fair, inteiramente dedicado à comédia. Na TV, as séries como Modern family, Glee e The Big Bang theory ultrapassaram as fronteiras americanas e se tornaram mania no mundo inteiro.
Outra estrela americana em ascensão no humor mundial é Louis C.K. Roteirista, diretor e ator, ele tem recebido seguidas indicações ao Emmy, o Oscar da TV americana, pela série Louie, na quarta temporada no canal FX. A crítica considera Louis um revolucionário que modificou o formato das sitcoms, as séries baseadas em situações cômicas.
Originário do stand-up comedy, ele vive na série uma versão de si mesmo: comediante ácido, divorciado e pai de duas filhas. Os episódios, filmados com apenas uma câmera, misturam pequenos curtas-metragens ao show do ator. Ao contrário da onda politicamente correta na TV americana, Louis brinca com racismo e orientação sexual e resvala muitas vezes pela escatologia.
Em todo o mundo, a novidade no universo humorístico é a internet. Ela cumpre hoje uma função exercida no passado pelo rádio: campo de provas para talentos e novas formas de humor que depois estourariam na televisão (leia na linha do tempo abaixo). Sua capacidade de espalhar conteúdos também estimulou produções feitas para a própria internet.
O caso recente mais espetacular se chama a Porta dos Fundos. Em apenas seis meses, um time que reúne o site Kibe Loco e os atores Fábio Porchat e Gregório Duvivier já conquistou quase 100 milhões de acessos, com um humor apimentado que só a internet permite. É um humor que fala mais de perto com as novas gerações. Rápido em satirizar tendências e captar novos comportamentos. As referências sarcásticas à vida cotidiana dão o tom do riso.
Qualquer que seja o país, qualquer que seja o estilo, humor vende. No teatro, no Rio de Janeiro, 80% das salas são ocupadas por comédias. Na televisão, a maioria das séries, da TV aberta ou fechada, é de humor.
Na última década, com exceção de Tropa de elite, as maiores bilheterias do cinema nacional foram de comédias. Uma das mais recentes, Os penetras, vista por quase 3 milhões de pessoas, tem o próprio Adnet como protagonista. De pernas pro ar 1 e 2, com Ingrid Guimarães, já somam 7 milhões de espectadores. Os dois últimos filmes de Bruno Mazzeo, Cilada.com e E aí, comeu?, foram vistos por 6 milhões. A lista de sucessos é longa e aumentará nos próximos anos. Há dezenas de produções no forno.
Agora, produzirá o primeiro longa-metragem do grupo que se tornou o mais novo sucesso da internet, o Porta dos Fundos. “Há um nítido processo hedonista na sociedade atual”, afirma Mariza Leão, produtora do filme De pernas pro ar e do seriado Meu passado me condena, do Multishow. “Queremos bem-estar, leveza e prazer. Para muitos, as comédias respondem à vontade de não quebrar a cabeça.”
Os humoristas são os ídolos do momento. “A comédia é o rock do nosso tempo”, escreveu Fernando Ceylão em recente artigo no jornal O Globo. Hoje, diz Ceylão, o jovem não quer uma guitarra, mas sim uma câmera digital. Fazer um vídeo para o YouTube é o equivalente a montar uma banda nos anos 1990. “É no humor direto, com voz ativa, que o jovem diz o que sente e o que quer.” Para esses jovens, Adnet se tornou um exemplo a imitar.
Na terça-feira 29 de janeiro, ao assinar o contrato com a Globo, Adnet aceitou o desafio de manter sua originalidade e seu ritmo na TV aberta. Ele optou pela possibilidade de falar com mais gente – e atingir um tipo de espectador que passa ao largo das redes sociais e ele ainda não alcançou. “É um pulo enorme em termos de tudo”, afirma. Quem já viu Marcelo Adnet em ação pelo menos uma vez não tem dúvida de que ele cairá de pé – e ainda dirá uau!
17 de fevereiro de 2013
MARTHA MENDONÇA
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