Afinal, durante longos anos admiramos a trajetória do Príncipe dos Sociólogos, personalidade que emergia dos porões da ditadura como esperança bem nascida para o Brasil superar os tempos bicudos e obscuros do pensamento único e do enquadramento de nossa sociedade nas jaulas do obscurantismo.
Afinal, de jovem participante da campanha do “Petróleo É Nosso” ao professor universitário que contestava o modelo imposto pelo capitalismo selvagem do chamado “Mundo Livre”, sem radicalismos, ele apontava novos rumos para o Terceiro Mundo. Nada de aventuras inspiradas pela justa indignação dos oprimidos de armas na mão, mas um roteiro social aberto à construção do futuro comum onde a Humanidade prevaleceria sobre o egoísmo das elites ensandecidas pela loucura do lucro a qualquer custo.
Por conta de sua pregação igualitária, foi perseguido, obrigou-se a deixar o país, resistindo no Chile, na Sorbonne e depois, antes mesmo da anistia, na cruzada pela redemocratização nacional. Poucos se deram conta de sua enrustida metamorfose financiada pela Ford Foundation, mas nada havia de pecaminoso em dialogar com os contrários.
Mergulhando num oceano que não era o dele, deu a impressão de buscar apoio no sindicalismo político das madrugadas nas portas das fabricas, junto com o emergente Lula, até tentando atropelar a unidade dos adversários unidos na contestação ao regime militar. Lançou-se candidato ao Senado contra a avalancha chamada Franco Montoro, coisa que entendemos.
Perdeu, mas encontrou a saída ao ficar na primeira suplência, sabendo que dois anos depois o cacique se elegeria governador de São Paulo e abriria espaço para a ascensão do índio emplumado. Talvez já tivesse mudado de ideologia, se algum dia teve alguma, mas enganou com maestria, até apresentando projeto capaz de limitar as grandes fortunas. Passaram a desconfiar dele luminares como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e o próprio Franco Montoro, mas os tempos ainda eram de união entre os contrários para o enfrentamento do inimigo comum.
Veio a democratização, depois a Assembléia Nacional Constituinte. Poucos notaram que o ego suplantara o ideal das boas intenções. FHC quis ser líder, relator-geral e o mais que pudesse projetá-lo cada vez sem maiores compromissos com projetos sociais anteriores. Novamente derrotado nas pretensões, caminhava para candidatar-se a deputado, sem garantia de eleger-se.
Aceitou a sondagem do novo presidente da República, Fernando Collor, para encerrar a carreira publica como ministro das Relações Exteriores. Seu partido, o recém criado PSDB, não deixou, com Mário Covas à frente, ameaçando expulsá-lo. Acomodou-se, até que a vida mostrou-se mais intrincada do que a ficção. Itamar Franco convidou-o para Chanceler, imaginando um fim de vida entre recepções, jantares e viagens pelo mundo.
Nova reviravolta na roda da fortuna. Malogrando com dois ministros da Fazenda, obstinado em enfrentar a inflação, Itamar impôs a Fernando Henrique: ou aceitava liderar o combate ao dragão ou deixaria o governo. Deu certo, cercando-se de uma equipe mágica. Virou candidato à presidência da República pelo sucesso do Plano Real.
Retemperaram-se os antigos admiradores. Abria-se a oportunidade da recuperação do tempo perdido. Afinal, ainda era a esperança bem nascida de o Brasil encontrar seu caminho para o socialismo democrático. Foi quando atingiu a todos com a deletéria frase do “esqueçam tudo o que eu escrevi”. Não esquecemos. Só ele esqueceu, ao imprimir a mais trágica destruição das estruturas nacionais.
Suprimiu direitos sociais, escancarou a economia à sanha dos predadores alienígenas. Destruiu boa parte da nova Constituição. Entregou tudo ao estrangeiro, desde o subsolo às garantias constitucionais de nossa independência. Distorceu as regras mais elementares do convívio político, impondo a própria reeleição e alterando as regras do jogo depois dele começado. Tornou-se o campeão do massacre da soberania brasileira.
É essa explicação de porque seus reais admiradores tornaram-se seus adversários. Não há mais lugar capaz de preencher o vazio da frustração. Pior do que o inimigo tradicional é o ex-amigo. Assim estamos na curva final de nossos oitenta anos. Ele, pleno de soberba e jactância. Nós, sentindo-nos traídos pela dedicação tantas vezes expressa a alguém que nos enganou.
14 de junho de 2013
Carlos Chagas
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