Sempre que fala, por mais banal e corriqueiro o assunto, a presidente Dilma se afoga em mares de palavras que parecem nunca d’antes navegados.
Com uma severa e inusitada desarticulação verbal, na forma desconexa e no conteúdo desconstituído, passa a impressão, sempre, de não dominar tema algum, rigorosamente nenhum.
Se isso acontece até nas repetidas vezes em que tenta reproduzir a matuta do Ceará que lhe inspirou a fábula da humanidade dividida em duas metades exatas — uma sendo mãe da outra e esta, a filha daquela — como Dilma discorreria filosoficamente sobre um complexo personagem de Camões, em “Os Lusíadas”?
Pois esse naufrágio anunciado aconteceu nesta quarta-feira, quando Dilma – a devoradora de livros, a scholar que segundo a mídia amestrada sucede e faz contraste a um analfabeto de nascença e velhice – tentou dissecar a fascinante persona literária daquele que é talvez o mais “camoniano” dos personagens: o Velho do Restelo. Terá sido nos salões da Academia Brasileira de Letras, a convite da veneranda professora e acadêmica Cleonice Berardinelli, maior especialista brasileira em Luis de Camões?
Claro que não. Foi no Palácio do Planalto e o discurso da presidente apoiado em Camões não abordava educação, literatura, bibliotecas, viagens marítimas, mas um programa filhote do Minha Casa Minha vida, o Minha Casa Melhor, que vai financiar eletrodomésticos e móveis para os usuários do MCMV. Que diabos Camões tem a ver com isso?
Nos primeiros 15 minutos de discurso, é a Dilma que conhecemos – para os que já a ouviram mais de uma vez, o dilmês soa tão familiar quanto a voz brasileira de Fred Flinstone, especialmente quando ela tenta convencer as pessoas da importância do lar próprio:
“Ele reforça laços fundamentais numa sociedade sob todos os aspectos. Laços afetivos, mas laços… os principais laços comunitários e a base dos laços sociais”.
Alguma chance de não ser Dilma? Mas o tema do dia é Minha Casa Minha Máquina de Lavar:
“Uma geladeira que não seja uma geladeira com o selo do Cepel, ela gasta muito mais energia. Uma máquina de lavar roupa também. Além dela gastar mais energia ela dá menos conforto, além de ela dar menos conforto, ela, muitas vezes, cria um ambiente muito inadequado numa família e numa casa”.
Alguém conhece outra pessoa com essa sintaxe, esse primarismo de raciocínio? Ok, mas o que Camões tem a ver com uma geladeira? Um parágrafo antes desse, sem quê nem porquê, Dilma já havia introduzido Portugal na discurseira. Ninguém entendeu. É que ela já planejava, mais adiante, retomar a citação de Portugal, preparando o bote contra um idoso luso de quase 500 anos. O Velho do Restelo – atenção, promotores do Estatuto do Idoso – se prepara para entrar em cena, no discurso da presidente, dublado em pavoroso dilmês.
Ele está na praia do Restelo, balançando a cabeça em sinal de desaprovação, acompanhando a partida da primeira caravana náutica de Vasco da Gama à procura das Índias, em “Os Lusíadas”. Mas, antes de invocar o verdadeiro Velho do Restelo, ouçamos Dilma descrever esse “pessimista de carteirinha”, relembrando recente viagem a Portugal:
“Eu passei, novamente, por um lugar muito especial na história da nossa própria língua, que é as margens do Tejo. No Tejo tem uma praia que é a tal da praia do Restelo e o Camões tem um personagem – o Camões que foi aquele, o primeiro grande poeta da globalização, da primeira globalização que foram os Descobrimentos – ele tem um personagem que fala a respeito dos Descobrimentos, que é o Velho, o chamado Velho do Restelo”.
Que intimidade! Mas, antes de Dilma acusar esse ancião de boicotar o Brasil Maravilha, quem foi, de fato, o Velho do Restelo saído da pena de Camões? Há séculos, estudiosos se debruçam sobre essa figura, que é o epicentro das estrofes 94 a 104 do Canto IV de “Os Lusíadas”.
Aqui, basta saber que, no momento da partida da primeira comitiva de Vasco da Gama, ergueu-se, na praia, a voz de um ancião que sobressaiu entre todas as que se fizeram ouvir na cerimônia do adeus.
O Velho do Restelo representa, no poema épico de Camões, aqueles que contestavam aquilo que parecia ser a tresloucada aventura da Índia.
O discurso do velho simbolizava, naquele contexto, uma posição racional, fruto do bom senso e da experiência, a favor de uma política de fixação à terra antagônica à política de expansão. Mais do que ser apenas o pessimista de plantão que, em certa medida, quebraria a cara com o êxito dos descobrimentos, há quem sustente que o Velho do Restelo é o próprio Camões, trazendo a luz da razão para os valores do humanismo, diante da despedida para o incerto, como nestes belíssimos versos:
Em tão longo caminho e duvidoso,
Por perdidos as gentes nos julgavam;
As mulheres c’um choro piedoso,
Mães, esposas, irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo
Bem, esse é o Velho do Restelo de Camões, muito prazer. E o de Dilma?
“Era um velho que ficava parado na praia dizendo o seguinte, para aqueles que iam entrar nas caravelas e se fazerem, atravessarem todo o Tejo até chegar ao mar e se fazer ao mar, atravessando o Atlântico e chegando às Índias ou ao Brasil.
Esse velho ficava sentado na praia azarando, azarando”.
Mas de que modo esse velho babão descrito por Dilma fazia “azaração” contra os navegantes? Ela penetra na cabeça do Velho:
– O que o Velho dizia? O Velho dizia o seguinte: “não vai dar certo”, “não vai dar certo”. E, além de dizer que não ia dar certo, ele dizia que aquilo era uma manifestação de vã glória, ou seja, era uma manifestação de vaidade e um impulso errado, um impulso para o desconhecido e para a derrota.
Consta que Camões precisou de 16 anos para compor os 10 cantos e as 1102 estrofes de “Os Lusíadas”. Colocou o mel amargo da poesia do ceticismo na boca do Velho do Restelo, que talvez falasse por ele próprio.
Vem Dilma, que não fala português, e ousa fazer um célebre personagem de Camões repetir um bordão com pinta de Zorra Total nesse momento seminal da civilização humana? Imagine: as naus estufando suas velas para ganhar o mar da história e o velhinho de Dilmões, ranzinza que só ele, com sintomas de Alzheimer, praguejando:
─ Não vai dar certo, não vai dar certo.
Bem: a tal “vã glória” de Dilma – aliás, que poeta cometeria esse cacófato? — também é um pouco diferente em Camões, nesse que é um dos mais belos versos da língua portuguesa:
“Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!”
Para Dilma, o Velho do Restelo não é apenas um personagem de Camões, mas um estereótipo: é o gene mais ancestral da oposição brasileira, aquela que vive dizendo que o Brasil Maravilha não deu e não vai dar certo:
“O Velho do Restelo, ele é um personagem que encontra eco através da história. Em toda – e durante muito tempo – em toda a história do nosso país, muitos Velhos do Restelo apareceram nas margens das nossas praias. Hoje, o Velho do Restelo não pode, não deve e, eu asseguro pra vocês, não terá a última palavra no Brasil. Esse programa é mais um som contra o Velho do Restelo”.
Critica-se a tese do controle social da mídia, mas e o controle de Camões proposto por Dilma? Já chega o tempo em que o Estadão publicava estrofes de “Os Lusíadas” em vez de noticiar as aventuras da turma da Dilma.
Com uma severa e inusitada desarticulação verbal, na forma desconexa e no conteúdo desconstituído, passa a impressão, sempre, de não dominar tema algum, rigorosamente nenhum.
Se isso acontece até nas repetidas vezes em que tenta reproduzir a matuta do Ceará que lhe inspirou a fábula da humanidade dividida em duas metades exatas — uma sendo mãe da outra e esta, a filha daquela — como Dilma discorreria filosoficamente sobre um complexo personagem de Camões, em “Os Lusíadas”?
Pois esse naufrágio anunciado aconteceu nesta quarta-feira, quando Dilma – a devoradora de livros, a scholar que segundo a mídia amestrada sucede e faz contraste a um analfabeto de nascença e velhice – tentou dissecar a fascinante persona literária daquele que é talvez o mais “camoniano” dos personagens: o Velho do Restelo. Terá sido nos salões da Academia Brasileira de Letras, a convite da veneranda professora e acadêmica Cleonice Berardinelli, maior especialista brasileira em Luis de Camões?
Claro que não. Foi no Palácio do Planalto e o discurso da presidente apoiado em Camões não abordava educação, literatura, bibliotecas, viagens marítimas, mas um programa filhote do Minha Casa Minha vida, o Minha Casa Melhor, que vai financiar eletrodomésticos e móveis para os usuários do MCMV. Que diabos Camões tem a ver com isso?
Nos primeiros 15 minutos de discurso, é a Dilma que conhecemos – para os que já a ouviram mais de uma vez, o dilmês soa tão familiar quanto a voz brasileira de Fred Flinstone, especialmente quando ela tenta convencer as pessoas da importância do lar próprio:
“Ele reforça laços fundamentais numa sociedade sob todos os aspectos. Laços afetivos, mas laços… os principais laços comunitários e a base dos laços sociais”.
Alguma chance de não ser Dilma? Mas o tema do dia é Minha Casa Minha Máquina de Lavar:
“Uma geladeira que não seja uma geladeira com o selo do Cepel, ela gasta muito mais energia. Uma máquina de lavar roupa também. Além dela gastar mais energia ela dá menos conforto, além de ela dar menos conforto, ela, muitas vezes, cria um ambiente muito inadequado numa família e numa casa”.
Alguém conhece outra pessoa com essa sintaxe, esse primarismo de raciocínio? Ok, mas o que Camões tem a ver com uma geladeira? Um parágrafo antes desse, sem quê nem porquê, Dilma já havia introduzido Portugal na discurseira. Ninguém entendeu. É que ela já planejava, mais adiante, retomar a citação de Portugal, preparando o bote contra um idoso luso de quase 500 anos. O Velho do Restelo – atenção, promotores do Estatuto do Idoso – se prepara para entrar em cena, no discurso da presidente, dublado em pavoroso dilmês.
Ele está na praia do Restelo, balançando a cabeça em sinal de desaprovação, acompanhando a partida da primeira caravana náutica de Vasco da Gama à procura das Índias, em “Os Lusíadas”. Mas, antes de invocar o verdadeiro Velho do Restelo, ouçamos Dilma descrever esse “pessimista de carteirinha”, relembrando recente viagem a Portugal:
“Eu passei, novamente, por um lugar muito especial na história da nossa própria língua, que é as margens do Tejo. No Tejo tem uma praia que é a tal da praia do Restelo e o Camões tem um personagem – o Camões que foi aquele, o primeiro grande poeta da globalização, da primeira globalização que foram os Descobrimentos – ele tem um personagem que fala a respeito dos Descobrimentos, que é o Velho, o chamado Velho do Restelo”.
Que intimidade! Mas, antes de Dilma acusar esse ancião de boicotar o Brasil Maravilha, quem foi, de fato, o Velho do Restelo saído da pena de Camões? Há séculos, estudiosos se debruçam sobre essa figura, que é o epicentro das estrofes 94 a 104 do Canto IV de “Os Lusíadas”.
Aqui, basta saber que, no momento da partida da primeira comitiva de Vasco da Gama, ergueu-se, na praia, a voz de um ancião que sobressaiu entre todas as que se fizeram ouvir na cerimônia do adeus.
O Velho do Restelo representa, no poema épico de Camões, aqueles que contestavam aquilo que parecia ser a tresloucada aventura da Índia.
O discurso do velho simbolizava, naquele contexto, uma posição racional, fruto do bom senso e da experiência, a favor de uma política de fixação à terra antagônica à política de expansão. Mais do que ser apenas o pessimista de plantão que, em certa medida, quebraria a cara com o êxito dos descobrimentos, há quem sustente que o Velho do Restelo é o próprio Camões, trazendo a luz da razão para os valores do humanismo, diante da despedida para o incerto, como nestes belíssimos versos:
Em tão longo caminho e duvidoso,
Por perdidos as gentes nos julgavam;
As mulheres c’um choro piedoso,
Mães, esposas, irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo
Bem, esse é o Velho do Restelo de Camões, muito prazer. E o de Dilma?
“Era um velho que ficava parado na praia dizendo o seguinte, para aqueles que iam entrar nas caravelas e se fazerem, atravessarem todo o Tejo até chegar ao mar e se fazer ao mar, atravessando o Atlântico e chegando às Índias ou ao Brasil.
Esse velho ficava sentado na praia azarando, azarando”.
Mas de que modo esse velho babão descrito por Dilma fazia “azaração” contra os navegantes? Ela penetra na cabeça do Velho:
– O que o Velho dizia? O Velho dizia o seguinte: “não vai dar certo”, “não vai dar certo”. E, além de dizer que não ia dar certo, ele dizia que aquilo era uma manifestação de vã glória, ou seja, era uma manifestação de vaidade e um impulso errado, um impulso para o desconhecido e para a derrota.
Consta que Camões precisou de 16 anos para compor os 10 cantos e as 1102 estrofes de “Os Lusíadas”. Colocou o mel amargo da poesia do ceticismo na boca do Velho do Restelo, que talvez falasse por ele próprio.
Vem Dilma, que não fala português, e ousa fazer um célebre personagem de Camões repetir um bordão com pinta de Zorra Total nesse momento seminal da civilização humana? Imagine: as naus estufando suas velas para ganhar o mar da história e o velhinho de Dilmões, ranzinza que só ele, com sintomas de Alzheimer, praguejando:
─ Não vai dar certo, não vai dar certo.
Bem: a tal “vã glória” de Dilma – aliás, que poeta cometeria esse cacófato? — também é um pouco diferente em Camões, nesse que é um dos mais belos versos da língua portuguesa:
“Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!”
Para Dilma, o Velho do Restelo não é apenas um personagem de Camões, mas um estereótipo: é o gene mais ancestral da oposição brasileira, aquela que vive dizendo que o Brasil Maravilha não deu e não vai dar certo:
“O Velho do Restelo, ele é um personagem que encontra eco através da história. Em toda – e durante muito tempo – em toda a história do nosso país, muitos Velhos do Restelo apareceram nas margens das nossas praias. Hoje, o Velho do Restelo não pode, não deve e, eu asseguro pra vocês, não terá a última palavra no Brasil. Esse programa é mais um som contra o Velho do Restelo”.
Critica-se a tese do controle social da mídia, mas e o controle de Camões proposto por Dilma? Já chega o tempo em que o Estadão publicava estrofes de “Os Lusíadas” em vez de noticiar as aventuras da turma da Dilma.
14 de junho de 2013
CELSO ARNALDO ARAÚJO
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