"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 22 de março de 2013

HÁ 60 ANOS, MORRIA ESCRITOR STALINISTA ( 1 )


Admiradores que me desculpem, mas Graciliano foi mais um dos escritores do século passado que venderam sua alma em troca de uma viagem a Moscou. A primeira frase da carta enviada de Moscou, datada de 1º de maio de 1952, diz tudo e dispensaria mais comentários:

“Clarita, Luísa, Ricardo: cá estamos na Terra Santa”.

O seco Graciliano, de repente, vira místico desbordado.

Em Moscou, encontrará Jorge Amado, já Prêmio Stalin. Tudo é festa e deslumbramento.

“Tenho bebido vodca, ido várias vezes ao Kremlin, à Praça Vermelha, visto a Catedral de São Basílio e o túmulo de Lênin. Ontem visitei a VOKS: doces, frutas, vinho, arranjo do programa, discurso do Presidente, um professor de cabeça pelada. À noite, Romeu e Julieta no teatro Bolshoi, com Ulanowa no papel de Julieta. Havia talvez mais de duzentas figuras. Nunca imaginei coisa semelhante. Hoje, a festa para que fomos convidados. O desfile começou às dez horas e deve ter-se prolongado até sete da noite. Deixamos o Kremlin às três horas. Víamos, de longe, com dificuldade, a cabeça de Stalin. Furor de aplausos na multidão”.

Graciliano apanha então binóculos para melhor ver seu deus:

“Subi à última plataforma exterior do Kremlin, fui andando para a esquerda, cheguei a poucos metros do túmulo de Lênin, no momento em que Stalin ia subindo a escada. Aproximei-o com o binóculo. Está velho, gordo e curvo. Nessa altura um tipo se avizinhou e quis tomar-me o binóculo. Fingi não entendê-lo. ‘Sou estrangeiro, não compreendo o russo’. Stalin passou. Recuei dez metros, quis examinar os figurões que estavam ali a pequena distância; outro guarda, falando e gesticulando, deu-me a entender que era proibido usar binóculos. Ignoro o motivo desta proibição”.

Antes de passarmos à entusiástica transcrição deste episódio em Viagem, cabe determo-nos alguns segundos em uma frase de sua carta:

“Enquanto as organizações operárias desfilavam, Kaluguin perguntou-me quais os meus livros que deveriam ser traduzidos em russo. Talvez nenhum, respondi. E expliquei minha divergência com o pessoal daí”.

As divergências de Graciliano se referem ao zdanovismo. O alagoano se recusava a submeter-se às normas do realismo socialista, tentação à qual não resistiu Amado. Importante sublinhar nesta frase de Graciliano a proposta da edição de livros.

Afirmar que a fortuna internacional de escritores como Graciliano e Amado deve-se mais às suas relações com o Partido do que a seus talentos é enunciar o óbvio. Mas trata-se de um óbvio sacrílego, pois implica afirmar que tais escritores utilizaram o partido como agência publicitária, ou que o Partido os utilizou como agentes publicitários.

De qualquer forma, fica claro na carta de Graciliano que as traduções são decorrência da viagem, e ninguém recebe mordomias gratuitamente. O sucesso de Amado na Europa, por exemplo, decorre de suas primeiras traduções em russo. Da URSS, Amado passa à extinta RDA, de onde Meyer-Clason, seu tradutor, o puxa para a Alemanha Ocidental. Só depois sua literatura chegará a Paris e demais países europeus. Em Viagem, Graciliano volta ao tema e concluí que seus livros em nada interessariam àqueles homens.

“São narrativas de um mundo morto, as minhas personagens comportam-se como duendes. Na sociedade nova ali patente, alegre, de confiança ilimitada em si mesma, lembrava´me da minha gente fusca, triste, e achava-me um anacronismo. Essa idéia, que iria assaltar-me com freqüência, não me dava tristeza. Necessário conformar-me: não me havia sido possível trabalhar de maneira diferente: vivendo em sepulturas, ocupara-me emrelatar cadáveres”.

Ignoraria Graciliano os milhões de cadáveres que o stalinismo já havia amontoado? Muita tinta já rolara no Ocidente em torno às purgas, deportações e campos de concentração. Mas crente que se preza não quer ver. Ao crente, basta crer.

Uma ligeira dúvida perpassa o espírito de Graciliano e seus companheiros ao verem a cidade cheia de retratos de Stalin, “a demonstração de solidariedade irrestrita não impressionava bem o exterior”. Mas a senhora Nikolskaya, a guia, julga tal observação leviana e absurda, para consolo dos crentes:

“Nenhum russo admitia que as coisas se passassem de outra maneira. Essa réplica, isenta de motivos era, no meu juízo, superior a um longo discurso esteado em razões. Estávamos diante de um fato, e condená-lo à pressa, ao cabo de alguns passeios na rua, parecia-me ingenuidade. Com certeza ele era necessário, e devíamos, antes de arriscar opinião, investigar-lhe a causa. Realmente não compreendemos, homens do Ocidente, o apoio incondicional ao dirigente político; seria ridículo tributarmos veneração a um presidente de república na América do Sul. Não temos em geral nenhum respeito a esses indivíduos”.

Para o escritor alagoano, Stalin é o “estadista que passou a vida a trabalhar para o povo, nunca o enganou. Não poderia enganá-lo. Esforçou-se por vencer o explorador, viu-o morto — e seria idiota supor que, alcançada a vitória, desejasse a ressurreição dele. É, desde a juventude, um defensor da classe trabalhadora. Esta expressão, razoável há trinta e cinco anos, tornou-se desarrazoada, pois aqui já não existem classes”.

Graciliano está há poucos dias em Moscou, não fala o russo, tem roteiros rígidos de passeios e visitas, e já afirma peremptoriamente que não mais existe na Rússia uma sociedade de classes. Vista de nossos dias, sua afirmação é de uma ingenuidade atroz. Independentemente desta distância crítica, nada permite a um homem que pensa, fazer tais ilações generalizantes a partir de tão parca experiência do povo soviético. Sem falar que Graciliano nada entendia do russo.

O seco criador de Paulo Honório, inimigo de adjetivações supérfluas, passa a cultivar os adjetivos:

“Não admitimos nenhum culto a pessoas vivas, perfeitamente: a carne é falível, corruptível, inadequada à fabricação de estátuas. Mas não se trata de nenhum culto, suponho: esse tremendo condutor de povos não está imóvel, de nenhum modo se resigna à condição de estátua. Homens embotados, afeitos à corrupção e à fraude, percebemos isto: a massa tem confiança absoluta nele e manifesta a confiança impondo-lhe a obrigação de admitir as ruidosas aclamações e os retratos. (...) Agradecimentos e louvores palpitam na alma da multidão, e recusá-los seria uma ofensa, um erro que nenhum político bisonho cometeria”.

Stalin, modesto dirigente, é coagido a aceitar a religiosa adoração das massas agradecidas. E Graciliano, que sequer pode olhar para Stalin com binóculos, chega à conclusão que “este tremendo condutor de povos” não é o monstro que o Ocidente imagina:

“Deixavam-me passar. E deixavam-me subir a escadaria, galgar as insignificantes barreiras de meio metro, avizinhar-me do homem que a burguesia odeia com razão. Stalin não vive numa toca, defendida por metralhadoras e canhões”.

O homem que, em rápido turismo por Moscou, afirma não mais existir a sociedade de classes na União Soviética, mais adiante nos alerta para o perigo das generalizações. É quando passeia pelos jardins do Kremlin, em meio a “cinzas preciosas”. Lá estão as de John Reed, americano, portanto inimigo, pelo menos em princípio. Mas Reed escreveu a grande reportagem da Revolução. Logo, “esse nome nos enche de sentimentos bons. Perigoso entregar-nos a generalizações feitas à pressa. Nem toda a gente na América deseja aniquilar a humanidade com bombas atômicas e bactérias. Não vamos responsabilizar duzentos milhões de indivíduos, oito milhões e meio de quilômetros quadrados, porque um oficial de instinto ruim tentou furtar uma estatueta amarela no Hotel Savoy”.

Ao visitar o Kremlin, o espírito de Graciliano é tomado por sensações místicas (os itálicos são nossos):

“...pisamos o núcleo de Moscou, a cidadela venerável exposta de longe ao mundo com júbilo ou furor, conforme as circunstâncias. Sim senhores. Estamos dentro dela — e as pedras santas das muralhas não caíram em cima de nós para esmagar-nos, estorvar a profanação”.

“É verdade: miseráveis sapatos americanos, brasileiros, pezunham na terra sagrada por diversas razões. Estamos no Kremlin”.

Ante a guia que lhe narra a história do castelo, Graciliano sente-se “aluno chinfrim, seguro o lápis e o caderno, abro os olhos e os ouvidos, quero aprender”.

“Andamos noutros refúgios de religião, transformados em museus, vemos riquezas semelhantes às do primeiro, ouvimos datas, noções peregrinas, toda uma santa arqueologia que a revolução guardou com zelo piedoso”.

Sala de São Jorge: “o Deus dele não podia equiparar-se ao Deus existente na Catedral de S. Basílio, fora do Kremlin”.

Iríamos muito longe se enumerássemos as evocações religiosas suscitadas em Graciliano por sua visita ao Kremlin. Passemos então à visita do escritor ao berço em que nasceu o novo Deus, a cidade de Gori: “o monumento a que nos referimos é apenas uma casa miúda, de tijolos nus, sem reboco”.

Nos dois quartos que perfazem apenas dois metros, morava o velho Djugatchivili, sapateiro. Joseph nasce em 1879 e destinava-se à profissão religiosa, já que o ofício de sapateiro rendia pouco. Troque-se o sapateiro por marceneiro, a cabana por manjedoura, coloque-se uma nova no firmamento, adicione-se mais três magos, e essa história já conhecemos. Olhando o ambiente, inconscientemente, o Velho Graça — como era chamado por seus amigos — chega a trair-se: “Onde estava a cama do menino?”


22 de março de 2013
janer cristaldo

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