São dois crimes bem diferentes na essência: o ônibus que despencou de um viaduto, matando sete e ferindo nove, e o estupro coletivo de uma americana numa van.
Duas coisas aproximam os crimes. A primeira é o cenário: a cidade do Rio de Janeiro, um dos destinos mais na moda hoje no mundo, sonho de consumo de jovens estrangeiros.
A segunda é o caos do transporte formal e informal, a máfia de empresas legais e ilegais. O Rio costuma ser adorado pelos turistas, mas uma das críticas mais comuns é: “Os motoristas de ônibus e de van são loucos”.
Por “loucura”, entenda-se: andam em altíssima velocidade em carcaças velhas, saem costurando todo mundo, ultrapassam sinais vermelhos, aceleram nos amarelos, inclinam-se em curvas como se fossem pilotos de corrida, sobem na calçada, atropelam ciclistas e pedestres, não respeitam faixa, fecham os carros e os cruzamentos, não param nos pontos, dirigem falando ao celular, não têm paciência com passageiros idosos, trabalham irritados e cansados por horas extras e engarrafamentos.
É claro que esse não é o retrato de todos os motoristas dos 8.777 ônibus do Rio. Mas os maus motoristas são suficientes para construir uma imagem de irresponsabilidade e insegurança. No caso do ônibus emborcado abaixo do viaduto da Avenida Brasil, via de acesso ao Rio, a principal causa pode ter sido uma briga entre um passageiro universitário e o motorista. O veículo já tinha 46 multas.
As vans, muitas caindo aos pedaços e irregulares, andam de portas abertas, gritam o destino, mexem com as moças que passam, cantam os pneus gastos, param subitamente sem sinalizar em qualquer ponto da avenida, alheias ao risco de acidentes. As 6 mil vans do Rio são um penduricalho aceito para suprir as deficiências do transporte público formal.
Uma terra de ninguém sobre rodas. Isso quando não são dirigidas por bandidos, como os que violentaram a americana e algemaram seu namorado, agredindo-o com uma barra de ferro.
Os dois jovens pegaram a van em Copacabana, a princesinha do mar, para ouvir música na Lapa, um dos programas mais recomendados pelos guias oficiais. O show foi de estupro, agressão e assalto. Não esquecerão o pesadelo.
Acabo de chegar de Nova York. Fiquei no bairro do Brooklyn e usei metrô o tempo todo, feliz da vida. Com um bilhete de viagens ilimitadas por uma semana, a um custo de US$ 29, percorri distâncias infinitas em horários mais e menos movimentados.
Misturei-me a pessoas de todas as idades, de bebês a octogenários, de todas as ascendências, cores, nacionalidades e classes sociais, que dependem do transporte público para trabalho ou lazer.
O metrô de Nova York tem pouco mais de 100 anos, pouco menos de 500 estações, espalha-se por 370 quilômetros. A média de viagens, na semana, é de 5 milhões por dia. Funciona 24 horas por dia, 365 dias por ano.
Sentada ou em pé nos vagões nova-iorquinos, antes dessas tragédias no Rio, eu já pensava na equação perversa do subdesenvolvimento:
por que os países onde há mais pobres são os que menos investem no bem-estar público? Por que despejar tantos carros particulares a mais nas ruas se não há espaço para eles?
Por que quase tudo que é público é tão ruim no Brasil, a sétima economia do mundo?
Por que maltratar quem mais precisa de transporte, educação e saúde?
Como sou carioca, falo com tristeza especificamente deste momento do Rio: a cidade está infernal, barulhenta, intransitável, poluída, malcheirosa e mal-educada. Um dos maiores motivos do estresse é a falta de um transporte público amplo, fiscalizado e decente.
É inconcebível que a rodoviária (indigna da cidade) e os aeroportos não estejam conectados com os vários bairros. Para sediar eventos internacionais com menos atropelos, o Rio precisa mesmo decretar feriado. Cria-se uma vida artificial temporária para fazer de conta que tudo funciona.
Não é só o Rio que pede socorro. Os paulistanos sabem muito bem disso, um ônibus despencou num barranco na Zona Sul na sexta-feira (“por causa da chuva”...) e motociclistas e ciclistas morrem como moscas no trânsito da capital.
Os brasilienses também sabem disso, bastou um carro inocente ser parecido com um carro roubado para um universitário acabar morto com um tiro na cabeça, disparado por PMs ignorantes ou truculentos. José Pereira, de 27 anos, saíra da faculdade em Taguatinga e ia para casa de carona com amigos.
Nenhum país e nenhuma grande cidade estão livres de tragédias, mas o noticiário no Brasil está de lascar. Ficou muito difícil assistir a um telejornal sem se deprimir. Na cidade que vai receber o papa e a Olimpíada, está acesa uma luz vermelha.
06 de abril de 2013
Ruth de Aquino, Época
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