Ode à Baderna
Nada mais assustador para um conservador do que a baderna.
Um dos discursos mais comuns à direita brasileira é esse: peçam o que quiserem, digam o que quiserem, mas não façam baderna. E, sobretudo, não atrapalhem o trânsito. Não por outra razão, qualquer cobertura da mídia nacional sobre passeatas, manifestações e grandes movimentações de massa acabam, sempre, em manchetes de trânsito.
Os camponeses foram a Brasília pedir reforma agrária? Atrapalharam o trânsito. As mulheres da Marcha das Margaridas invadiram as Esplanada dos Ministérios para pedir saúde e educação no campo? Provocaram engarrafamentos.
A moçada parou São Paulo para reclamar do aumento da tarifa do transporte público? O promotor mentecapto, parado no trânsito, pede a PM para espancar e matar os manifestantes. Afinal, o filhinho dele está na escola. Mas como chegar para pegá-lo a tempo, se os bárbaros impedem o trânsito?
Quando, além de parar o trânsito, os manifestantes fazem baderna, aí não! Aí já é demais! Não pode ter baderna. Tem que ser como aquelas passeatas pela paz na Zona Sul do Rio de Janeiro, todos de branco na Avenida Atlântica, copos-de-leite às mãos, o trânsito compreensivelmente parado para a procissão de cidadãos contritos.
A polícia, claro, à distância, com as sirenes reverencialmente desligadas. Tudo assim, sem baderna, dentro da lei e da ordem. A manifestação do mundo ideal.
Pena que para quem pega quatro conduções por dia e gasta em média quatro horas dentro delas (ou esperando por elas) a realidade seja outra. No mundo do transporte público não tem hakuna matata.
O pau come no ponto, no ônibus lotado, nas estações de trem e metrô diariamente conflagradas.
Para o usuário de transporte coletivo, todo dia tem confusão e baderna, mas é difícil explicar isso para o mundo da Avenida Paulista. Para a classe média bem motorizada, as demandas do transporte coletivo são subterrâneas, confinadas a um universo específico sobre o qual só se tem notícia quando motoristas e cobradores entram em greve.
É o dia em que a patroa de Higienópolis se inquieta porque a empregada vai chegar mais tarde ou, horror dos horrores, nem vem trabalhar. Quem vai fazer almoço? E os petizes, sob a guarda de quem ficarão no playground?
E, de repente, vem a baderna.
Multidões de cidadãos, jovens, velhos, brancos, negros, empregadas, office-boys, desempregados, professores, trabalhadores, trabalhadoras, desocupados. Baderneiros. Quebram ônibus, depredam vidraças, picham paredes, revolvem a cidade e deixam marcas no asfalto.
O horror, o horror!
Então, todos se unem contra a baderna. Podem pedir o que quiserem, podem se manifestar, cruzar as ruas com bandeiras, mas, por favor, não atrapalhem o trânsito. Políticos de todos os matizes se unem para bradar: baderna, não! Antigos militantes de esquerda que ainda acham um lindo momento histórico as barricadas de Paris, em 1968, estão, ora vejam, revoltados com a baderna. Pedras, paus, coquetéis molotov, é preciso conter os bárbaros e acabar com a baderna.
Não interessa se eles vivem em panelas de pressão, amontoados em latas automotivas superlotadas, se ganham uma miséria e, agora, terão que pagar mais 20 centavos pelo mesmo sofrimento diário. O que importa é que eles, baderneiros, estão atrapalhando o trânsito.
Então, a solução é descer a porrada. Passar a borracha no lombo desses baderneiros, enfiar-lhes o cassetete na cuca, tocar o gado revoltado para o corredor polonês.
Que a violência policial contra os manifestantes venha do governo de São Paulo, não causa espécie a ninguém. O PSDB é um partido de direita, o governador Geraldo Alckmin é um numerário da Opus Dei, organização católica de extrema-direita, e a PM de São Paulo é um substrato intocável do aparato policial-militar herdado da ditadura.
Os policiais que tomaram o centro da cidade para espancar e prender manifestantes e jornalistas são os cães de guarda desse sistema. Não há disfunção alguma no que estão fazendo: eles existem, basicamente, para isso. Para tocar a negrada a pau, para dar paz a Higienópolis e garantir a brisa fresca de domingo nos Jardins. Dessa gente e de sua guarda pretoriana devem cuidar, nas próximas eleições, o povo de São Paulo.
Mas, onde está o PT? Onde está o prefeito Fernando Haddad, este que já avisou, de Paris, pelo Twitter, que não irá “tolerar vandalismo”? Onde estão os vereadores, deputados e senadores do partido que nasceu nas monumentais greves do ABC paulista, em plena ditadura militar, que os chamava, ora vejam, de baderneiros?
Nada. Ninguém de braços dados para enfrentar a tropa de choque. Todos quietinhos, com seus militantes sempre tão subordinados, para saber o que vai sair no Jornal Nacional e na Veja de domingo. Até lá, melhor deixar as barbas de molho. Para os que ainda têm barba, claro.
Nessa vergonhosa escalada de violência tocada pelo governo tucano de São Paulo, não podia faltar, claro, o apoio da mídia. Não há manifestantes para a ela, mas só baderneiros. Manifestantes são franceses, suecos, turcos, chineses.
No Brasil, são vândalos e desocupados interessados em depredar o patrimônio público, como se a imprensa brasileira, hoje povoada de engomadinhos formados em cursinhos de trainee, alguma vez tenha se preocupado, de fato, com a segurança física dos ônibus usados pelos pobres.
Perdão, gente indignada com os vândalos. Mas entre a hipocrisia e a baderna, eu fico, alegremente, com a segunda.
15 de junho de 2013
Leandro Fortes
NOTA AO PÉ DO TEXTO
Diante de tantos espetáculos de corrupção deslavada, ante tantas demonstrações de incompetência na gerência da 'res publica', diante dos piores cenários políticos dos últimos dez anos, vamos escolher a balbúrdia e o vandalismo, para justificar a insatisfação coletiva - orquestrada? Manipulada? Ideológica?
Se há verdadeiramente a consciência política do descaso público com a cidadania, que se reflete não apenas nos transportes coletivos, sucatados - uma batalha no cotidiano das pessoas que se locomovem nos grandes centros urbanos - mas na saúde, na educação, na segurança, na corrupção, como explicar o silêncio das multidões e suas manifestações, que explodem em episódicos aumentos de passagem dos coletivos? Por que não há passeatas e arruaças contra a incúria no trato das políticas públicas, que em última análise resulta nas explosões incontidas de desordem, confundidas com o direito de manifestação 'democrática', como se a democracia fosse apenas um `instrumento` que justifica toda ordem de vandalismo?
Por que nas paradas gays, uma multidão se manifesta, mas nas passeatas contra a corrupção, os abusos do poder instituído, a subserviência de um congresso amorfo, apenas a presença de uma inexpressiva minoria? Por que diante de movimentos pró-liberação da maconha, nos vemos diante da grande massa de manifestantes, berrando pela causa, mas nada acontece diante dos graves problemas nacionais?
Questões colocadas por jornais europeus, que se interrogam diante das 'maiorias silenciosas' quando se trata de discutir e questionar os grandes problemas nacionais que assolam o país e o atrasam em seu desenvolvimento.
Naturalmente que colocar o problema numa questão de `bolso` ou `desembolso` de passagens que afetam diretamente o cidadão, pouco explica, ou pode explicar o recente episódio incendiário de uma turba enfurecida.
A irônica colocação dos movimentos pela paz no Rio de Janeiro, "coisa de uma elite engomadinha, com filhos assassinados pela insegurança pública", soa um tanto quanto cacofônica. E não fica atrás
as considerações "de uma direita que julga 'passeatas do bem', se não atrapalham o trânsito".
A transformação de um espetáculo de vandalismo como a mais pura manifestação e expressão da insatisfação popular, transformando o Centro de São Paulo numa verdadeira 'guerrilha civil' , seria realmente um espetáculo de democracia?
Não sei... Vivemos tempos de grandes mudanças, de transformação do paradigma que até então, na falta de algo melhor, organizava a vida e a sociedade. Não me refiro apenas ao Brasil, mas a nova ordem que está chegando.
Em toda grande mudança, instala-se primeiramente o caos, depois verdadeiramente o caos, e por fim lentamente a ordem até a sua destruição, quando se dá por completa... Ciclos... Apenas ciclos.
Quem viver, verá.
m.americo
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