Aberto o parêntese para tratar da criminalidade (e você certamente reparou que os três estupradores mencionados que agiam livremente ha meses, senão anos no Rio de Janeiro, desta vez foram presos em 24 horas apenas para inglês ver; brasileira foda-se, assim como acontece na relação de causa e efeito entre a contratação da Copa do Mundo e os turistas que vêm aí e a ocupação dos morros/UPPs), volto à questão de fundo que é a sina dos filhos das reviravoltas comparada à dos filhos da revolução.
Os ideais iluministas puderam consolidar-se nisto que conhecemos como a democracia moderna graças à concomitância de três fatores que se reuniram pela primeira vez na história da humanidade e que talvez não se repitam nunca mais:
Dissimular sentimentos, violar as leis e mentir não são apenas atos moralmente justificáveis para quem vive uma condição de servidão a senhores que têm sobre ele poder de vida ou morte. São um imperativo de sobrevivência e até um ato de resistência e rebeldia digno de elogios.
É esta a raiz do vício antigo de que falei no primeiro artigo desta série.
O amor ao cumprimento das regras dos americanos do Norte e a tranquilidade com que os oprimidos filhos das reviravoltas passam por cima delas têm um sentido muito prático, portanto. Está longe de ser uma questão moral, apenas.
Ela passa a ser uma questão moral à medida que a vítima vai se acomodando aos efeitos colaterais do vício de isentar-se de culpa até o ponto de apaixonar-se por ele…
Mas voltemos à propriedade.
A Inglaterra tornou-se dona do mundo um pouco antes da hora em que fatalmente acabaria por chegar a sê-lo graças à enorme tempestade que a ajudou a destruir a “Invencível Armada” espanhola.
Por séculos a fio, graças ao senso prático dos ilhéus anglo-saxônicos comparado à parlapatice latina, os ingleses, muito objetivamente, cuidaram de manter seus reis sempre pobres em vez de tentar cercear o poder deles só com palavras.
Cada vez que precisava de dinheiro para enfrentar inimigos ameaçadores o rei tinha de vir ao Parlamento de mão estendida. E o Parlamento só soltava o dinheiro a troco de mais um direito cedido pelo rei.
Foi assim que, já em 1688, mais de um século antes do início das revoluções contra o absolutismo no Continente, o Parlamento inglês tinha submetido completamente o rei (colocando-o “under God and under the law“) e conquistado basicamente todos os poderes que tem hoje.
No DNA da democracia está, portanto, o objetivo de opor o dinheiro ao poder político e o poder político ao dinheiro (esta parte consolidada mais tarde, já nos Estados Unidos, na memorável batalha antitruste do início do século 20). O que vale dizer que sempre que esses dois se juntam, como está voltando a acontecer vertiginosamente neste momento, a democracia está sendo pervertida e incorrendo em grave risco de desaparecer.
O primeiro grande subproduto da vitória sobre a “Invencível Armada” foi a Inglaterra herdar o imenso território onde hoje estão os Estados Unidos. Era preciso colonizá-lo mas não havia recursos no sempre magro Tesouro Real para isso.
A solução foi entregar essa tarefa a empresas privadas.
Mas havia um problema ainda mais difícil de resolver que o da falta de dinheiro: também faltava gente.
Como atrair gente para ir tentar a sorte naquele “outro planeta” desconhecido?
Oferecendo o impossível na Europa de então para quem não tivesse nascido “nobre”: a propriedade da terra.
Os Estados Unidos foram colonizados pelo sistema do headcount no qual cada imigrante que concordasse em vir recebia 50 acres (20 hectares) de terra. “E traga a família toda e mais os amigos porque são 50 acres por cabeça”.
Constituiu-se assim, nos tempos em que em todo o território brasileiro havia 12 proprietários apenas, a primeira sociedade humana que, excluídos os escravos, era integralmente composta por pequenos proprietários que se auto-definiam como produtores, eram capazes de ler a Bíblia sozinhos e acreditavam que a virtude estava mais em acumular que em consumir.
A revolução educacional que foi o Protestantismo, cujo mote inicial era dar a cada um a condição de ler, ele próprio, a Bíblia que Gutemberg tornara acessível a todos, contribuiu mas não foi decisiva àquela altura.
Passaria a ser mais tarde, já no século 20, depois que a educação se firmou como a única condição indispensável de acesso à propriedade dos modernos meios de produção (sempre mais intelectual que de outra natureza).
Foi a educação o instrumento que resgatou da barbárie política os países asiáticos que, longe das tradições e da cultura anglo-saxônicas, tiveram a humildade de reconhecer a superioridade do sistema democrático, copiá-lo e transformar-se em democracias plenas depois de passar por profundas revoluções educacionais que deram a cada um dos seus nacionais condições de acesso à propriedade.
Pelo meio do caminho ficamos nós, os filhos das reviravoltas, sempre muito barulhentas e sangrentas mas apenas reviravoltas, trocando constantemente de “reis” sem trocar de regime.
E ficamos em consequência do apego a uma “igualdade” conformada que é a tradução do nosso hábito de desculpar nossos próprios fracassos de preferência à esfalfante obrigação de perseguir diariamente o sucesso pelo merecimento e, pior que isso, a passar a “humilhação” de reconhecer-mo-nos, eventualmente, menos merecedores que o próximo.
O uso do cachimbo entortou-nos a boca. Mas o caminho continua aberto para quem se atrever a tomá-lo.
06 de abril de 2013
Os ideais iluministas puderam consolidar-se nisto que conhecemos como a democracia moderna graças à concomitância de três fatores que se reuniram pela primeira vez na história da humanidade e que talvez não se repitam nunca mais:
- a descoberta de um território “virgem” (as aspas são os índios) livre de um sistema de poder a ser superado;
- o surgimento da primeira população nacional integralmente alfabetizada;
- o surgimento da primeira população nacional integralmente constituída por proprietários.
Dissimular sentimentos, violar as leis e mentir não são apenas atos moralmente justificáveis para quem vive uma condição de servidão a senhores que têm sobre ele poder de vida ou morte. São um imperativo de sobrevivência e até um ato de resistência e rebeldia digno de elogios.
É esta a raiz do vício antigo de que falei no primeiro artigo desta série.
O amor ao cumprimento das regras dos americanos do Norte e a tranquilidade com que os oprimidos filhos das reviravoltas passam por cima delas têm um sentido muito prático, portanto. Está longe de ser uma questão moral, apenas.
Ela passa a ser uma questão moral à medida que a vítima vai se acomodando aos efeitos colaterais do vício de isentar-se de culpa até o ponto de apaixonar-se por ele…
Mas voltemos à propriedade.
A Inglaterra tornou-se dona do mundo um pouco antes da hora em que fatalmente acabaria por chegar a sê-lo graças à enorme tempestade que a ajudou a destruir a “Invencível Armada” espanhola.
Por séculos a fio, graças ao senso prático dos ilhéus anglo-saxônicos comparado à parlapatice latina, os ingleses, muito objetivamente, cuidaram de manter seus reis sempre pobres em vez de tentar cercear o poder deles só com palavras.
Cada vez que precisava de dinheiro para enfrentar inimigos ameaçadores o rei tinha de vir ao Parlamento de mão estendida. E o Parlamento só soltava o dinheiro a troco de mais um direito cedido pelo rei.
Foi assim que, já em 1688, mais de um século antes do início das revoluções contra o absolutismo no Continente, o Parlamento inglês tinha submetido completamente o rei (colocando-o “under God and under the law“) e conquistado basicamente todos os poderes que tem hoje.
No DNA da democracia está, portanto, o objetivo de opor o dinheiro ao poder político e o poder político ao dinheiro (esta parte consolidada mais tarde, já nos Estados Unidos, na memorável batalha antitruste do início do século 20). O que vale dizer que sempre que esses dois se juntam, como está voltando a acontecer vertiginosamente neste momento, a democracia está sendo pervertida e incorrendo em grave risco de desaparecer.
O primeiro grande subproduto da vitória sobre a “Invencível Armada” foi a Inglaterra herdar o imenso território onde hoje estão os Estados Unidos. Era preciso colonizá-lo mas não havia recursos no sempre magro Tesouro Real para isso.
A solução foi entregar essa tarefa a empresas privadas.
Mas havia um problema ainda mais difícil de resolver que o da falta de dinheiro: também faltava gente.
Como atrair gente para ir tentar a sorte naquele “outro planeta” desconhecido?
Oferecendo o impossível na Europa de então para quem não tivesse nascido “nobre”: a propriedade da terra.
Os Estados Unidos foram colonizados pelo sistema do headcount no qual cada imigrante que concordasse em vir recebia 50 acres (20 hectares) de terra. “E traga a família toda e mais os amigos porque são 50 acres por cabeça”.
Constituiu-se assim, nos tempos em que em todo o território brasileiro havia 12 proprietários apenas, a primeira sociedade humana que, excluídos os escravos, era integralmente composta por pequenos proprietários que se auto-definiam como produtores, eram capazes de ler a Bíblia sozinhos e acreditavam que a virtude estava mais em acumular que em consumir.
A revolução educacional que foi o Protestantismo, cujo mote inicial era dar a cada um a condição de ler, ele próprio, a Bíblia que Gutemberg tornara acessível a todos, contribuiu mas não foi decisiva àquela altura.
Passaria a ser mais tarde, já no século 20, depois que a educação se firmou como a única condição indispensável de acesso à propriedade dos modernos meios de produção (sempre mais intelectual que de outra natureza).
Foi a educação o instrumento que resgatou da barbárie política os países asiáticos que, longe das tradições e da cultura anglo-saxônicas, tiveram a humildade de reconhecer a superioridade do sistema democrático, copiá-lo e transformar-se em democracias plenas depois de passar por profundas revoluções educacionais que deram a cada um dos seus nacionais condições de acesso à propriedade.
Pelo meio do caminho ficamos nós, os filhos das reviravoltas, sempre muito barulhentas e sangrentas mas apenas reviravoltas, trocando constantemente de “reis” sem trocar de regime.
E ficamos em consequência do apego a uma “igualdade” conformada que é a tradução do nosso hábito de desculpar nossos próprios fracassos de preferência à esfalfante obrigação de perseguir diariamente o sucesso pelo merecimento e, pior que isso, a passar a “humilhação” de reconhecer-mo-nos, eventualmente, menos merecedores que o próximo.
O uso do cachimbo entortou-nos a boca. Mas o caminho continua aberto para quem se atrever a tomá-lo.
06 de abril de 2013
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