Dilma Rousseff irritou-se com o que chamou de “manipulação” de um comentário feito na África do Sul sobre inflação e crescimento econômico. Não disse quem manipulou, se os repórteres ou o mercado. E desobrigou-se de fazer uma autocrítica: num instante em que o PIB é miúdo e a carestia é ascendente, falar de economia em entrevistas ligeiras é como apalpar fio desemcapado. É enorme o risco de curto-circuito.
Observando-se o episódio de perto, enxerga-se algo muito parecido com um calcanhar de vidro. A exemplo de Lula, Dilma não gosta de conceder entrevistas coletivas. Prefere as conversas do tipo “quebra-queixo” –aquelas em que microfones e gravadores cercam freneticamente o entrevistado, ameaçando a integridade do seu maxilar.
Sob Lula, o Planalto mandou fabricar um porta-microfones de acrílico. Com o rosto a salvo, o presidente entregava-se gostosamente à coreografia. Seu chefe de comunicação, Franklin Martins, considerava o modelo eficaz. Por quê? Concedidas no calor dos acontecimentos, as entrevistas ocasionais produziam repercussão imediata. Verdade. O diabo é que, quando o queixo se expressa mal, quebra-se a mensagem a ser repercutida. Que o diga Dilma!
De resto, ao negligenciar as coletivas formais, o governo malbarata uma ferramenta cara à democracia. A coletiva não é senão uma forma simples e eficaz de um gestor público prestar contas de seus atos à sociedade. Quanto mais arejado e democrático é o país, mais frequentes são -ou deveriam ser- essas sessões de arguição pública.
O costume das coletivas presidenciais nasceu nos EUA, sob Woodrow Wilson. Concedeu sua primeira entrevista em 19 de março de 1913. A partir daí, a sociedade americana como que impôs a repetição do gesto a todos os sucessores. Na Casa Branca, as coletivas ocorrem com periodicidade mensal. Bill Clinton, por exemplo, submeteu-se a 117 entrevistas do gênero em oito anos.
No Brasil, FHC concedeu uma coletiva para cada ano de seus dois mandatos –com direito a réplicas. Lula, nem isso: em oito anos, deu uma mísera coletiva digna do nome –sem réplicas. Sob Dilma, por ora, zero. Afora o lufa-lufa do “quebra-queixo”, ela permite-se encontrar jornalistas apenas de raro em raro.
Dilma deu algumas poucas entrevistas exclusivas. Falou mais a veículos estrangeiros do que a nacionais. Avistou-se um par de vezes com os repórteres que acompanham a rotina do Planalto. Serviu-lhes café da manhã e desconversa. É como se receasse a gafe, a resposta atravessada. Um medo que não orna com a logomarca da gestora irrepreensível. Ao fugir da arguição franca, Dilma desrespeita a sociedade, não a imprensa.
A política moderna oferece aos seus protagonistas um aparato que facilita a administração de símbolos e a manipulação da opinião pública. Vão da propaganda às pesquisas de opinião, passando pelos pronunciamentos em cadeia nacional de rádio e tevê. Mas o uso desmedido desse ferramental conduz ao mais puro engodo. Por vezes, mesmo as entrevistas são guiadas pelo marketing.
Por exemplo: em 3 de novembro de 2010, nas pegadas da eleição de Dilma, o Planalto chamou os repórteres para uma conversa. Apelidou o encontro de entrevista coletiva. Em verdade, foi um “quebra-queixo” de resultados. Interessava ao cabo eleitoral trombetear o triunfo de sua “poste”. Observado por Dilma, Lula disse coisas assim: “O que ela vai ter de vantagem sobre mim? Primeiro, ela ajudou a colocar esse carro em marcha. Então, o carro nao está na garagem, os pneus estão calibrados, o motor está regulado.”
Lula caprichou no gogó: “O carro está andando a 120 por hora. Ela, se quiser, pode pisar um pouquinho mais no acelerador e chegar a 150, 160 por hora. Ela não tem por que brecar esse carro. Só tem que dirigir com muita responsabilidade e olhar bem as curvas, não passar quando tiver duas faixas amarelas. [...] Porque a Dilma aprendeu na Unicamp, e no governo de que ela foi chefe da Casa Civil, que em economia não existe mágica. Não existe ninguém capaz de tirar da cartola o coelhinho que vai fazer as coisas acontecerem como se fosse um milagre.”
Decorridos mais de dois anos, Dilma falou aos repórteres na África do Sul como se quisesse tirar cartolas de dentro do coelho. Valendo-se de uma analogia surrada –a dose do remédio não pode matar o paciente –declarou que seu governo não vai combater a inflação à custa do crescimento. Levadas ao ar na velocidade da internet, as declarações eletrificaram o mercado.
A galera raciocionou: a inflação sobe perigosamente. O BC já acenava com a hipótese de salgar a Selic. Juro alto conspira contra o PIB. Se Dilma não admite comprometer o crescimento, a lógica indica que ela não autorizará o BC a fazer o que deve ser feito. Pronto. Estava consumado o estrago. Dilma mandou chamar os repórteres. Disse que não admite “manipulação de fala.” O combate à inflação, repisou, “é um valor em si.” Quem manipulou? “Eu não fui”, respondeu, secamente. E mais não disse.
Numa boa e honesta coletiva, com direito a réplicas e tréplicas, Dilma teria o tempo que quisesse para explicar que tática adotará contra o fantasma da inflação, cujo lençol anda açanhado. Poderia discorrer também sobre a velocidade do carro que Lula dizia em 2010 estar com os pneus calibrados e o motor regulado.
A presidente há de ter uma teoria sobre o comportamento de sua suposta Ferrari. Lula entregara em oito anos um crescimento médio de 4%. Taxa superior à de FHC: 2,3%. Sob Dilma, obteve-se nos dois primeiros anos um pibinho médio de 1,8%. Visto pelo retrovisor, o Lula de 2010 é o que a Dilma de 2013 chamaria de “manipulador” de falas. Tocou o trombone antes que sua protegida exibisse a capacidade de sopro.
29 de março de 2013
Josias de Souza, UOL
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