O debate recente sobre a existência ou não de um cadastro único para os programas sociais na transição do governo tucano para o petista é velho de quase dez anos. Os gestores do Fome Zero, que seria um guarda-chuva para os programas sociais da era Lula, criticaram o cadastro herdado do Comunidade Solidária, o que fez a antropóloga Ruth Cardoso vir a público defender os critérios adotados.
Mas ela considerava que fora prematura a união dos cadastros, que não estavam suficientemente avaliados, e também criticava a ampliação do programa e a redução das condicionalidades para receber as bolsas. Outro defeito sério que ela via era o Bolsa Família não ter uma meta para atingir.
No final, foi mesmo o cadastro herdado do governo FH que serviu de base para o início da unificação dos programas. O Cadastro Único foi instituído pelo Decreto n.º 3.877, de 24 de julho de 2001, assinado pelo então presidente, Fernando Henrique Cardoso. Tratava-se de uma base de dados capaz de subsidiar o planejamento de ações e políticas de enfrentamento à pobreza, com destaque para a implementação de programas de transferência de renda, nas diferentes instâncias de governo.
Dizer, portanto, que não havia cadastro único e que os governos petistas tiveram que começar do zero os programas sociais é apenas uma politização do debate pela presidente Dilma Rousseff, que não leva a lugar algum. Se o PT, com tanta gente qualificada na área social, não tivesse aperfeiçoado nestes dez anos os critérios cadastrais com a implantação do Bolsa Família, seria, aí sim, um grave caso de ineficiência.
O importante é fazer com que as famosas “portas de saída” dos programas sejam acionadas, superando um dos defeitos mais graves do Bolsa Família. Elas foram menosprezadas pela administração do ministro Patrus Ananias, que considerava mais importante a ampliação do programa do que o cumprimento das chamadas condicionalidades — comparecimento à escola e exames de saúde da família.
Houve dentro do governo naquela ocasião um choque de visões sobre o encaminhamento dos programas sociais. Criado para ser a referência do governo na área social, o Fome Zero perdeu-se na burocracia dos primeiros momentos e acabou sacrificando seu principal articulador, o ex-ministro Francisco Graziano.
Com a saída de Graziano do ministério, e a junção de sua secretaria com dois outros ministérios para se criar o Ministério de Desenvolvimento Social, as prioridades do governo foram em outra direção, colocando o Bolsa Família na frente do Fome Zero, que acabou desativado.
Foi Patrus Ananias quem vislumbrou o potencial político do Bolsa Família e desmontou os “comitês gestores” que funcionavam nos mais de dois mil municípios em que o Fome Zero já estava implantado. O grupo “ideológico” perdeu para os “eleitoreiros”, e os “comitês gestores” formados por voluntários da comunidade em cada município perderam sua autonomia diante dos prefeitos, que passaram a dominar os cadastros.
Como resultado, ninguém planejou a saída dessas famílias para o mundo produtivo, e na verdade está havendo uma distorção: o governo comemora quanto mais amplia o Bolsa Família, quando, ao contrário, teria que comemorar a redução do programa assistencialista, sinal de que as famílias estariam entrando no mundo produtivo.
A própria presidente Dilma vem ampliando significativamente a abrangência do Bolsa Família, e as preocupações com as saídas são secundárias no governo. Já há vários estudos entre os pesquisadores, tanto do Ipea quanto da Fundação Getulio Vargas, sobre o que deveria ser o que o economista Marcelo Neri, hoje dirigindo o Ipea, chama de Bolsa Família 2.0, que teria como uma parte importante a melhora da oferta da qualidade das políticas estruturais tradicionais, com saúde e educação ocupando lugar de destaque.
É também fundamental, além da melhoria da educação e da saúde, ter programas de inserção no mercado de trabalho, o que começa a ser pensado apenas agora.
05 de março de 2013
Merval Pereira, O Globo
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